O simples fato de pensar em me casar com um estranho e morar com ele me arrepia.
―Não sei se farei isso. Parece algo de outro mundo para mim.
―Algo de outro mundo? Isso é mais comum do que você pode imaginar. É um casamento de conveniência. Simples assim ―Samantha comenta.
―Dividir o mesmo teto...não sei não.
―Amanda, meu irmão conhece bem o rapaz. Ele é uma boa pessoa.
Ela diz isso pois Vitor trabalha com Karan em um restaurante especializado em comida árabe. Vitor é chefe de cozinha e Karan garçom, mas ainda assim tenho minhas dúvidas.
―Conhece bem mesmo?
―Sim. Pode apostar que sim. E mais! Karan trabalha pra caramba. Ele é garçom. Você quase não o verá. Quando trabalhar, ele estará em casa. Quando ele estiver em casa, você estará trabalhando.
Eu ajeito minha máscara no rosto. Ai como odeio isso! Não vejo a hora que chegue à vacina e com ela a imunização contra esse vírus. Quero que esse pesadelo acabe.
Como eu não digo nada ela continua:
―Pense como um negócio. Você o ajudará com o visto e ele lhe dará o dinheiro que precisa. Ou prefere ficar de braços cruzados chorando; reclamando com Deus e o mundo que está endividada?
―Tem certeza de que ele tem o dinheiro que preciso? Pelo que eu saiba, esses refugiados saem de seu país com a roupa do corpo.
―Eu fiz a mesma pergunta para Vitor e ele me disse que Karan era um rico comerciante, trouxe em sua bagagem todas as suas economias. Inclusive joias de família. Ele me garantiu que Karan tem o dinheiro que precisa. Inclusive querida, ele vive muito bem. Alugou um belo apartamento todo mobiliado. Bem melhor que o seu.
Eu pisco com essa nova informação.
Solto o ar.
―Deve ter uma alternativa.
Ela contrai os lábios brilhantes reprovando minhas palavras.
―Os juros não estacionam. Se levar muito tempo para encontrá-la, sua dívida multiplicará e aí querida, terá deixado passar essa oportunidade, pois com certeza o rapaz encontrará alguém para se casar.
As palavras de Samantha me atingem com força.
A doença da minha mãe consumiu todas as minhas economias e com o passar do tempo eu me endividei. Mas o pior de tudo foi sua morte. O câncer a levou. Meus esforços foram em vão.
As lágrimas embaçam meus olhos.
―E então? ―Samantha me questiona duramente, ignorando minha fragilidade.
―Está bem. Eu irei a esse encontro, mas por enquanto é só para conhecê-lo melhor ―olho meu relógio ― bem, agora preciso trabalhar. Não posso me atrasar. A gerente está no meu pé direto.
―Está certo. Prefere que esse encontro seja na minha casa ou em um ambiente descontraído?
―Num ambiente descontraído.
―Tem certeza? Na minha casa não é melhor?
―Por que acha isso?
―Porque assim eu posso conhecê-lo e dar minha opinião a respeito dele.
―Tudo bem. Você me convenceu ―digo e olho meu relógio novamente―Deus! Estou em cima da hora. Ainda bem que marcamos aqui.
Estamos no South Coast Plaza, no shopping que trabalho como vendedora numa grife de roupas femininas.
―Até a noite ―Samantha me diz.
―Oito horas?
―Exatamente.
―Ok.
Karan
Nos últimos 10 anos, a guerra forçou o deslocamento de milhões de pessoas que se refugiaram em outro país. Comigo não foi diferente; tomei essa decisão quando perdi a fé no meu país. Isso ocorreu quando os conflitos avançaram e chegaram à minha cidade de nome Ithriyah, onde as experiências traumáticas começaram.
Primeiro, a guerra levou meus pais quando uma bomba caiu próxima a um mercado onde eles estavam. Meses depois, foi meu irmão, que estava no lugar errado e na hora errada e levou um tiro de fuzil.
Os meses se passaram comigo tentando me reerguer e me recuperar do luto, mas a agonia não parou por aí. Samira, minha noiva, morreu também vítima de um bombardeio em sua casa.
Estou refugiado em Londres, saindo do meu país em busca de melhores condições de vida. Estou tentando me recuperar do sofrimento causado por tantas perdas.
Antes de tudo acontecer, eu era um próspero comerciante. Vivia como um rei, muito diferente da vida que levo aqui hoje, onde às vezes me sinto um mendigo. Pessoas que buscam asilo não podem trabalhar e nem receber benefícios do Reino Unido enquanto não têm o pedido de asilo aprovado. Se estiverem desamparadas e não tiverem outros meios de se sustentar, eles podem solicitar um apoio que hoje está em torno de £5,66 por dia.
Allah! Como se sobrevive com este valor? As instituições de caridade descreveram o sistema de asilo como "desumano" e "moralmente repreensível".
Graças a Allah, consegui um trabalho como garçom, mas o dono do restaurante já me deu um ultimato para resolver minha vida e sair da ilegalidade, ou ele irá me mandar embora.
Eu poderia até me dar o luxo de perder esse emprego e viver das minhas economias, mas até quando? E mesmo porque, eu não quero estar na mão dessa gente esperando minha legalidade, por isso entrei nessa ideia de me casar por conveniência. Isso é muito comum por aqui.
Hoje à noite vou conversar com a garota; a irmã de Vitor ficou de marcar o encontro. Por esse motivo, mudei meu horário e estou cobrindo o horário do almoço. Segundo Vitor, Amanda é a pessoa ideal para esse tipo de compromisso, pois ela está bem endividada e eu tenho o dinheiro e ela a disposição para entrar nisso. Solto o ar. Não concordo em nada com o casamento de conveniência. Minha mente é muito retrógrada para levar uma união que considero séria dessa forma. Só que foi a única alternativa que encontrei para dar um rumo certo à minha vida, ainda que meu coração relute e se aperte por causa da minha doce Samira.
Nesta hora, a imagem dela invade meu cérebro com força e sua doce voz chega aos meus ouvidos em forma de lembranças, estas que ainda preservo comigo...
―Se um dia eu morrer, promete que seguirá em frente, que fará de tudo para refazer sua vida ― ela me diz, seus olhos castanhos muito sérios nos meus. Eu respiro fundo. Não gosto muito de falar sobre morte. Há muitas no meu currículo. Fico calado, ouvindo sua respiração contra meu rosto, pensando em outra coisa, como em me casar logo para poder ficar mais do que nos beijos ardentes que trocamos.
―Karan.
Pisco.
―Não quero falar sobre isso.
―Mas eu quero. Promete-me que seguirá em frente se eu morrer. Solto o ar cheio de angústia. Perdi todos da minha família. Allah não irá me tirar Samira.
―E então? Fungo.
―Só se me prometer a mesma coisa. Seu narizinho se empina.
―Eu prometo. Se você morrer, vou sofrer muito, mas vou seguir em frente. Pronto. Agora falta você. Lembre-se que está diante de Allah. Ela sabe que sou de cumprir minhas palavras, ela vale por um escrito assinado, documentado.
―Eu seguirei em frente. Farei de tudo para seguir em frente. Seu rostinho de anjo assente para mim. Sem me conter, eu a puxo para meus braços, nossas bocas se unem num longo beijo. Minhas mãos ardem para tocá-la, mas profundamente, mas eu me controlo....
―Karan. Você pode atender à mesa três?
Limpo minhas lágrimas sem graça.
―Nem bialtaakid.
―O quê?
―Eu disse, sim, claro. ―Digo com meu sotaque carregado.
―Então vai, parece que está no mundo da lua. Mundo da lua. É cada expressão que ouço aqui! Ajeito minha máscara e pego o bloco de anotações.
Amanda Os ingleses são conhecidos por sua pontualidade, mas dessa vez fiz questão de chegar atrasada ao apartamento de Samantha. Não quero passar a imagem de que estou desesperada pelo acordo. Durante todo o dia, minhas preocupações me assolaram, não me deixando em paz nem por um minuto, e cheguei à conclusão de que me casar com esse estranho é o melhor caminho a seguir. Só preciso conhecê-lo melhor para ver se realmente tudo isso dará certo. Seja o que Deus quiser! Toco a campainha, Samantha logo surge na porta, mas, ao invés de me fazer entrar, me empurra para fora. Então me avalia. ― Pelo visto veio direto do trabalho? ― Sim, por quê? ― Ainda bem. Adoro quando se veste assim. Está muito atraente. Estou, mas prefiro o rosto lavado, do que essa maquiagem. Uma bela calça social ou jeans, não importa, do que esse vestido tubinho mostarda. Uma blusa legal ou camiseta, combinando com jaqueta ou blazer. Sapatos de salto baixo do que o alto que uso agora. Mas fazer o quê? Não deu par
Ele parece ter dificuldade para focar meu rosto, ainda apreciando a vista. De repente, eu me sinto bem com isso. Faz tanto tempo que ninguém olha para mim desse jeito. Sei que sou culpada por isso, ultimamente tenho me mantido invisível, saído pouco.― O que quer saber mais sobre mim? ― questiona secamente.Eu empino meu nariz, encarando o arrogante e que, infelizmente, é lindo demais para não ser notado.― Gostaria de saber por que você escolheu viver aqui? Geralmente os sírios buscam refúgio na Sérvia, Alemanha, Suécia, entre outros países.Ele solta o ar e olha para o chão, como se fugisse de meus olhos. Quando olha para mim, os sulcos da testa estão mais profundos, sua respiração sai do normal, seu olhar expressa dor, tristeza, solidão.― Antes da guerra civil estourar, eu viajei como turista para cá com meus pais e meu irmão caçula. Foi bom estar com eles aqui. Por isso escolhi esse país para recomeçar.Eu engulo em seco. Será que morreram todos? Por isso ele me encara com essa t
Minutos depois, estou sentada no sofá, bebendo uma taça de vinho gelado, refletindo sobre a conversa que tive com aquele sírio. Chego à conclusão: não terei problemas com Karan. Ele é um homem introspectivo e sabe bem os seus limites. Então, por que estou me sentindo tão estranha?A porta se abre, e meus amigos entram, tirando as máscaras e rindo muito de algo. Todos param de falar quando me veem sozinha no sofá.―E Karan? ―Samantha me questiona, e seu rosto se torna severo. ―Espera aí! Você não o colocou para correr, não é? Não haverá casamento, é isso?―Sim, haverá. Ele ficou de marcar a data.Samantha solta o ar.―Puxa! Que bom! Mas, onde ele está?―Foi embora.―Ele disse por que foi embora? ―Vitor me questiona.―Disse que estava cansado.Vitor balança a cabeça em negativa.―Desculpa dele. Hoje o movimento foi baixo. Esse vírus tem atrapalhado muito os comércios e restaurantes.Samantha se vira para eles:―Rapazes, por que não vão colocando a mesa? Só vou trocar uma palavrinha com
AmandaCom o dinheiro para liquidar minhas dívidas as preocupações acabaram, mas não estou em paz. Eu me sinto agitada.Não sei por que me sinto assim?Era para eu estar comemorando por ele ter agido de forma arredia, seca; no entanto, algo naquele sírio mexeu comigo.Ele conseguiu o impossível: despertar minha atenção.Por ser maduro e bonito?Não. Não é isso.Claro que sua masculinidade me atraiu bastante, mas acredito que seja mais do que isso. Talvez por ele ser diferente dos caras vazios de hoje em dia. Um bando de babacas mais chegados aos prazeres da carne do que no intelectual.Dou uma inspirada funda e me viro do outro lado da cama. Meus olhos nesta hora focam o rádio-relógio.Uma hora da manhã.Deus! Preciso dormir para amanhã enfrentar mais um dia de trabalho.Duas semanas depois...Casamento de Amanda Lawrence e Karan Bar QamarAmandaDeus! Estou nervosa como uma verdadeira noiva! Penso sentindo o suor frio surgindo na minha testa. Não deveria. As dívidas estão pagas, é só
―Oi, Karan. Não sei se reparou, mas temos plateia. Achei melhor que todas as garotas do meu trabalho acreditassem nessa far...Karan interrompe o que eu ia dizer quando ele retira sua máscara e dá um passo em minha direção. Então ele ergue sua mão e retira a minha com delicadeza e a entrega para mim. Eu a pego da mão dele tentando ignorar minhas pernas trêmulas, dizendo para mim mesma que isso não significa nada para mim. Quase infarto quando sinto seu braço me envolvendo e me puxando ao encontro de sua montanha de músculos. Seu perfume me deixa quente e atordoada. Ergo meu rosto para ele enquanto o seu desce e sua testa pousa na minha. Fica um tempo assim e então seu lindos olhos azuis procuram os meus e eu leio neles o que ele está prestes a fazer.―Relaxe.Relaxar?Eu precisaria estar morta para ignorar esse homem. A perfeição destes olhos azuis sombreados por cílios longos e negros. A barba escura bem-feita. Os lábios cheios na medida certa, os dentes certinhos e muito brancos, fo
Começamos a fazer poses bonitas para o fotógrafo, nossos corpos ajustados às exigências da câmera, enquanto os sorrisos se tornam apenas sombras de felicidade fabricada. Cada clique captura um teatro bem ensaiado, o quadro de um casal apaixonado que não existe de verdade. Mas é quando sinto seus dedos apertarem minha cintura, com mais intenção do que o esperado, que meu coração dispara e uma avalanche de sentimentos toma conta de mim.Seus lábios ainda pressionam os meus, e por um momento, é como se o mundo ao nosso redor desaparecesse, deixando apenas a presença dele e a força irresistível desse toque. Os flashes continuam, me lembrando que tudo isso é apenas um cenário, uma farsa para os outros. Ainda assim, a raiva cresce em mim como uma chama alimentada por oxigênio. Raiva de como ele me afeta, de como cada parte de mim parece ceder àquele contato, enquanto eu sei que para ele não é nada mais do que uma cena bem atuada.Sua mão escorrega para o meu quadril, apertando com firmeza,
Sigo até o meu apartamento, com Karan logo atrás. O som dos passos dele parece ecoar mais alto no corredor, como se cada um fosse um lembrete da presença pesada que ele traz. Quando alcançamos a porta, abro e seguro-a para que ele entre. Assim que ele cruza o limiar, fecho a porta, sentindo o clique da tranca como uma confirmação da nossa convivência inevitável.Ao encará-lo na sala, uma sensação desconfortável me atinge: o ambiente parece menor, quase sufocante. A altura de Karan e o porte de seus ombros, que já chamavam atenção antes, agora parecem dominar o espaço. Minhas mãos se entrelaçam nervosamente, e percebo que minha calma escapou sem eu perceber.— Como sabe, você terá um quarto para dormir — começo, a voz levemente trêmula, mas tentando soar firme. — E, caso os agentes nos façam uma visita, sua cama deve estar sempre arrumada para passar a impressão de que é um quarto de hóspedes.Dou uma pausa, observando-o, mas ele não dá nenhum sinal de reação. Nem uma palavra, nem um m
Lembranças do meu casamento com SamiraNeste dia, o sheik Abdul Bashir nos aguardava para oficializar nosso casamento em uma mesquita a quatro quilômetros da casa de Samira. Meu coração estava acelerado, não apenas pelo calor sufocante do dia, mas pela proximidade de realizar o sonho que alimentamos juntos por tanto tempo.Paro meu carro em frente ao portão dela e deixo o motor ligado para manter o ar-condicionado funcionando. Mesmo assim, parece que o calor não se dissipa; é como se o próprio destino estivesse pulsando ao meu redor. Quando Samira aparece, meu mundo se ilumina. Ela está lindíssima. Um hijab branco cobre seus cabelos negros como seda, os olhos destacam-se em contraste com a maquiagem impecável, e o vestido, da mesma cor do lenço, é ornamentado com delicadas faixas douradas que cintilam sob o sol.Nossos olhares se encontram. Os olhos dela, negros como uma noite sem lua, brilham com emoção. Ela sorri, e eu sinto o coração vacilar, tomado por uma felicidade tão intensa q