- Tudo mudou, não é? - Lucca comentou com Lacantra quando seguiam os amigos de Pua e os anciões para o Fulgot, o conselho com os Sivaês após o ataque sofrido pelos Brucks e que prejudicou diversas tribos.
Alguns Cândalos os acompanhavam. Esses eram homens e mulheres na idade entre dezessete a quarenta anos que iam a lugares mais longes, as vezes por dias em busca de alimentações ou melhorias para a tribo. Alguns casais se revezavam nessas viagens, um ficava para cuidar dos filhos enquanto o outro ia nas missões. Estavam sempre treinando para caças ou ataques. Treinavam com mestres na arte da luta.
- Nada mais será como antes - Respondeu-lhe a moça, desanimada - Na última vez que fui a um Fulgot, eu era bem pequena e fiquei muito ansiosa, prometi á papai que não iria atrapalhar - A lembrança lhe deu um amargo na boca, lembrava-se de sua família constantemente. Tudo a fazia se lembrar deles.
Haviam parado em um riacho para que os Nanotes bebessem água e descansassem. Já estavam viajando desde o dia anterior, pararam por três horas no meio da madrugada para se recostarem as cabeças mas ninguém conseguiu dormir. Todos os vinte e quatro integrantes daquele grupo, havia perdido alguém no ataque.
Nanotes eram animais grandes, usados como meio de transporte mais rápido. Tinham cerca de quase dois metros de altura, pesavam em média quinhentos quilos, eram mamíferos e dóceis, se treinados desde cedo.
Tinham pêlos curtos e a maioria eram coloridos. Pelo menos três cores e o mais raro deles, tinham uma cor só. Eram fáceis de ensinar e se abaixavam para que se subisse em seu lombo, geralmente a um comando de um toque em sua barriga.
Dormiam pouco e viajavam por horas antes de começar a ofegar. Tinham as orelhas enormes e ouviam muito bem quando chamado pelo dono, mesmo que a quilômetros de distância. Sua anca era rebaixada, sua parte superior, era levantada o que fazia suas pernas da frente ficarem mais distantes das da traseira, facilitando a subida.
Lucca e Lacantra dividiam um Nanote emprestado por um vizinho e em cada parada, alimentava-o com ramas da estrada empoeirada ou das que trouxeram amarrada no lombo do animal.
- Você precisa se esforçar para se alimentar, só líquido, não é o suficiente, Can - Lucca percebia que a amiga não tinha conseguido comer nos últimos dias.
- Quem vê assim, acha que você tem comido muito - Ela foi ríspida. Sentada á beira do riacho, esperando o comboio se reagrupar, ela olhava ao longe, sem nada ver.
Após uns instantes, ela se deu conta de que Lucca ficara quieto ante sua resposta seca.
- Me desculpe, por favor… eu não sei mais o que fazer, a comida desce com dificuldade, eu …
Parou com medo de começar a chorar novamente.
- Fique tranquila - Ele a abraçou apertado - Dói cada vez mais, eu te entendo.
- Não sei o que planejar, como agir. A vontade é acordar e ver que tudo não passou de um sonho ruim.
- Creio que todos estão com o mesmo sentimento nosso. Muitas pessoas se foram.
Foram chamados para continuarem o trajeto. Uma chuva fina caía e o dia que já era por si só, desanimador e frio, piorou com a chuva fina.
- Não sabemos o que dirão, cada um tem uma opinião sobre tudo o que aconteceu - Era Guli, um ancião e sábio de Pua quem tomava a palavra. A chuva os tinha atrasado e agora que diminuíra, fizeram uma fogueira e comiam enquanto cada um planejava o que falaria no Fulgot.
- Vocês acham que Frizzat tem boas idéias dessa vez? - Um perguntara, com a boca cheia, devorando uma coxa de uma ave assada na fogueira.
- Ele não é muito de falar, não é? mas sempre quando fala, sugere boas idéias - Cada um tinha uma opinião.
- Não ajudou muito para todos, na última vez. Ao contrário, rejeitou a troca. Parece que nunca quer aceitar, sempre inventa algo para se eximir das idéias dos anciões, a impressão que dá, é que teme que nos infiltremos em sua tribo.
- Não é só você que tem essa impressão, sabia? Muitos o acham metido a besta.
- Por favor, não digam isso. Ele é apenas reservado, nem todos gostam de interagir e devemos respeitar. Pief é grande, uma das maiores que conheço, com mais de mil pessoas, não precisam de trocas - Alguns acalmavam os ânimos, evitando que levantassem a bandeira negativa sobre Frizzat, que tinha uma imagem forte e interpretada de diversas formas para cada um.
- Saipo já esteve em Pief. Há muito tempo - um ancião disse.
- Sério, e como é lá?
- Lá todos ajudam?
- Como fazem o sistema de caça?
Muitos queriam saber e choviam perguntas. Frizzat não tinha as porteiras abertas á visitantes, não fazia convites, e tinha um sistema de não pedir nem oferecer ajuda á ninguém.
- Lá é lindo - Respondeu o ancião e todos passaram a ouvir, calados com atenção - Frizzat é muito atencioso e educado. Segundo Saipo, ele andou por bons pedaços com ele por toda Pief, muito animado e explicando como era a tribo. Eles têm riquezas lá, funcionam como a maioria de nós, me parece, e funciona bem.
- Como assim riqueza? - Questionou um o que era a curiosidade da maioria.
- Há bastante prosperidade em Pief. Saipo me disse que a terra de Pief tem uma coloração diferente. Mais clara, eu acho, não me lembro, mas ele me disse que a tribo é toda ornada por verde. Flores, animais, são mais saudáveis, ou pode ter sido só uma impressão dele.
- Só não entendo por que não podemos nos misturar á eles. Isso deixa mais curiosidade acerca de Pief.
Lacantra e Lucca dormiram ouvindo o grupo falar sobre Pief e Frizzat e no que pareciam poucos minutos, já era hora de levantarem e se pôr a caminho, antes que o sol esquentasse muito.
O conselho dos Sivaês, chamado de Fulgot, era um conselho entre os os mais velho e acontecia entre as tribos de Patta e Rulha, o local era chamado de Groji, uma choupana grande e espaçosa, usada também como creche, onde as mães alternavam entre si para cuidarem das crianças enquanto outras se ocupavam de trabalhos.
Muitas mulheres trabalhavam com artesanato, como fabricação de vestes, no curtume que utiliza a tinta para tecidos, e algumas idéias de Lacantra, como rede para pesca, proteção para os pés, uma idéia inovadora que ela vira em uma de suas visagens e tantas outras idéias que ela tinha e era levada para o conselho e aprovada.
Chegaram á Groji pela hora do almoço e os que já lá se encontravam, tinham feito uma fogueira e assavam carnes e legumes colhidos frescos. O cheiro era pungente e ao chegarem e desmontarem, alguns os ajudaram a levar os animais para o local indicado, os cumprimentaram e mais de cem pessoas passaram a comer e conversar. Era sempre bom rever os amigos.
Lucca e Lacantra encontraram amigos de tribos próximas de Pua, ali também estava Lutty. O amigo de infância que fôra realocado no último Fulgot, Lacantra e Lucca correram ao avistá-lo.
- Não acredito que também vieram, que surpresa agradável - Ele dizia enquanto os abraçava, animado.
- Uma pena que seja nessas condições, mas estamos felizes em vê-lo - Disse-lhe Lucca.
Lacantra tentava não cair novamente no choro. Ver um amigo tão antigo, lhe suscitam lembranças de uma época mais feliz. Todos juntos em Pua, sua família, seu amigo.
Ver Lutty, por si só já lhe remontava nostalgia, ter que lhe explicar, contar o que acontecera, a fazia sangrar por dentro.
- E como você está, como tem estado as coisas? - Questionou Lacantra, após mudarem o assunto da carnificina.
- Estou bem, muito bem, na verdade. Me acostumei com muitos, tenho ajudado como posso e aqui, tenho mais tempo ocioso. Mas me diga, tem sido mandada para Falls?
- Ah, não sou rebelde! Vocês falam como se eu fosse uma renegada - Agora já provocavam um ao outro e após muitos dias, estavam sorrindo. Lutty sempre fôra o mais animado dos três e tinha facilidade para mudar os ânimos.
- Tenho trabalho dobrado agora que você não está mais entre nós, Lutty, tem sido difícil mantê-la fora de Falls.
Por fim estavam gargalhando, três amigos desde a infância, unidos em meio a tragédia, Lutty distante mas a amizade ainda sólida.
O conselho, a reunião, seria iniciada no início da noite e o povo conversavam, trocavam idéias, diziam o que achavam que deveria ser feito á respeito dos Brucks e de outros predadores que todos enfrentavam.Lacantra, Lucca e Lutty, se afastaram e foram para longe dali, passeavam nas matas, colocavam os assuntos em dia. A jovem, interpelada pelo amigo que agora vivia distante, lhe contou sobre suas visagens, as que ele ainda não ouvira desde que fora realocado.Apenas no início da reunião, quando começava a anoitecer e assentos foram improvisados e agrupados de forma que todos se sentassem, que Frizzat apareceu. Dessa vez ele não estava só.Era costume sempre comparecer ao Fulgot sozinho, mas dessa vez, estava acompanhado de um jovem. Um rapaz forte, de costas largas, alto, pele curtida do sol, cabelos pouco abaixo dos ombros, trançados e claros, quase brancos. Seus olhos e
Pela primeira vez um Fulgot foi interrompido.Após um dos Sivaê cochichar no ouvido de Sácia, essa pediu silêncio e pediu que se reunissem mais tarde. Aquele conselho tinha saído dos trilhos, e perdendo as forças, sem saber que seria interrompida, não estava preparada para debater com a jovem e nem com todos que se levantaram em protesto. Tinham que pensar em algo, não podiam voltar atrás em uma decisão, a hierarquia era importante. Se aceitassem o que a garota fez, jamais teriam respeito novamente. Se insistissem e a punissem, mandando-a para Falls, mostrariam crueldade e ela poderia levar adiante mesmo essa idéia e sem querer, criara um motim.Lacantra foi chamada pelo ancião de Pua. Ouviu o que ele e seus amigos lhe diziam, ela não deveria ter se rebelado em um conselho e devia ser advertida. Mas ela não abriu sua boca, não mudaria de idéia.
- Ele, Frizzat, é mesmo sempre assim tão fechado, trata á todos com rigidez? - Questionou-o.- Normal todos pensarem isso, mas não, Frizzat é muito brincalhão e educado. Sempre fala com todos com carinho. Está revendo a idéia de ir para Pief? - Perguntou-lhe Aloy.- Jamais. Pura curiosidade, como você mesmo disse, todos temos á respeito dele, normal.- Mas prefere mesmo ser uma renegada para sempre, envolver outras pessoas, mandá-las para Falls?Lacantra se levantou, enfurecida, quase caiu no riacho para poder ficar de frente para o jovem:- Não pedi que ninguém se interferisse em minha decisão. Nem mesmo aos meus amigos mais chegados. Pare de me acusar, seu puxa saco maldito. Volte ao seu senhor e diga que prefiro morrer a morar na tribo de vocês e saia daqui, suma de minha frente.Ela tremia e sua voz alta e seu dedo indicad
Ela andou por mais de uma hora pensando nisso , no que o pai dissera.Ela prometera à ele que não consideraria mais suas decisões como defeito, mas que tentaria não mais agir por impulso.Deitada em um gramado, debaixo de uma árvore, deu vazão às lágrimas que corriam livres. Uma dor lancinante ao sentir a ausência de sua família. Um buraco instaurado em sua alma, seu coração, sua mente que chegava a doer fisicamente. Ela não acreditava que isso um dia seria amenizado, que essa dor fosse parar. Culpa e ódio, se mesclavam dentro dela. A inconformidade e a vontade de gritar, era uma constante.Olhando para as nuvens, novas lembranças a assaltavam. Sua mãe lhe dizia que toda nuvem, tinha um desenho, não importa a hora em que se olhasse para o céu, lá estava uma nuvem com o formato de algo. As lágrimas e a exau
- Por que a teria visto?Ela respondeu sem o olhar, não queria ele inserido na conversa. Não o queria ali.- Você a conhece? - Lucca perguntou ao rapaz.-Sim. Mãe Shetary é a pessoa mais inteligente que já conheci. Uma matriarca única.- Minha mãe dizia que ela pode tanto abençoar, como amaldiçoar alguém - Falou Lucca.- Não creio nisso - Retrucou Aloy - Ela auxilia em alguns Fulgots, quer o bem de todos e só apareceu em algum, quando algo sério aconteceu e ajudou nas decisões.Os três chegaram a choupana famintos. Se lavaram em uma bacia de madeira, molhando os cabelos e braços para tirarem o calor e a poeira da estrada, se alimentaram e aguardaram a decisão do conselho dos Sivaês, sentados ao fundo. Lutty se aproximou e se sentou junto aos jovens.Tendo se dispersado, andado quase o dia todo
Seu coração que mal havia se acalmado e voltado aos batimentos normais, disparou novamente.Aquela senhora disse ter sentido a situação que pairava sobre o Fulgot. Lacantra não se lembrava onde Aloy tinha dito que ela morava, ou se ele havia dito. Como ela viera, quem a avisara, por que viera tão rapidamente, qual seria seu veredito? Não acreditava que qualquer que fosse a decisão da matriarca, alguém fosse revidar ou reclamar. Seu destino estava na mão daquela criatura estranha e mais velha que alguém já conhecera. Ela dissera que sua histeria não fora de todo incompreendida mas não podiam ceder para não serem desacreditados e enfrentados no futuro.Lacantra esperava entre ansiosa e amedrontada com o que poderia advir da anciã.A senhora a olhava, via sua ansiedade latente mas esperou.- É próprio dos sá
Caos e barulho. Ensurdecedor.Lacantra se pôs de pé depois de tentar se levantar por três vezes e cair. Os joelhos ardiam pelos arranhados.Eram muitas pessoas gritando, correndo desesperadas. Entre eles, crianças.Uma de cerca de uns dois anos, tinha um olho fechado e roxo, sentada em meio aos escombros, sua diminuta boca aberta mostrava que chorava desconsolada mas de onde estava, Lacantra não ouvia seu choro. Lágrimas misturadas a sangue e terra, marcavam seu rostinho.Esse foi o impulso para que Lacantra se levantasse e mancasse até o bebê. O teto do lugar, seja ele qual fosse, caía em intervalos. O medo de Lacantra crescia, temia que um dos pedaços do teto caísse na criança antes que a protegesse.Adultos passavam pelo bebê sem um segundo olhar. Uma mulher magérrima e suja de terra que gritava, mas o barulho que vinha de diversos l
- Ele mereceu - Foi o que ela disse a Lucca que a esperava para se despedirem.- Concordo com você, e foi o que disse á ele. Já não basta tudo que vem passando e ele vir com piadinhas, sim, mereceu, Can, quero que fique tranquila. Que não se preocupe com Pua enquanto estiver em Pief.Somente Lucca para a fazer dar um sorriso naquele momento. Seu carinho a desmontava, sua preocupação com ela era enternecedora. Ela o abraçou forte e o encaixe dos dois, era tão natural como sempre fôra.- Quero combinar algo entre nós dois, também - Continuou o amigo. - Vamos nos encontrar em toda meia lua, quando ela mingua? Pensei que podia ser no lago Ponty, que fica na divisa de Pief com Tangui, não muito distante para nós dois. Vou te esperar lá na próxima meia lua e ficarei o dia todo, mesmo que você não apareça, mas tente apare