- O que é isso que desenhou aí, Lacantra?
- Eu não sei o nome, mamãe, mas sei que seria muito bom para falar com papai quando ele estiver longe nas batalhas ou caça.
- Essa foi minha primeira lembrança, creio que eu deveria ser muito pequena, mas me lembro que havia sonhado com isso, sabe. Corri para fora e risquei em frente à nossa porta com um graveto qualquer. Minha mãe até chamou avó Dabi para ver, ela achou muito interessante o desenho e por mais que eu tenha tentado explicar seu funcionamento, eu não conseguia, era muito novinha ainda.
“É o mesmo desenho que já fiz tantas vezes nos anos que se passaram, sabe aquele desenho quadrado que já fiz para você, já até me acostumei a desenhá-lo. Ainda tenho visões com ele quando durmo, ele e mais tantas outras que não sei explicar, são coisas que nunca vi. E qual sua lembrança mais distante? - Perguntou ao amigo Lucca.
- Me confundo entre duas, não sei qual é a mais antiga, mas essas duas são as mais antigas que tenho: De um Cintur que correu atrás de Orna, a menina que morava na choupana ao lado, e eu. Estávamos buscando ovos deles e o ninho estava vazio, de repente um deles estava ao nosso lado. Orna me arrastou, caímos, minhas pernas eram muito curtas para acompanhá-la e nos jogamos no rio. Me lembro que ficamos lá até papai nos buscar, que foi quando o sol estava se escondendo. Talvez nem tenha demorado tanto, mas quando se é muito pequeno, as coisas se estendem. Outra lembrança que tenho, é a de acordar muito quente e com a visão embaçada. Não conseguia falar, minha garganta doía e quando mamãe me pegou, é, talvez essa seja a mais antiga, pois mamãe ainda me carregava no colo. Quando ela me pegou, assustou-se e disse ao papai que eu estava com Cinni. O corpo quente, segundo ela me disse anos depois, permaneceu por quase uma lua. Fiquei muito mal e até fui levado á mãe Shetary. Ela me fez tomar várias beberagens, argh, isso já não me lembro, mas me contaram.
- Creio que eu não tenha tido Cinni. Nunca perguntei á mamãe, mas se tivesse, ela teria comentado. Vamos continuar a pega dos ovos enquanto eles estão fora?
Lacantra e Lucca passaram para os ninhos próximos á procura de mais ovos de Cintur.
Cada ovo dessa ave, daria para uma família de umas cinco pessoas se alimentarem por uns três dias. Não era simples a colheita, os Cinturs raramente saíam de seus ninhos, e tinha que se saber a hora exata de colher e fugir antes que retornassem ao ninho. Geralmente era o pai quem cuidava dos ovos, e seu tamanho. era assustador. Muitos já haviam sido pisoteados, ossos quebrados, bicadas e até morte.
Poucos se aventuravam na colheita, mas os escolhidos, que passavam uma boa temporada sendo treinados, sabiam a hora certa de colher e jamais colhiam mais que o necessário.
- Depois você faz novamente o rabisco das coisas que vê enquanto repousa, de suas visagens?
Os sonhos mais reais, os que eram lembrados, chamavam de visagem.
Lacantra os tinha desde muito pequena.
Assustara seus pais com diversas visagens, cada uma mais realista que a outra. Em seus sonhos, via coisas inexplicáveis e por sorte desenhava bem para os expressar, tentar explicar. Mesmo agora, sendo uma adolescente de dezessete anos, muitos lhe procuravam para que ela desvendasse suas visagens.
Ela não se considerava uma visadora, que era como chamavam os que tinham o dom de desvendar sonhos, apenas sonhava coisas absurdas que a deixava sem entender.
A cada troca de lua, ela e Lucca, seu amigo mais antigo, saíam á caça. Tanto de ovos, quanto de peixes e pequenos animais para ajudar na alimentação de Pua, a tribo em que viviam com seus pais e irmãos e mais duzentas pessoas, aproximadamente.
Cada qual, contribuía de uma forma e juntos, funcionavam como uma comunidade.
- O Solstício está chegando. - Disse-lhe Lucca.
- É, eu sei,. Espero que mudem algo dessa vez. Gostaria de ir mais longe, você não?
- Ás vezes sim, mas depois penso que seremos igual aos Cândalos viajantes. Já pensou, ficar várias luas longe a caçar, resolver questões de Pua?
- Você é um preguiçoso, sabia? - Lacantra deu-lhe um peteleco na orelha, sorrindo.
- Ai! Não faça isso. Se eu derrubar algum ovo, não voltarei para pegar mais e a culpa será sua. Não é preguiça… Mas já observou quando voltam, o alívio, a saudade que demonstram ter dos que ficaram?
- Sim, mas tudo tem um preço, não é? Eu gostaria de ir mais longe, ver mais tribos, outros costumes. Será que Luty se acostumou a viver em Tangui?
- Já se passaram mais de dez luas, creio que sim. Vi sua substituta há alguns dias atrás e não me parecia triste.
Ambos tinham a expressão fechada ao mencionarem esse assunto.
Os Sivaês se encontravam de tempos em tempos, cada um de uma tribo, algumas há dias de viagem para um Fulgot, que era onde discutiam melhorias, sejam quais fossem, que julgassem necessárias para o bem comum.
Luty, um jovem da tribo de Pua, fora trocado, realocado para Tangui, uma tribo vizinha que estava em defasagem de rapazes de sua idade. A troca fora feita por uma jovem que viera morar em Pua. Os pais de ambos, não questionaram a decisão do conselho dos Sivaês.
Os Sivaês eram os mais velhos de cada tribo, e por hierarquia, tomavam decisões e eram sempre procurados para ajudar a tribo. No Fulgot, os membros mais antigos, parlamentavam por alguns dias e decidiam o que seria o melhor a se fazer em decisões.
Lacantra tinha dois irmãos. Pipa, a caçula e e Carh, o irmão mais velho que já não morava mais com eles mas havia feito o enlace no último inverno. Carh morava próximo á família e os visitava todos os dias com sua esposa, Sáhh. Lacantra era alta, membros longos e magra, o pai sempre a chamava de magrela; os olhos e os cabelos, eram semelhantes ao de seu pai, de um castanho mais escuro que o da mãe e a irmã. Os três irmãos tinham dentes pequenos e gengiva proeminente.
Lucca era filho único, seus pais ainda tentavam mais filhos, mas fracassaram até o momento. Se sentiam sortudos pelo filho único ter vingado. Um pouco mais alto que a amiga, era um lindo rapaz; os músculos já apareciam e deixava para trás o aspecto juvenil, graças aos treinos que iniciara com os Cândalos. Começara os treinamentos há um ano e agora com dezoito, já aumentara o físico. Lucca tinha os cabelos negros e curtos, os lábios finos, olhos tão pretos que mal se viam as pupilas.
Pua contava com duzentas e sete pessoas. Em diversas idades. Idosos, casais, crianças.
Era considerado até bem populoso. Algumas tribos não contavam com cem pessoas no total.
Suas moradias, eram fabricadas por eles mesmo e em uma cooperativa milenar, um ajudava ao outro, às vezes sem sequer ser pedido. Funcionavam bem.
- Vamos para Tiô mais tarde? - Questionou Lucca a amiga assim que chegaram á seu condado, sua tribo levavam cerca de uma hora para ir até a floresta onde pegavam ovos de Cinturs.- Ah você está de sangue, né? Havia me esquecido.
- Sim, odeio que vocês,machos sintam quando estamos assim. Injusto isso.
Qualquer macho, seja animal ou humano, sentiam quando uma fêmea estava menstruada. Isso facilitava na cópula animal e dizia quando a fêmea humana estava pronta para reprodução. Lacantra insistira em fazer a colheita dos ovos mesmo sabendo que poderia atrapalhar por causa do cheiro que exalava em seu período menstrual. Não quis trocar com seu irmão e teve sorte de não ter sido pega por um Cintur.
- Mãe, Pipa, cadê vocês? Trouxe três ovos e minhas costas estão se partindo do peso.
Sua mãe veio recolher os ovos e guardá-los.
Tábea, mãe de Lacantra, era baixa e obesa. Cabelos longos, castanhos já grisalhos, o branco vencia a cor original. Feição amável, sua mãe era paciente mas tinha o pulso firme com os filhos e o marido, Puzzo. Apareceu á porta com seu gingado, ansiosa para preparar os ovos e estocar para a semana. Dois, ela passaria aos vizinhos. Um seria o suficiente para sua família, tendo outros alimentos para acrescentar.
- Essa sua dor nas costas, deve ser do sangue. Deixe que Pipa me ajuda agora, vá fazer uma mistura de ramas, beba e se aqueça, logo estará melhor.
Pipa, como os irmãos, era alta, puxara o pai na estatura e ossatura. Magros com membros longilíneos e cabelos claros como o da mãe.
Pipa estava na bica de água, lavando roupas quando a mãe a chamou para ajudar. Entrou sorridente, uma característica sua, sempre sorrindo. Tinha a gengiva avantajada e dentes pequenos, como sua mãe e seu sorriso e a delicadeza de sua fala, sempre baixa, passava uma sensação de paz para quem conversava com ela.
- Tive uma visagem hoje. - Disse, enquanto sentava-se em uma pedra ao lado da mãe no cômodo mais movimentado da choupana. O pai havia aumentado a choupana inúmeras vezes por causa dos filhos altos que cresceram, como ele dizia, rapidamente.
- Ah, por favor, me conte? - Pediu Lacantra, animada.
- Não foi igual as suas, já aviso logo, mas foi estranha. Me ajude com essas bagas enquanto guardo o ovo.
- Sabia. Você ouviu mamãe me dizer que estou de folga e quer que eu a ajude para me contar a visagem. Mamãe, faça-a contar. - Pediu Lacantra, fazendo beicinho.
- Você teve sua chance de se retirar, agora ajude-nos um pouco.
O cômodo era utilizado para armazenarem comida e se alimentarem. A choupana era comprida, cerca de dez metros total, dividido em áreas de dormir, se alimentarem e se abrigarem do frio rigoroso no inverno.
Lacantra e Pipa dividiam um cômodo para dormir; o que usavam como cama, eram mantos que jogavam a um canto, às vezes vários caso fosse inverno. Cada uma arrumava seus mantos em um determinado lugar do quarto. Tinham também alguns baús para guardarem suas coisas, seus pergaminhos, suas vestes e o que desejassem guardar.
- Eu estava com Japur no rio Tisda. - Pipa contava-lhes seu sonho - Ele caía na água mas não se molhava. Eu o olhava e não entendia como ele podia não se molhar. Pulei junto com ele, mas a água espadanava toda e eu fiquei encharcada. Fiquei enraivecida por ele rir alto de mim por ter me molhado e ele não.Pipa contava enquanto retirava as bagas e as colocava em uma tigela. Lacantra e a mãe ficaram vidradas na história do sonho da jovem que desde muito nova, era apaixonada por Japur.- Que estranho. - Disse a mãe quando a filha terminou sua narração. - Vocês tem visagens estranhas, eu me deito e apago até o dia seguinte, talvez até tenha alguma, mas basta eu colocar os pés no chão ao me levantar de manhã, para se esfumaçarem.Pipa nunca teve dúvidas de que se casaria um dia com o jovem que retribuía seu amor. Ela tinha
- Eu não cheguei a os seguir, mas vi quando se afastaram rapidamente. Eram uns vinte, aproximadamente. Mas ficaram apenas olhando para cá por uns instantes e foram embora.Ela ouviu o que parecia ser o final de algo importante que o irmão dizia aos pais.Julgou ser importante ao ver a feição da mãe e da cunhada. Sáhh tinha a cabeça baixa, preocupada e sua mãe, olhava para o filho com os punhos cerrados ao lado do corpo, lívida. Seu pai, sentado á mesa, tinha os lábios como uma linha. Uma mistura de ira e medo permeavam sua feição.- Os Brucks? - Lacantra perguntou, já imaginando a resposta. Seu irmão, suavizou a expressão preocupada ao ver a irmã entrando na cozinha, assentiu e se desencostou da mesa para abraçá-la.- Nada com o que se preocupar, pixotinha. - Chamou-a pelo apelido carinhoso, enquanto apertava-a ao seu
- Foi engraçado dessa vez.- Lucca, Lacantra e Pipa estavam no córrego caçando Murtilas, uns bichinhos que desprendia de suas asas um pó fino com uma luminescência que eles adoravam usar como tinta. A fosforescência de suas diminutas asas, perduravam por horas e as caçavam sempre e usavam o líquor para se pintarem. Pintavam os rostos com discos ou formatos de desenhos, escreviam arabescos que ficavam acesos em suas peles por horas.Murtilas eram usadas também para demarcar o cabo das espadas em lutas noturnas. Sua clareza e cores diversificadas, ajudavam a encontrar o animal abatido ou o inimigo em uma guerra.- Nos conte - Pediu Pipa. Seu rosto claro, salpicado de sardas, estava mesclado de verde e amarelo em lindos arcos desenhados com as asas das Murtilas. O dia mal começara e os amigos esperavam Japur que tinha avisado na noite anterior que estaria ali antes deles chegarem. - Cadê
Fazendo uma força sobre humana, ela passou a mão pelos cabelos de Lucca e lhe disse que sentia muito.Vendo que a amiga estava fora do choque, ele se levantou e a puxou.Encontram Carh fora da tribo, ele havia corrido para pedir ajuda ou procurara uma forma de contra ataque que falhou, foi o que os sobreviventes disseram. Seu irmão fora um herói, salvara a vida de muitos na luta. Três Brucks foram mortos por ele e jaziam próximo de seu corpo.Sua esposa fora empalada por uma espada e para aumentar a agonia, fora encontrada na porta da casa dos sogros com a própria espada transpassada nas costas de sua mão e atravessara sua barriga. Tentara proteger seu bebê que nem se percebia que existia e foi ali que levou o golpe. O que sobrou de Puzzo e Tábea, mal dava para contar como corpo.Nem conseguiram escapar do fogo na choupana. Ninguém pôde explicar, mas supunha-se
- Tudo mudou, não é? - Lucca comentou com Lacantra quando seguiam os amigos de Pua e os anciões para o Fulgot, o conselho com os Sivaês após o ataque sofrido pelos Brucks e que prejudicou diversas tribos.Alguns Cândalos os acompanhavam. Esses eram homens e mulheres na idade entre dezessete a quarenta anos que iam a lugares mais longes, as vezes por dias em busca de alimentações ou melhorias para a tribo. Alguns casais se revezavam nessas viagens, um ficava para cuidar dos filhos enquanto o outro ia nas missões. Estavam sempre treinando para caças ou ataques. Treinavam com mestres na arte da luta.- Nada mais será como antes - Respondeu-lhe a moça, desanimada - Na última vez que fui a um Fulgot, eu era bem pequena e fiquei muito ansiosa, prometi á papai que não iria atrapalhar - A lembrança lhe deu um amargo na boca, lembrava-se de sua
O conselho, a reunião, seria iniciada no início da noite e o povo conversavam, trocavam idéias, diziam o que achavam que deveria ser feito á respeito dos Brucks e de outros predadores que todos enfrentavam.Lacantra, Lucca e Lutty, se afastaram e foram para longe dali, passeavam nas matas, colocavam os assuntos em dia. A jovem, interpelada pelo amigo que agora vivia distante, lhe contou sobre suas visagens, as que ele ainda não ouvira desde que fora realocado.Apenas no início da reunião, quando começava a anoitecer e assentos foram improvisados e agrupados de forma que todos se sentassem, que Frizzat apareceu. Dessa vez ele não estava só.Era costume sempre comparecer ao Fulgot sozinho, mas dessa vez, estava acompanhado de um jovem. Um rapaz forte, de costas largas, alto, pele curtida do sol, cabelos pouco abaixo dos ombros, trançados e claros, quase brancos. Seus olhos e
Pela primeira vez um Fulgot foi interrompido.Após um dos Sivaê cochichar no ouvido de Sácia, essa pediu silêncio e pediu que se reunissem mais tarde. Aquele conselho tinha saído dos trilhos, e perdendo as forças, sem saber que seria interrompida, não estava preparada para debater com a jovem e nem com todos que se levantaram em protesto. Tinham que pensar em algo, não podiam voltar atrás em uma decisão, a hierarquia era importante. Se aceitassem o que a garota fez, jamais teriam respeito novamente. Se insistissem e a punissem, mandando-a para Falls, mostrariam crueldade e ela poderia levar adiante mesmo essa idéia e sem querer, criara um motim.Lacantra foi chamada pelo ancião de Pua. Ouviu o que ele e seus amigos lhe diziam, ela não deveria ter se rebelado em um conselho e devia ser advertida. Mas ela não abriu sua boca, não mudaria de idéia.
- Ele, Frizzat, é mesmo sempre assim tão fechado, trata á todos com rigidez? - Questionou-o.- Normal todos pensarem isso, mas não, Frizzat é muito brincalhão e educado. Sempre fala com todos com carinho. Está revendo a idéia de ir para Pief? - Perguntou-lhe Aloy.- Jamais. Pura curiosidade, como você mesmo disse, todos temos á respeito dele, normal.- Mas prefere mesmo ser uma renegada para sempre, envolver outras pessoas, mandá-las para Falls?Lacantra se levantou, enfurecida, quase caiu no riacho para poder ficar de frente para o jovem:- Não pedi que ninguém se interferisse em minha decisão. Nem mesmo aos meus amigos mais chegados. Pare de me acusar, seu puxa saco maldito. Volte ao seu senhor e diga que prefiro morrer a morar na tribo de vocês e saia daqui, suma de minha frente.Ela tremia e sua voz alta e seu dedo indicad