Minutos depois, estou sentada no sofá, bebendo uma taça de vinho gelado, refletindo sobre a conversa que tive com aquele sírio. Chego à conclusão: não terei problemas com Karan. Ele é um homem introspectivo e sabe bem os seus limites. Então, por que estou me sentindo tão estranha?
A porta se abre, e meus amigos entram, tirando as máscaras e rindo muito de algo. Todos param de falar quando me veem sozinha no sofá.
―E Karan? ―Samantha me questiona, e seu rosto se torna severo. ―Espera aí! Você não o colocou para correr, não é? Não haverá casamento, é isso?
―Sim, haverá. Ele ficou de marcar a data.
Samantha solta o ar.
―Puxa! Que bom! Mas, onde ele está?
―Foi embora.
―Ele disse por que foi embora? ―Vitor me questiona.
―Disse que estava cansado.
Vitor balança a cabeça em negativa.
―Desculpa dele. Hoje o movimento foi baixo. Esse vírus tem atrapalhado muito os comércios e restaurantes.
Samantha se vira para eles:
―Rapazes, por que não vão colocando a mesa? Só vou trocar uma palavrinha com Amanda e já vou ―quando eles se afastam, ela se volta para mim. ―Então gostou dele?
―Sim. Ele é ideal para esse acordo. Acho que não teremos problemas de convivência. Frio, introspectivo, muito na dele.
―Verdade? ―ela me questiona espantada.
―Sim. Foi difícil arrancar algumas informações dele. Parecia um interrogatório.
Ela me olha com um sorriso:
―Você? Querendo saber mais sobre a vida dele?
―Não sei por que essa cara? Eu preciso saber que tipo de homem estou colocando debaixo do meu teto.
―E então?
―E então nada. Só arranquei o básico, e ele me respondeu tudo de má vontade.
―Deus! Isso é broxante! E eu que pensei que ele fosse o cara certo para você.
―Não sei por que ele te passou essa impressão?
―Porque ele me pareceu muito educado. Soltou até umas risadas quando Vitor contou uma história engraçada que aconteceu no restaurante. Nem parece que estamos falando do mesmo homem.
―Quem não ri com Vitor, Samantha? Até uma múmia se veria tentada.
Ela ri.
―Bem, isso é verdade. Então vamos agilizar as coisas porque estou morrendo de fome, enquanto isso você vai me contando tudo.
―Tudo bem, mas como eu disse, não há quase nada para contar.
Karan
Estaciono minha moto no subsolo. Entro no elevador, que já está aberto, e aperto o botão do décimo andar. Minha mente está em branco, e meu coração pesado, e permaneço assim até chegar ao meu andar. Sigo até a porta de número 14 do meu apartamento alugado e a abro. Depois de acender as luzes, tranco a porta. Vou para o meu quarto e começo a retirar minhas roupas, pensando.
Embora eu trabalhe minha mente para não pensar nas agruras da minha vida, é sempre assim quando chego em casa. Sinto essa melancolia, como se uma mão fechada apertasse meu coração. Se eu pudesse, trabalharia exaustivamente só para meu coração doer menos. A lida com os clientes, a agilidade que preciso para atendê-los, colaboram muito para o meu bem-estar.
Dizem que o tempo cura as dores do coração. Talvez dores normais, mas não as que eu vivi. Já faz sete meses que perdi Samira, nove que perdi meu irmão e um ano e seis meses que perdi meus pais, e continuo sofrendo.
Solto o ar cheio de desgosto.
Queria tanto que Samira estivesse aqui ao meu lado, tentando uma nova vida em Londres. Estaríamos dando entrada nos documentos de refúgio, e eu não estaria me casando com uma desconhecida. Com Samira ao meu lado, eu não teria receio de voltar para a Síria caso nosso pedido fosse negado, caso não desse certo aqui.
Tenho que balançar a cabeça para afastar o pensamento de eu morar sozinho no meu país. Não, não dá. Voltar para o meu país é como reviver o dobro de sua intensidade minha tragédia, meu desgosto e amarguras. Eu veria Samira em cada canto da minha cidadezinha natal. Fora o assovio das bombas até sua explosão. Elas me fazem recordar de que forma ela morreu.
Limpo minhas lágrimas. A saudade que sinto de todos e principalmente da minha noiva se tornou uma maldição e sempre maltrata meu coração, deixando claro que vou amar Samira eternamente. Sou tão grato por ela ter feito parte da minha vida. Foi ela que me fez levar a vida apaixonadamente, que colocou o desejo de um compromisso mais sério. Ela era simplesmente a razão do meu viver quando meus pais morreram. Nela eu encontrei a luz para os meus dias mais escuros.
Nunca vou entender por que Allah levou minha doce Samira. Sempre me pergunto por que ela morreu e eu sobrevivi.
Em veneração a ela, estou cumprindo a promessa que fiz. Por isso estou em Londres tentando me reerguer. Acredito que se não fosse pela promessa, estaria no meu país esperando uma bomba cair sobre minha cabeça para acabar logo com tudo. Assim, eu poderia me unir às pessoas que mais amei nessa vida.
Fungo.
Retiro toda a minha roupa e caio na cama como vim ao mundo. Fico então pensando na minha futura esposa, Amanda, a garota do acordo.
Linda e provocante. É difícil confessar isso até para mim mesmo. Nunca tive olhos para outra mulher que não fosse Samira, mas aquela garota conseguiu despertar minha atenção.
Os cabelos castanhos quase acobreados, os olhos da cor do mel, sobrancelhas bem-feitas e a boca carnuda são um conjunto de coisas que parecem ter sido feitas para seduzir os homens de pequena fé. E o corpo? Escultural. Amanda é uma perdição para muitos homens, mas não para mim. Sou muito centrado naquilo que coloco como objetivo. Não perco facilmente a cabeça.
Se bem que quando ela deu aquela cruzada de pernas.
Allah! Não foi fácil retirar os olhos daquela bela imagem. Fez aquilo para me provocar? Não sei. Eu verdadeiramente não esperava que ela fosse tão bonita, e posso dizer que isso não me agradou. Ela ficaria surpresa se lesse meus pensamentos de antipatia por ela naquela hora. Ela pode ter mexido com as reações do meu corpo, mas nunca conseguirá fazer isso com meu coração. Não sobrou nada dentro de mim. Nem para ela, nem para ninguém. Sou oco por dentro. Uma casca ambulante. Apenas faço o que precisa ser feito. E se um dia eu me sentir pronto para me casar novamente, será com uma jovem da minha raça. Uma mulher como minha Samira, que cultua meus valores, para que eles nunca se percam...
AmandaCom o dinheiro para liquidar minhas dívidas as preocupações acabaram, mas não estou em paz. Eu me sinto agitada.Não sei por que me sinto assim?Era para eu estar comemorando por ele ter agido de forma arredia, seca; no entanto, algo naquele sírio mexeu comigo.Ele conseguiu o impossível: despertar minha atenção.Por ser maduro e bonito?Não. Não é isso.Claro que sua masculinidade me atraiu bastante, mas acredito que seja mais do que isso. Talvez por ele ser diferente dos caras vazios de hoje em dia. Um bando de babacas mais chegados aos prazeres da carne do que no intelectual.Dou uma inspirada funda e me viro do outro lado da cama. Meus olhos nesta hora focam o rádio-relógio.Uma hora da manhã.Deus! Preciso dormir para amanhã enfrentar mais um dia de trabalho.Duas semanas depois...Casamento de Amanda Lawrence e Karan Bar QamarAmandaDeus! Estou nervosa como uma verdadeira noiva! Penso sentindo o suor frio surgindo na minha testa. Não deveria. As dívidas estão pagas, é só
―Oi, Karan. Não sei se reparou, mas temos plateia. Achei melhor que todas as garotas do meu trabalho acreditassem nessa far...Karan interrompe o que eu ia dizer quando ele retira sua máscara e dá um passo em minha direção. Então ele ergue sua mão e retira a minha com delicadeza e a entrega para mim. Eu a pego da mão dele tentando ignorar minhas pernas trêmulas, dizendo para mim mesma que isso não significa nada para mim. Quase infarto quando sinto seu braço me envolvendo e me puxando ao encontro de sua montanha de músculos. Seu perfume me deixa quente e atordoada. Ergo meu rosto para ele enquanto o seu desce e sua testa pousa na minha. Fica um tempo assim e então seu lindos olhos azuis procuram os meus e eu leio neles o que ele está prestes a fazer.―Relaxe.Relaxar?Eu precisaria estar morta para ignorar esse homem. A perfeição destes olhos azuis sombreados por cílios longos e negros. A barba escura bem-feita. Os lábios cheios na medida certa, os dentes certinhos e muito brancos, fo
Começamos a fazer poses bonitas para o fotógrafo, nossos corpos ajustados às exigências da câmera, enquanto os sorrisos se tornam apenas sombras de felicidade fabricada. Cada clique captura um teatro bem ensaiado, o quadro de um casal apaixonado que não existe de verdade. Mas é quando sinto seus dedos apertarem minha cintura, com mais intenção do que o esperado, que meu coração dispara e uma avalanche de sentimentos toma conta de mim.Seus lábios ainda pressionam os meus, e por um momento, é como se o mundo ao nosso redor desaparecesse, deixando apenas a presença dele e a força irresistível desse toque. Os flashes continuam, me lembrando que tudo isso é apenas um cenário, uma farsa para os outros. Ainda assim, a raiva cresce em mim como uma chama alimentada por oxigênio. Raiva de como ele me afeta, de como cada parte de mim parece ceder àquele contato, enquanto eu sei que para ele não é nada mais do que uma cena bem atuada.Sua mão escorrega para o meu quadril, apertando com firmeza,
Sigo até o meu apartamento, com Karan logo atrás. O som dos passos dele parece ecoar mais alto no corredor, como se cada um fosse um lembrete da presença pesada que ele traz. Quando alcançamos a porta, abro e seguro-a para que ele entre. Assim que ele cruza o limiar, fecho a porta, sentindo o clique da tranca como uma confirmação da nossa convivência inevitável.Ao encará-lo na sala, uma sensação desconfortável me atinge: o ambiente parece menor, quase sufocante. A altura de Karan e o porte de seus ombros, que já chamavam atenção antes, agora parecem dominar o espaço. Minhas mãos se entrelaçam nervosamente, e percebo que minha calma escapou sem eu perceber.— Como sabe, você terá um quarto para dormir — começo, a voz levemente trêmula, mas tentando soar firme. — E, caso os agentes nos façam uma visita, sua cama deve estar sempre arrumada para passar a impressão de que é um quarto de hóspedes.Dou uma pausa, observando-o, mas ele não dá nenhum sinal de reação. Nem uma palavra, nem um m
Lembranças do meu casamento com SamiraNeste dia, o sheik Abdul Bashir nos aguardava para oficializar nosso casamento em uma mesquita a quatro quilômetros da casa de Samira. Meu coração estava acelerado, não apenas pelo calor sufocante do dia, mas pela proximidade de realizar o sonho que alimentamos juntos por tanto tempo.Paro meu carro em frente ao portão dela e deixo o motor ligado para manter o ar-condicionado funcionando. Mesmo assim, parece que o calor não se dissipa; é como se o próprio destino estivesse pulsando ao meu redor. Quando Samira aparece, meu mundo se ilumina. Ela está lindíssima. Um hijab branco cobre seus cabelos negros como seda, os olhos destacam-se em contraste com a maquiagem impecável, e o vestido, da mesma cor do lenço, é ornamentado com delicadas faixas douradas que cintilam sob o sol.Nossos olhares se encontram. Os olhos dela, negros como uma noite sem lua, brilham com emoção. Ela sorri, e eu sinto o coração vacilar, tomado por uma felicidade tão intensa q
Fecho a porta, mas meu coração ainda está acelerado. A visão daquele deus árabe sem camisa não sai da minha mente. É o tipo de beleza que poderia deixar até uma freira sem fala. Aquele peito largo, coberto por uma massa de pelos castanhos... uma perdição. Mas não foi isso que me deixou inquieta e sim aquela cicatriz.Deus do céu, o que pode ter acontecido com ele? É enorme, brutal, como se contasse uma história que ninguém deveria viver. Fecho os olhos por um momento, tentando afastar a imagem, mas ela continua pulsando na minha mente. Algo grave deixou essa marca em Karan. Algo que ele nunca vai me contar.Suspiro, tentando me recompor. Parece que essa semana será assim: refeições solitárias, cada um no seu canto. Por mais que eu odeie admitir, já estou acostumada com a solidão. Desde antes da morte da minha mãe, convivo bem com isso. Por que agora seria diferente?E se pensar bem, comer com ele seria um ato estranho e sua frieza, seu mal humor têm deixado muito clara sua intenção: c
AmandaO crepúsculo aparece no horizonte, tingindo o céu com tons de laranja e púrpura. A luz suave reflete nas janelas do meu edifício, trazendo à memória um passado que aquece e fere ao mesmo tempo. Lembro-me dos domingos com mamãe, quando descíamos para caminhar, sentindo o sol nos aquecer enquanto conversávamos sobre a vida.Caminho lentamente até o banco que costumávamos ocupar. Era aqui que eu abria meu coração, contando a ela sobre os desafios do trabalho, as alegrias e dores da minha rotina, e, às vezes, até confessando os segredos do meu coração.A saudade é como uma mão invisível que aperta meu peito. Sentindo o peso disso, retiro a máscara e fecho os olhos. Inclino o rosto para o céu e puxo uma respiração profunda. O aroma da grama recém-cortada mistura-se com a brisa fresca que acaricia meu rosto. É um momento de calma em meio à confusão dos meus pensamentos.Quando abro os olhos novamente, minha visão se eleva até a janela do meu quarto. As luzes estão acesas, um sinal cl
Seus olhos deixam os meus por um instante e se voltam para o envelope, onde as fotos ainda estão à mostra na cama. Quando ele olha para mim novamente, seus dentes estão trincados, e posso ouvir o som de sua respiração pesada.—Não? Você acha que sou um... um... um ghabiun? —ele cospe a palavra com tanta raiva que até parece doer em sua garganta.Eu fico aturdida, tentando entender o que ele acabou de dizer. A palavra soa estranha, mas ao mesmo tempo, reconheço a intensidade de sua indignação.—Ghabiun? —repito, hesitante.Ele parece ainda mais irritado, o rosto ficando mais vermelho enquanto procura uma tradução em sua mente. É como se sua fúria o impedisse de encontrar a palavra certa.Percebendo o quão perto ele está de perder completamente o controle, resolvo ajudá-lo.—Você quer dizer bobo, idiot@? —sugiro com cautela, minha voz suave tentando aplacar a tempestade.Ele me encara, seu olhar queimando com emoções que parecem querer transbordar. Por um momento, o tempo para.—Isso! E