Ele parece ter dificuldade para focar meu rosto, ainda apreciando a vista. De repente, eu me sinto bem com isso. Faz tanto tempo que ninguém olha para mim desse jeito. Sei que sou culpada por isso, ultimamente tenho me mantido invisível, saído pouco.
― O que quer saber mais sobre mim? ― questiona secamente.
Eu empino meu nariz, encarando o arrogante e que, infelizmente, é lindo demais para não ser notado.
― Gostaria de saber por que você escolheu viver aqui? Geralmente os sírios buscam refúgio na Sérvia, Alemanha, Suécia, entre outros países.
Ele solta o ar e olha para o chão, como se fugisse de meus olhos. Quando olha para mim, os sulcos da testa estão mais profundos, sua respiração sai do normal, seu olhar expressa dor, tristeza, solidão.
― Antes da guerra civil estourar, eu viajei como turista para cá com meus pais e meu irmão caçula. Foi bom estar com eles aqui. Por isso escolhi esse país para recomeçar.
Eu engulo em seco. Será que morreram todos? Por isso ele me encara com essa tristeza toda? Provavelmente sim. Bem, eu não sou louca de perguntar.
― Mas por que se casar? Um pedido bem-sucedido de refúgio normalmente significa receber o status de refugiado, a proteção mais ampla que permite a um migrante permanecer e obter trabalho.
Sua expressão muda, e ele me olha com impaciência agora:
― O sistema de asilo é extremamente disfuncional aqui na Europa e isso tem colaborado para agravar a crise dos refugiados. A aprovação do requerimento pode levar meses e ainda correria o risco de ter meu pedido negado. Como eu tenho dinheiro, estou indo pelo caminho mais rápido. Não sei se sabe, mas eu era um rico comerciante no meu país.
― Por isso fala tão bem o inglês?
― Exatamente.
― Sua loja vendia o quê?
― Produtos importados.
― Você não pretende voltar mais para o seu país quando a guerra acabar?
Após minhas palavras, ele fica me olhando calado. O tempo corre, me deixando ainda mais nervosa.
― Não. Não há mais nada para mim lá. Então é isso? Findaram-se as perguntas?
Vejo o quanto ele está irritado. Parece que a qualquer momento me mandará para aquele lugar.
― Sim.
― Ótimo ― ele se levanta ― então posso marcar o casamento no cartório aqui perto?
― Sim, pode.
― Eu avisarei por Vitor a data e o horário. Ele comunicará a Samantha e ela a você.
― Não é mais simples você pegar meu telefone?
Ele não responde e eu me pergunto o que pode ter de errado em pegar meu telefone. Por fim, ele dá de ombros.
Eu me levanto do sofá e vou até a mesa de telefone e procuro um papel nas gavetas. Quando encontro, escrevo meu número para ele. Então me viro e quase dou um encontrão com Karan, que estava em pé pertinho de mim.
Tenho dificuldade em subir meus olhos e focar o seu rosto por causa da linda visão da sua camisa branca entreaberta. Ela revela um peito duro cheio de pelos negros que cobrem o bronzeado bonito de sua pele.
Consigo! Foco seu rosto e estendo a folha para ele.
―Seu número.
Ele retira um maço de dinheiro.
―Seu dinheiro.
Não sei o porquê, mas eu me sinto como se fosse uma prostituta ao pegá-lo. Talvez porque ele não tenha facilitado em nada esse acordo.
Eu deveria mandá-lo para o inferno!
Eu pego o maço, e ele pega o meu papel sem olhar, sem ao menos checar se entende minha letra que não é muito boa. Ele o guarda no bolso da sua calça.
Sua expressão agora é séria para mim. Ele me encara como um sargento olharia seu soldado.
―No dia vista-se como uma noiva. Por causa da imigração, tiraremos algumas fotos juntos. Com certeza eles nos farão uma visita. Então é bom espalhar fotos pelo apartamento, e esse dia é ideal para isso.
―Sim, senhor.
Ele não ri da minha brincadeira.
Na verdade, ele não ri.
—Ah, a propósito, o apartamento que você vive é seu ou alugado?
—Alugado.
—Entendi. Faça as contas dos gastos mensais que irei te dar para ajudar com as despesas.
Bem. É isso. Diga a seus amigos que sinto muito por não ficar, mas estou cansado. Hoje troquei de turno para estar aqui e trabalhei até agora.
A desculpa para ir embora não me parece muito convincente. Acredito piamente que ele é do tipo fechado.
―Eu também trabalhei até agora e vou ficar.
―É, mas eu não vou.
―Se for embora, Vitor ficará chateado.
Deus! Sou eu mesma insistindo para ele ficar?
Silêncio.
Ele me olha introspectivo.
―Que fique. Até outro dia ―diz e se afasta.
Giro minha cabeça e o observo abrindo a porta e sumindo por ela.
Minutos depois, estou sentada no sofá, bebendo uma taça de vinho gelado, refletindo sobre a conversa que tive com aquele sírio. Chego à conclusão: não terei problemas com Karan. Ele é um homem introspectivo e sabe bem os seus limites. Então, por que estou me sentindo tão estranha?A porta se abre, e meus amigos entram, tirando as máscaras e rindo muito de algo. Todos param de falar quando me veem sozinha no sofá.―E Karan? ―Samantha me questiona, e seu rosto se torna severo. ―Espera aí! Você não o colocou para correr, não é? Não haverá casamento, é isso?―Sim, haverá. Ele ficou de marcar a data.Samantha solta o ar.―Puxa! Que bom! Mas, onde ele está?―Foi embora.―Ele disse por que foi embora? ―Vitor me questiona.―Disse que estava cansado.Vitor balança a cabeça em negativa.―Desculpa dele. Hoje o movimento foi baixo. Esse vírus tem atrapalhado muito os comércios e restaurantes.Samantha se vira para eles:―Rapazes, por que não vão colocando a mesa? Só vou trocar uma palavrinha com
AmandaCom o dinheiro para liquidar minhas dívidas as preocupações acabaram, mas não estou em paz. Eu me sinto agitada.Não sei por que me sinto assim?Era para eu estar comemorando por ele ter agido de forma arredia, seca; no entanto, algo naquele sírio mexeu comigo.Ele conseguiu o impossível: despertar minha atenção.Por ser maduro e bonito?Não. Não é isso.Claro que sua masculinidade me atraiu bastante, mas acredito que seja mais do que isso. Talvez por ele ser diferente dos caras vazios de hoje em dia. Um bando de babacas mais chegados aos prazeres da carne do que no intelectual.Dou uma inspirada funda e me viro do outro lado da cama. Meus olhos nesta hora focam o rádio-relógio.Uma hora da manhã.Deus! Preciso dormir para amanhã enfrentar mais um dia de trabalho.Duas semanas depois...Casamento de Amanda Lawrence e Karan Bar QamarAmandaDeus! Estou nervosa como uma verdadeira noiva! Penso sentindo o suor frio surgindo na minha testa. Não deveria. As dívidas estão pagas, é só
―Oi, Karan. Não sei se reparou, mas temos plateia. Achei melhor que todas as garotas do meu trabalho acreditassem nessa far...Karan interrompe o que eu ia dizer quando ele retira sua máscara e dá um passo em minha direção. Então ele ergue sua mão e retira a minha com delicadeza e a entrega para mim. Eu a pego da mão dele tentando ignorar minhas pernas trêmulas, dizendo para mim mesma que isso não significa nada para mim. Quase infarto quando sinto seu braço me envolvendo e me puxando ao encontro de sua montanha de músculos. Seu perfume me deixa quente e atordoada. Ergo meu rosto para ele enquanto o seu desce e sua testa pousa na minha. Fica um tempo assim e então seu lindos olhos azuis procuram os meus e eu leio neles o que ele está prestes a fazer.―Relaxe.Relaxar?Eu precisaria estar morta para ignorar esse homem. A perfeição destes olhos azuis sombreados por cílios longos e negros. A barba escura bem-feita. Os lábios cheios na medida certa, os dentes certinhos e muito brancos, fo
Começamos a fazer poses bonitas para o fotógrafo, nossos corpos ajustados às exigências da câmera, enquanto os sorrisos se tornam apenas sombras de felicidade fabricada. Cada clique captura um teatro bem ensaiado, o quadro de um casal apaixonado que não existe de verdade. Mas é quando sinto seus dedos apertarem minha cintura, com mais intenção do que o esperado, que meu coração dispara e uma avalanche de sentimentos toma conta de mim.Seus lábios ainda pressionam os meus, e por um momento, é como se o mundo ao nosso redor desaparecesse, deixando apenas a presença dele e a força irresistível desse toque. Os flashes continuam, me lembrando que tudo isso é apenas um cenário, uma farsa para os outros. Ainda assim, a raiva cresce em mim como uma chama alimentada por oxigênio. Raiva de como ele me afeta, de como cada parte de mim parece ceder àquele contato, enquanto eu sei que para ele não é nada mais do que uma cena bem atuada.Sua mão escorrega para o meu quadril, apertando com firmeza,
Sigo até o meu apartamento, com Karan logo atrás. O som dos passos dele parece ecoar mais alto no corredor, como se cada um fosse um lembrete da presença pesada que ele traz. Quando alcançamos a porta, abro e seguro-a para que ele entre. Assim que ele cruza o limiar, fecho a porta, sentindo o clique da tranca como uma confirmação da nossa convivência inevitável.Ao encará-lo na sala, uma sensação desconfortável me atinge: o ambiente parece menor, quase sufocante. A altura de Karan e o porte de seus ombros, que já chamavam atenção antes, agora parecem dominar o espaço. Minhas mãos se entrelaçam nervosamente, e percebo que minha calma escapou sem eu perceber.— Como sabe, você terá um quarto para dormir — começo, a voz levemente trêmula, mas tentando soar firme. — E, caso os agentes nos façam uma visita, sua cama deve estar sempre arrumada para passar a impressão de que é um quarto de hóspedes.Dou uma pausa, observando-o, mas ele não dá nenhum sinal de reação. Nem uma palavra, nem um m
Lembranças do meu casamento com SamiraNeste dia, o sheik Abdul Bashir nos aguardava para oficializar nosso casamento em uma mesquita a quatro quilômetros da casa de Samira. Meu coração estava acelerado, não apenas pelo calor sufocante do dia, mas pela proximidade de realizar o sonho que alimentamos juntos por tanto tempo.Paro meu carro em frente ao portão dela e deixo o motor ligado para manter o ar-condicionado funcionando. Mesmo assim, parece que o calor não se dissipa; é como se o próprio destino estivesse pulsando ao meu redor. Quando Samira aparece, meu mundo se ilumina. Ela está lindíssima. Um hijab branco cobre seus cabelos negros como seda, os olhos destacam-se em contraste com a maquiagem impecável, e o vestido, da mesma cor do lenço, é ornamentado com delicadas faixas douradas que cintilam sob o sol.Nossos olhares se encontram. Os olhos dela, negros como uma noite sem lua, brilham com emoção. Ela sorri, e eu sinto o coração vacilar, tomado por uma felicidade tão intensa q
Fecho a porta, mas meu coração ainda está acelerado. A visão daquele deus árabe sem camisa não sai da minha mente. É o tipo de beleza que poderia deixar até uma freira sem fala. Aquele peito largo, coberto por uma massa de pelos castanhos... uma perdição. Mas não foi isso que me deixou inquieta e sim aquela cicatriz.Deus do céu, o que pode ter acontecido com ele? É enorme, brutal, como se contasse uma história que ninguém deveria viver. Fecho os olhos por um momento, tentando afastar a imagem, mas ela continua pulsando na minha mente. Algo grave deixou essa marca em Karan. Algo que ele nunca vai me contar.Suspiro, tentando me recompor. Parece que essa semana será assim: refeições solitárias, cada um no seu canto. Por mais que eu odeie admitir, já estou acostumada com a solidão. Desde antes da morte da minha mãe, convivo bem com isso. Por que agora seria diferente?E se pensar bem, comer com ele seria um ato estranho e sua frieza, seu mal humor têm deixado muito clara sua intenção: c
AmandaO crepúsculo aparece no horizonte, tingindo o céu com tons de laranja e púrpura. A luz suave reflete nas janelas do meu edifício, trazendo à memória um passado que aquece e fere ao mesmo tempo. Lembro-me dos domingos com mamãe, quando descíamos para caminhar, sentindo o sol nos aquecer enquanto conversávamos sobre a vida.Caminho lentamente até o banco que costumávamos ocupar. Era aqui que eu abria meu coração, contando a ela sobre os desafios do trabalho, as alegrias e dores da minha rotina, e, às vezes, até confessando os segredos do meu coração.A saudade é como uma mão invisível que aperta meu peito. Sentindo o peso disso, retiro a máscara e fecho os olhos. Inclino o rosto para o céu e puxo uma respiração profunda. O aroma da grama recém-cortada mistura-se com a brisa fresca que acaricia meu rosto. É um momento de calma em meio à confusão dos meus pensamentos.Quando abro os olhos novamente, minha visão se eleva até a janela do meu quarto. As luzes estão acesas, um sinal cl