- Foi engraçado dessa vez.- Lucca, Lacantra e Pipa estavam no córrego caçando Murtilas, uns bichinhos que desprendia de suas asas um pó fino com uma luminescência que eles adoravam usar como tinta. A fosforescência de suas diminutas asas, perduravam por horas e as caçavam sempre e usavam o líquor para se pintarem. Pintavam os rostos com discos ou formatos de desenhos, escreviam arabescos que ficavam acesos em suas peles por horas.
Murtilas eram usadas também para demarcar o cabo das espadas em lutas noturnas. Sua clareza e cores diversificadas, ajudavam a encontrar o animal abatido ou o inimigo em uma guerra.
- Nos conte - Pediu Pipa. Seu rosto claro, salpicado de sardas, estava mesclado de verde e amarelo em lindos arcos desenhados com as asas das Murtilas. O dia mal começara e os amigos esperavam Japur que tinha avisado na noite anterior que estaria ali antes deles chegarem. - Cadê aquele imbecil do Japur?
- Vou contando enquanto o esperamos. Nessa visagem, eu estava com um negócio na mão que cuspia fogo, não sei explicar mas era curto e um pouco maior que minhas mãos e eu o segurava e apontava para os Brucks e quando apertava-o ele disparava algo que eu não via mas feria cada um que chegava perto, sabe. Eles iam caindo e se estrebuchavam no chão em agonia. Eu me sentia poderosa e matava um por um.
- Credo - Disse Lucca - Me parece perigoso.
- Sim, e conforme eu os matava, o negócio ficava quente e eu passava a segurar com minhas vestes, mas não parava o ataque á eles. Onde você vai, Pipa? - Lacantra percebeu que sua irmã saía do córrego onde estava sentada e molhada até a cintura.
- Vou até em casa buscar aquele molengão. Ele disse que estaria aqui antes de nós, guardei umas asinhas para ele, não a usem pois o buscarei, nos esperem - Disse e se encaminhou para casa, em meia hora estaria de volta com seu amigo e como ela mesmo dizia, seu futuro marido.
- Você acha que eles um dia serão mesmo companheiros? - Perguntou-lhe Lucca. Seus braços reluziam de verde fluorescente. Lucca adorava pintar os braços de Murtilas, fazia diversos desenhos intrínsecos e em espirais.
- Creio que sim. Ele ainda a olha como se ela fosse a perfeição em mulher.
- Você também planeja um enlace?
- Acredita que ainda não? Pipa fará o enlace antes de mim, nossos pais não me cobram, perguntam ás vezes e quando voltam do Fulgot, dizem que talvez eu devesse ir um dia á reunião do conselho, dizem que poderíamos fazer uma boa parceria com alguém de tribos diferentes, deve ser porque vêem muitos machos lá, mas não me pressionam. E você, pensa sobre isso?
- Não pensava muito, mas agora ando pensando um pouco. Mas também gostaria de ver mais opções em outras tribos, penso em ter filhos, fazer uma família. Não de imediato. Só farei uma aliança, um enlace, se encontrar alguma fêmea que me desperte o mesmo brilho no olhar que vejo em Pipa e Japur. Que eu a veja com os mesmo olhos que sua irmã vê o futuro parceiro, entende?
- Sim, te entendo. Meus pais foram apresentados pelos pais deles, não eram apaixonados quando começaram a côrte, mas dizem que não podiam ter escolhido par melhor. O amor veio á eles antes que o enlace fosse feito. Talvez aconteça isso comigo. De firmar um enlace que seja tão bom quanto o dos meus pais. Ainda quero muito sair por aí, ajudar as tribos, não estou preparada para um enlace.
- Não me diga que pensa em alguma aventura maluca, por favor - O amigo se preocupava com ela. Sua teimosia, já rendera exílio até a ele. Suas idéias inovadoras, já fora colocada em pauta mais de uma vez no conselho.
- Claro que não. Eu nunca planejo agir, quando vejo coisas que não aceito ou acho que deveria ser feita, não êxito.
- Exatamente. Nem sempre é bom agir por impulso, Can - Ele a chamava pelo apelido, desde que ela se lembrava.
- Tudo bem, mas me diga, minha idéia de colher Plip foi ruim? pesca/vàrios foi ruim para nós? E o golpeador?
Lacantra havia inventado um método semelhante a uma rede com tecidos onde fez diversos buracos pequeninos e jogados no rio, facilitava a pesca de Plip. Jogavam-na e retiravam-na horas depois e saíam vários Plips de uma única vez. O golpeador, como chamavam, eram algumas pedras embaladas e amarradas em um fino tecido que usavam como arma. Rodavam no ar e disparavam contra o oponente o derrubando. Dentre outras coisas que ela havia inventado, como passar a ponta das espadas em veneno extraído de ramas perigosas antes de um ataque, os ajudavam a neutralizar o oponente.
- Concordo, é claro, mas isso nem foi impulsividade, você viu enquanto dormia essas coisas e foi ótimo seu pai levar essas e outras idéias para o conselho. Mas temo que você aja ás vezes no calor da emoção e seja punida.
- Para isso que tenho você, não é, para me segurar.
Ela disse isso o puxando para dentro do córrego. Lucca gritou, quando foi pego de surpresa e ambos começaram uma luta tentando colocar a cabeça do outro dentro da água.
Ficaram nessa brincadeira por uns minutos, entretidos até que Lucca sentiu o cheiro.
Ele empurrou a amiga que voltou novamente devolvendo o empurrão, sem notar que ele não mais brincava.
- Espere, Can. Estou sentindo um cheiro estranho.
- O que foi - Ela agora se levantou do córrego e observava preocupada o amigo. - O que sente?
- Sangue, muito sangue.
Seu próprio sangue gelou ao ver a expressão do amigo.
- Pipa. - Sussurrou Lacantra já saindo do córrego acompanhada por Lucca.
Os dois encharcados, pintados de várias cores, se puseram a correr de encontro a suas casas. Empunhavam suas espadas e seus golpeadores, que jamais saiam sem.
O cheiro enquanto se aproximavam de casa, Lacantra já podia sentir, era de fumaça. Lucca sentia cheiro de sangue mesmo longe, mas ambos agora sentiam o cheiro da fumaça e viam que de sua tribo, espiralava um sinal de fumaça.
Gritos de agonia e terror, vinham esparsos.
Ao transpassar a porteira que circundavam Pua, puderam ver o caos que se transformara as choupanas.
A choupana dos dois, eram próximas, quase coladas mas não foi em suas portas que viram Pipa.
Ela tentara correr, fugir. Estava próxima a entrada de Pua, abraçada á seu futuro marido, ambos foram transpassados por uma espada que fora deixada após o ataque. Tentaram fugir juntos.
Seu rosto ainda juvenil, pintado de várias cores, denotava o terror pré morte. Olhos arregalados, uma lágrima já seca, cortava a cor por onde descera.
Segurava apertado em uma das mãos, o golpeador que a irmã fizera e que não tivera chances de usar. Japur a segurava em um último abraço. Deitado sobre ela, segurava sua cintura com uma das mãos e um punhal na outra inerte. Suas costas largas na transformação da puberdade, mostrava que ficara á frente de sua amada, tentara a proteger, em vão.
Lacantra ficara cega e surda para a loucura que se instalava á sua volta. Ouvia um grito lamentoso e só descobriu que era o seu, quando foi sacudida de cima de sua irmã por Lucca.
O sangue da irmã e de Japur cobria toda sua roupa e pescoço. Seus gritos começou a lhe doer a garganta e ela tentou entender o que Lucca lhe falava:
- Foram os Brucks, me escute, por favor, eu sinto muito, mas preciso de sua ajuda.
Ela então voltou a si. Olhava agora para seu amigo com a vista embaçada pelas lágrimas e notou que ele também chorava, engasgado. Falava-lhe em solavancos, tentava se controlar.
- Seus pais… meus pais…- Ela lhe perguntava com a voz rouca pelos gritos. Caída ao lado da irmã caçula, soluçando, suja de terra, sangue e lágrimas, e absorvia pela primeira vez tudo ao redor.
Mães, filhos, crianças, todos corriam e gritavam. Uns machucados, deitados no chão. Um homem, amigo de todos, Soto, estava caído há uns dez metros, ajoelhado, olhava para o céu e gritava desesperado.
- Sinto muito, todos os nossos se foram - Respondeu-lhe Lucca e a abraçou.
Ele também precisava ser consolado, também havia perdido os seus e seu abraço, selava a dor de ambos. Era uma troca de dor e angústia. Ele lhe oferecia apoio e se apoiava nela.
Mas ela estava seca. Não conseguia acreditar que sua irmã e sua família haviam morrido. Não concebia a idéia de que eles não estavam ali.
Lucca era assaltado por soluços, a chacoalhava enquanto dava vazão a dor e ela ficava inerte. Não tinha forças para retribuir. Olhava para sua tribo, seu povo que gritavam, tentavam apagar o fogo nas choupanas, lutavam contra a fumaça que ardia olhos e garganta. Sentia-se o gosto da fumaça densa e ela apenas olhava.
Seu amigo também estava coberto de sangue que ela não sabia se era o de sua irmã que transferira á ele, ou de seus próprios pais, ele havia ido até sua casa enquanto ela gritava a morte de sua irmã e não se lembrava se ele voltara sujo de lá.
Nesses instantes, ela pensava coisas incoerentes, seu cérebro não absorvia de forma certa e ela ficou ali, naquela carnificina, pensando o que seria de sua vida agora.
Fazendo uma força sobre humana, ela passou a mão pelos cabelos de Lucca e lhe disse que sentia muito.Vendo que a amiga estava fora do choque, ele se levantou e a puxou.Encontram Carh fora da tribo, ele havia corrido para pedir ajuda ou procurara uma forma de contra ataque que falhou, foi o que os sobreviventes disseram. Seu irmão fora um herói, salvara a vida de muitos na luta. Três Brucks foram mortos por ele e jaziam próximo de seu corpo.Sua esposa fora empalada por uma espada e para aumentar a agonia, fora encontrada na porta da casa dos sogros com a própria espada transpassada nas costas de sua mão e atravessara sua barriga. Tentara proteger seu bebê que nem se percebia que existia e foi ali que levou o golpe. O que sobrou de Puzzo e Tábea, mal dava para contar como corpo.Nem conseguiram escapar do fogo na choupana. Ninguém pôde explicar, mas supunha-se
- Tudo mudou, não é? - Lucca comentou com Lacantra quando seguiam os amigos de Pua e os anciões para o Fulgot, o conselho com os Sivaês após o ataque sofrido pelos Brucks e que prejudicou diversas tribos.Alguns Cândalos os acompanhavam. Esses eram homens e mulheres na idade entre dezessete a quarenta anos que iam a lugares mais longes, as vezes por dias em busca de alimentações ou melhorias para a tribo. Alguns casais se revezavam nessas viagens, um ficava para cuidar dos filhos enquanto o outro ia nas missões. Estavam sempre treinando para caças ou ataques. Treinavam com mestres na arte da luta.- Nada mais será como antes - Respondeu-lhe a moça, desanimada - Na última vez que fui a um Fulgot, eu era bem pequena e fiquei muito ansiosa, prometi á papai que não iria atrapalhar - A lembrança lhe deu um amargo na boca, lembrava-se de sua
O conselho, a reunião, seria iniciada no início da noite e o povo conversavam, trocavam idéias, diziam o que achavam que deveria ser feito á respeito dos Brucks e de outros predadores que todos enfrentavam.Lacantra, Lucca e Lutty, se afastaram e foram para longe dali, passeavam nas matas, colocavam os assuntos em dia. A jovem, interpelada pelo amigo que agora vivia distante, lhe contou sobre suas visagens, as que ele ainda não ouvira desde que fora realocado.Apenas no início da reunião, quando começava a anoitecer e assentos foram improvisados e agrupados de forma que todos se sentassem, que Frizzat apareceu. Dessa vez ele não estava só.Era costume sempre comparecer ao Fulgot sozinho, mas dessa vez, estava acompanhado de um jovem. Um rapaz forte, de costas largas, alto, pele curtida do sol, cabelos pouco abaixo dos ombros, trançados e claros, quase brancos. Seus olhos e
Pela primeira vez um Fulgot foi interrompido.Após um dos Sivaê cochichar no ouvido de Sácia, essa pediu silêncio e pediu que se reunissem mais tarde. Aquele conselho tinha saído dos trilhos, e perdendo as forças, sem saber que seria interrompida, não estava preparada para debater com a jovem e nem com todos que se levantaram em protesto. Tinham que pensar em algo, não podiam voltar atrás em uma decisão, a hierarquia era importante. Se aceitassem o que a garota fez, jamais teriam respeito novamente. Se insistissem e a punissem, mandando-a para Falls, mostrariam crueldade e ela poderia levar adiante mesmo essa idéia e sem querer, criara um motim.Lacantra foi chamada pelo ancião de Pua. Ouviu o que ele e seus amigos lhe diziam, ela não deveria ter se rebelado em um conselho e devia ser advertida. Mas ela não abriu sua boca, não mudaria de idéia.
- Ele, Frizzat, é mesmo sempre assim tão fechado, trata á todos com rigidez? - Questionou-o.- Normal todos pensarem isso, mas não, Frizzat é muito brincalhão e educado. Sempre fala com todos com carinho. Está revendo a idéia de ir para Pief? - Perguntou-lhe Aloy.- Jamais. Pura curiosidade, como você mesmo disse, todos temos á respeito dele, normal.- Mas prefere mesmo ser uma renegada para sempre, envolver outras pessoas, mandá-las para Falls?Lacantra se levantou, enfurecida, quase caiu no riacho para poder ficar de frente para o jovem:- Não pedi que ninguém se interferisse em minha decisão. Nem mesmo aos meus amigos mais chegados. Pare de me acusar, seu puxa saco maldito. Volte ao seu senhor e diga que prefiro morrer a morar na tribo de vocês e saia daqui, suma de minha frente.Ela tremia e sua voz alta e seu dedo indicad
Ela andou por mais de uma hora pensando nisso , no que o pai dissera.Ela prometera à ele que não consideraria mais suas decisões como defeito, mas que tentaria não mais agir por impulso.Deitada em um gramado, debaixo de uma árvore, deu vazão às lágrimas que corriam livres. Uma dor lancinante ao sentir a ausência de sua família. Um buraco instaurado em sua alma, seu coração, sua mente que chegava a doer fisicamente. Ela não acreditava que isso um dia seria amenizado, que essa dor fosse parar. Culpa e ódio, se mesclavam dentro dela. A inconformidade e a vontade de gritar, era uma constante.Olhando para as nuvens, novas lembranças a assaltavam. Sua mãe lhe dizia que toda nuvem, tinha um desenho, não importa a hora em que se olhasse para o céu, lá estava uma nuvem com o formato de algo. As lágrimas e a exau
- Por que a teria visto?Ela respondeu sem o olhar, não queria ele inserido na conversa. Não o queria ali.- Você a conhece? - Lucca perguntou ao rapaz.-Sim. Mãe Shetary é a pessoa mais inteligente que já conheci. Uma matriarca única.- Minha mãe dizia que ela pode tanto abençoar, como amaldiçoar alguém - Falou Lucca.- Não creio nisso - Retrucou Aloy - Ela auxilia em alguns Fulgots, quer o bem de todos e só apareceu em algum, quando algo sério aconteceu e ajudou nas decisões.Os três chegaram a choupana famintos. Se lavaram em uma bacia de madeira, molhando os cabelos e braços para tirarem o calor e a poeira da estrada, se alimentaram e aguardaram a decisão do conselho dos Sivaês, sentados ao fundo. Lutty se aproximou e se sentou junto aos jovens.Tendo se dispersado, andado quase o dia todo
Seu coração que mal havia se acalmado e voltado aos batimentos normais, disparou novamente.Aquela senhora disse ter sentido a situação que pairava sobre o Fulgot. Lacantra não se lembrava onde Aloy tinha dito que ela morava, ou se ele havia dito. Como ela viera, quem a avisara, por que viera tão rapidamente, qual seria seu veredito? Não acreditava que qualquer que fosse a decisão da matriarca, alguém fosse revidar ou reclamar. Seu destino estava na mão daquela criatura estranha e mais velha que alguém já conhecera. Ela dissera que sua histeria não fora de todo incompreendida mas não podiam ceder para não serem desacreditados e enfrentados no futuro.Lacantra esperava entre ansiosa e amedrontada com o que poderia advir da anciã.A senhora a olhava, via sua ansiedade latente mas esperou.- É próprio dos sá