Sigo até o meu apartamento, com Karan logo atrás. O som dos passos dele parece ecoar mais alto no corredor, como se cada um fosse um lembrete da presença pesada que ele traz. Quando alcançamos a porta, abro e seguro-a para que ele entre. Assim que ele cruza o limiar, fecho a porta, sentindo o clique da tranca como uma confirmação da nossa convivência inevitável.Ao encará-lo na sala, uma sensação desconfortável me atinge: o ambiente parece menor, quase sufocante. A altura de Karan e o porte de seus ombros, que já chamavam atenção antes, agora parecem dominar o espaço. Minhas mãos se entrelaçam nervosamente, e percebo que minha calma escapou sem eu perceber.— Como sabe, você terá um quarto para dormir — começo, a voz levemente trêmula, mas tentando soar firme. — E, caso os agentes nos façam uma visita, sua cama deve estar sempre arrumada para passar a impressão de que é um quarto de hóspedes.Dou uma pausa, observando-o, mas ele não dá nenhum sinal de reação. Nem uma palavra, nem um m
Lembranças do meu casamento com SamiraNeste dia, o sheik Abdul Bashir nos aguardava para oficializar nosso casamento em uma mesquita a quatro quilômetros da casa de Samira. Meu coração estava acelerado, não apenas pelo calor sufocante do dia, mas pela proximidade de realizar o sonho que alimentamos juntos por tanto tempo.Paro meu carro em frente ao portão dela e deixo o motor ligado para manter o ar-condicionado funcionando. Mesmo assim, parece que o calor não se dissipa; é como se o próprio destino estivesse pulsando ao meu redor. Quando Samira aparece, meu mundo se ilumina. Ela está lindíssima. Um hijab branco cobre seus cabelos negros como seda, os olhos destacam-se em contraste com a maquiagem impecável, e o vestido, da mesma cor do lenço, é ornamentado com delicadas faixas douradas que cintilam sob o sol.Nossos olhares se encontram. Os olhos dela, negros como uma noite sem lua, brilham com emoção. Ela sorri, e eu sinto o coração vacilar, tomado por uma felicidade tão intensa q
Fecho a porta, mas meu coração ainda está acelerado. A visão daquele deus árabe sem camisa não sai da minha mente. É o tipo de beleza que poderia deixar até uma freira sem fala. Aquele peito largo, coberto por uma massa de pelos castanhos... uma perdição. Mas não foi isso que me deixou inquieta e sim aquela cicatriz.Deus do céu, o que pode ter acontecido com ele? É enorme, brutal, como se contasse uma história que ninguém deveria viver. Fecho os olhos por um momento, tentando afastar a imagem, mas ela continua pulsando na minha mente. Algo grave deixou essa marca em Karan. Algo que ele nunca vai me contar.Suspiro, tentando me recompor. Parece que essa semana será assim: refeições solitárias, cada um no seu canto. Por mais que eu odeie admitir, já estou acostumada com a solidão. Desde antes da morte da minha mãe, convivo bem com isso. Por que agora seria diferente?E se pensar bem, comer com ele seria um ato estranho e sua frieza, seu mal humor têm deixado muito clara sua intenção: c
AmandaO crepúsculo aparece no horizonte, tingindo o céu com tons de laranja e púrpura. A luz suave reflete nas janelas do meu edifício, trazendo à memória um passado que aquece e fere ao mesmo tempo. Lembro-me dos domingos com mamãe, quando descíamos para caminhar, sentindo o sol nos aquecer enquanto conversávamos sobre a vida.Caminho lentamente até o banco que costumávamos ocupar. Era aqui que eu abria meu coração, contando a ela sobre os desafios do trabalho, as alegrias e dores da minha rotina, e, às vezes, até confessando os segredos do meu coração.A saudade é como uma mão invisível que aperta meu peito. Sentindo o peso disso, retiro a máscara e fecho os olhos. Inclino o rosto para o céu e puxo uma respiração profunda. O aroma da grama recém-cortada mistura-se com a brisa fresca que acaricia meu rosto. É um momento de calma em meio à confusão dos meus pensamentos.Quando abro os olhos novamente, minha visão se eleva até a janela do meu quarto. As luzes estão acesas, um sinal cl
Seus olhos deixam os meus por um instante e se voltam para o envelope, onde as fotos ainda estão à mostra na cama. Quando ele olha para mim novamente, seus dentes estão trincados, e posso ouvir o som de sua respiração pesada.—Não? Você acha que sou um... um... um ghabiun? —ele cospe a palavra com tanta raiva que até parece doer em sua garganta.Eu fico aturdida, tentando entender o que ele acabou de dizer. A palavra soa estranha, mas ao mesmo tempo, reconheço a intensidade de sua indignação.—Ghabiun? —repito, hesitante.Ele parece ainda mais irritado, o rosto ficando mais vermelho enquanto procura uma tradução em sua mente. É como se sua fúria o impedisse de encontrar a palavra certa.Percebendo o quão perto ele está de perder completamente o controle, resolvo ajudá-lo.—Você quer dizer bobo, idiot@? —sugiro com cautela, minha voz suave tentando aplacar a tempestade.Ele me encara, seu olhar queimando com emoções que parecem querer transbordar. Por um momento, o tempo para.—Isso! E
KaranFico sozinho, apenas eu e a minha amargura, cercado pelo peso esmagador das lembranças que nunca me abandonam.Vou até a cama e me sento, os ombros caídos sob o fardo invisível que carrego todos os dias. Meus olhos recaem sobre as duas fotos expostas. Com mãos trêmulas, pego a primeira e encaro o momento congelado no tempo: minha família, todos juntos, sorrindo em frente à nossa casa. Hoje, aquele lar não passa de escombros.A outra foto, menor e mais pessoal, é de Samira. O sorriso dela, tão sincero, contrasta cruelmente com a ausência que grita em meu peito. Foi ela quem me deu essa foto no dia em que nos conhecemos, quando tudo parecia simples e cheio de promessas.Abaixo a cabeça, pressionando os dedos contra as têmporas. Uma dor afiada me perfura, não apenas no corpo, mas na alma.Allah! Será que minha vida não pode ter um único instante de paz?A raiva e a tristeza se entrelaçam em meu interior, um ciclo infinito. Como se o dia de hoje já não tivesse me torturado o suficie
Minhas emoções ainda vibram intensamente, resquícios dos momentos turbulentos de minutos atrás. A necessidade de me recolher ao quarto é quase instintiva, como se o espaço pudesse me proteger de meus pensamentos. A frieza no trato dele ainda reverbera em mim, mas é inegável que seu olhar parecia fixado em minha boca de uma forma quase hipnótica.Por Deus, pensei que a qualquer instante ele me puxaria para um beijo inesperado, um instante que jamais saberia como reagir. Preciso ter cuidado com esse sírio. Apesar da aparente indiferença, ele carrega uma aura que mistura perigo, rebeldia e uma impetuosidade que me desarma. Meu jeito solícito pode ser interpretado de forma errada, e isso é algo que preciso evitar a qualquer custo. Ele deixou claro, em cada gesto e olhar, que não oferece um coração, mas sim o ardor da carne e um desejo bruto que me consome.De repente, me vejo fechando os olhos e pensando nos momentos que ele me puxou para os seus braços e me beijou. Sorrio com essa sensaç
KaranMeu ouvido está zunindo, cada som amplificado por um eco perturbador. Meu corpo inteiro está coberto pelo pó de construção, e o peito arde com a presença de um estilhaço profundamente cravado. Eu não o retiro; sei que isso apenas agravaria a hemorragia.Com dificuldade, tento me erguer. Meu corpo protesta, mas consigo ficar de pé, tremendo. Meus olhos desesperados percorrem o cenário de caos até encontrarem o carro de Samira. O horror me consome enquanto avanço em direção a uma mão pálida, manchada de sangue, em contraste com o metal retorcido.— Allah! Allah não! Não pode ser. Não. Não. Não! — Minhas palavras são um lamento desesperado.O anel de noivado reluz entre os destroços, uma confirmação cruel. Ele pertence à mulher da minha vida. Uma onda de dor e negação me invade enquanto tento, inutilmente, erguer o metal retorcido.— Samira! Eu posso salvá-la! — grito, minha voz cheia de um desespero impotente.— Karan. — Uma voz suave rompe o caos, chegando até mim como um sussurr