Amaranto
"O Amaranto é a flor que simboliza a imortalidade ou a vida eterna. É a flor do cemitério, pois nunca morre."
Na verdade tudo começou com uma morte. Lolla DeWitt partiu em um sono tranquilo, sem dores nem sofrimento, exatamente como merecia. Sua doença, o câncer, nunca a impedira de nada, seus últimos anos de vida foram bem vividos, e ela soubera aproveitá-los. Tanto que seu velório estava cheio de pessoas que a amavam, admiravam, e outras até que mal a conheciam, mas que já tinham ouvido falar de sua habilidade pouco comum.
Desde menina sonhava com coisas e elas aconteciam. Por esse motivo, salvou vidas e destinos, deu bons conselhos e ajudou muita gente, não importando se algum dia receberia algo em troca.
Durante o velório, Cailey e Tatianna confortaram-se mutuamente, perdidas em um pranto incontrolável. A avó era o pilar que sustentava aquela família, que as guiava para a direção certa. Ambas não conseguiam compreender por que ela fizera tanto bem para tantos desconhecidos, aconselhara várias pessoas sobre suas vidas, mas deixara as três sem rumo, cada uma com seu problema. Não era típico de Lolla esquecer alguém, muito menos suas netas adoradas.
Enquanto lamentavam a perda da querida avó, observavam Faith, sempre solitária e pensativa. Antes da tragédia que se abatera sobre sua vida, elas eram tão unidas, tão próximas, com uma ligação quase sobrenatural; porém, a mais velha das três se fechara em seu mundinho particular e não compartilhava sua dor nem suas angústias com ninguém. Nem mesmo com a morte de Lolla ela conseguia derramar suas lágrimas na frente de outras pessoas. Bela e sóbria, Faith era sempre muito equilibrada e elegante, com sua face triste, seus modos impecáveis e o temperamento sereno. Entretanto, apenas Cailey e Tatianna sabiam que aquilo tudo era uma fachada, arquitetada para esconder sua alma despedaçada. Apenas elas sabiam que seria em sua casa, sozinha, que ela iria chorar e sofrer pela saudade que sentiria da avó.
As duas apenas se olharam e concordaram silenciosamente que deveriam se aproximar da terceira DeWitt. A princípio, Faith praguejou, pois queria ficar sozinha. Depois de tantas tristezas, já não sabia mais como lidar com a compaixão das pessoas; lembrava dos olhares dos outros e quase podia ler seus pensamentos sobre ela ser jovem e bonita e não merecer tantos castigos da vida. Contudo, apesar da frieza que sua expressão demonstrava, amava sua irmã e sua prima e não podia ser tão egoísta ao ponto de pensar que ela era a única que sentia dificuldade em aceitar a morte de Lolla. As outras também precisavam dela.
— Olá, Faith! Você está bem? — Tatianna indagou quando finalmente se aproximaram. A mais velha era a única que morava sozinha, por isso, não faziam ideia de como a notícia fora recebida.
— Estou — tentou parecer o mais calma possível, mas não pôde evitar um comentário mais pessoal. – Ela vai fazer muita falta.
— Para todas nós... — Cailey, sempre mais carente do que as outras, colocou-se no meio delas e passou os braços ao redor de suas cinturas. Tatianna correspondeu imediatamente ao carinho da prima, mas Faith se manteve relutante. Aquele tipo de demonstração de amor era capaz de derrubar suas barreiras, e ela ainda não se sentia preparada para isso.
Enquanto o sacerdote falava, Faith queria apenas ir embora. Se para as outras era difícil, para ela era como se lhe arrancassem, ou tentassem arrancar, um coração que não possuía mais. Lidar com a morte já não era novidade, era como se fizesse parte da sua vida, especialmente nos últimos tempos. Era uma inimiga poderosa, impossível de combater.
Tudo pareceu acontecer mais devagar do que o normal, e quando o caixão de Lolla foi finalmente fechado, colocado em sua cova e coberto por terra, as três puderam ir para suas casas. Cailey e Tatianna ainda moravam na casa que pertencera à sua avó, que traduzia perfeitamente sua personalidade doce, organizada, sensível e um tanto quanto esotérica. Cristais, anjos e outros artigos do mesmo gênero ficavam espalhados por todos os cantos e davam um ar de tranquilidade e beleza ao local. Faith, por sua vez, morava sozinha. Tinha sua residência, seu negócio e sua solidão.
E foi exatamente para sua floricultura que ela foi, em busca de suas flores, suas melhores amigas e companheiras. Enquanto caminhava em direção à sua estufa, soltava o belo cabelo castanho, impecavelmente preso em um coque. Depois sentou-se em um banquinho, num canto escondido de seu refúgio. Tentou se segurar o máximo que pôde, até que, olhando para o céu, desabou a chorar compulsivamente. Apoiou os cotovelos nos joelhos e escondeu os olhos com as mãos. Pensava que não havia restado mais nenhuma lágrima, pensava que não haveria mais sofrimento do que já tinha presenciado, que poderia apenas existir, quase vegetar, até que também chegasse sua hora, mas estava enganada.
Há sete meses, Faith sofrera um acidente. Ela e o marido voltavam de uma festa onde ele ficara completamente embriagado, e ela decidiu que seria melhor que assumisse o volante por não ter ingerido nada alcoólico. Sem saber como, dormira dirigindo e, quando despertara, vira-se em um hospital onde lhe disseram que o carro tinha caído de uma ribanceira direto para o mar. Ela conseguiu ser resgatada, mas seu marido foi dado como morto, e seu corpo considerado perdido. Desde que tudo aconteceu, ela insistiu em procurar por ele. Tinha esperança de que tivesse conseguido sobreviver, mas a polícia o deixou para trás, e sua família improvisou um funeral, alegando que Henry precisava descansar. Sem ajuda nem incentivo, ela também acabou rareando as buscas, fechando seu coração. Culpava-se pela morte dele e o mesmo faziam todos, menos Lolla, Cailey e Tatianna. Ela não achava justo que seu marido tivesse morrido e que, além disso, tivesse perdido o bebê que estava esperando, pois ser mãe era seu maior sonho. Perdera Henry e também a criança que gerava, seu primeiro filho, talvez o único, uma vez que ela não pretendia se apaixonar novamente nem se envolver com homem algum. Seu plano era cuidar de sua família e de sua floricultura.
Faith não era uma floricultora qualquer. Ela conhecia cada flor, o significado de cada espécie, e não apenas isso, era conhecida onde morava por escolher as flores certas e presentear amigos e clientes no momento em que eles mais precisavam. Lolla dizia que era um dom, que ela adivinhava o problema das pessoas e as ajudava de uma forma como não conseguia ajudar a si mesma.
Apesar de ter presenciado vários sonhos da avó se tornarem reais, ela não acreditava na história de que todas as mulheres da família DeWitt possuíam uma habilidade especial. Sua mãe afirmava que conseguia ler mentes, mas nunca ninguém conseguira ter certeza, pois era uma mulher muito brincalhona. Sua irmã gêmea, mãe de Tatianna, dizia ser capaz de fazer mágicas enquanto cozinhava, mas também nunca foi comprovado, apesar de ela ser uma excelente gourmet.
Certa vez, após acordar de um de seus sonhos premonitórios, Lolla afirmou para Faith que suas flores a levariam ao grande amor de sua vida, mas ela estava errada, é claro! Henry fora o homem de sua vida, porém, ela o conhecera na faculdade, onde cursara Biologia, e ele, Medicina. Tudo bem que, pelo menos, sua avó acertara em cheio sobre ela tirar seu sustento daquilo que mais amava.
De fato, Faith odiava aquela história de dons. As pessoas acreditavam que sua intimidade com as flores provinha de alguma força sobrenatural, então, quando tinham algum problema esperavam algo dela. Esperavam que ela lhes presenteasse com uma Tulipa amarela para que se reconciliassem com namorados depois do término de alguma relação, ou quando uma mulher desejava muito engravidar, praticamente implorava que Faith lhe enviasse uma Helicônia, a flor da fertilidade. Várias vezes já deixara amigos magoados por não conseguir atender algum desejo. Porém, o que as pessoas não sabiam era que os presentes tinham que ser espontâneos para que a suposta “magia” desse certo. Ela apenas pensava na pessoa, na flor e tinha a ideia. Costumava ficar feliz quando alguém conseguia o que queria através de seu jardim. Contudo, quando Henry morreu, aquelas “premonições” desapareceram quase por completo.
Com a morte de Henry, Faith se afastara da avó. Silenciosamente, achava que se houvesse mesmo um poder de prever o futuro, Lolla deveria ter visto o acidente e salvado a vida de seu marido e de seu bebê. Era esse o principal motivo de ela não acreditar em magia, em habilidade especial, apesar de saber que o que compartilhava com as flores de seu jardim não era nem de longe algo natural. Era como se elas possuíssem vozes, como se pensassem, lhe transmitissem ideias, sentimentos. E não havia nada como aquilo. Lolla costumava brincar que se essa ligação não era magia, o que mais poderia ser?
Ainda chorando sozinha em sua estufa, Faith ouviu a voz de alguém a chamá-la. Sem demora, ela limpou as lágrimas e tentou disfarçar sua dor. Quem chamava era Thomas, um rapazinho de dezesseis anos que vivia sozinho desde que fugira de um orfanato em outra cidade, e tanto Faith quanto Lolla davam-lhe dinheiro para que ele fizesse pequenos serviços. — Thomas, hoje não vou abrir a loja. Pode ir descansar, se quiser! — Sra. Connor, sinto muito pela morte da D. Lolla. Ela era boa demais para mim — o rapazinho começou a chorar, e Faith teve certeza de que não suportaria aquela cena. Assim como ela, Thomas também já tivera perdas suficientes em sua vida, e ao invés de aquilo tudo se tornar mais fácil de suportar, ficava cada vez mais difí
Quando Faith terminou de ler, estava tão emocionada quanto confusa. Chorava copiosamente acompanhada pelas outras duas, que também não conseguiram se conter. Nada do que sua avó lhe escrevera fazia muito sentido. Então ela já sabia que iria morrer e não contou para ninguém? Era bem típico de Lolla não querer preocupar as pessoas que amava. Bem, mas essa parte, apesar de extraordinária, era compreensível. O que não conseguiu entender foi o pedido que recebeu. Como aquilo tudo que Lolla pedira poderia alterar seu destino? — O que você vai fazer, Faith? Vai atender ao pedido? — Tatianna queria saber. — É claro que ela vai atender! — Cailey in
Rowan Allers mantinha um ritual em sua vida; todas as sextas-feiras ele colocava flores no túmulo da irmã. Ursulla as adorava enquanto viva, e ele queria que o lugar onde ela repousaria por toda a eternidade ficasse sempre belo, com um aspecto de vida e não de morte. Aquele era um compromisso que não deixara de cumprir desde que ela se fora, sete meses atrás. Ainda sofria com a morte prematura da única irmã. Apesar de serem de sexos diferentes e terem gostos e formas de pensar distintos, eram amigos inseparáveis. Sentia falta de chegar tarde do trabalho e ver que ela o estava esperando na sala, para falar sobre seu dia ou sobre um novo namorado. Sempre foram assim desde crianças e ainda seriam se ela não tivesse morrido. Nunca encontrara ninguém ali e, por serem
Faith passou a noite inteira pesquisando coisas sobre Ursulla Allers na internet e acabou dormindo com a cabeça debruçada sobre a mesa, mal percebendo a hora passar enquanto lia sobre a jovem. Alguns jornais mencionavam coisas sobre sua vida e concordavam que era uma boa moça, de uma família bastante proeminente. Ao ler tudo aquilo, Faith agradecia por não ser uma pessoa interessante para a mídia. Exatamente como Rowan dissera, eles transformaram toda a história em um circo e conseguiram perturbar uma alma que precisava de descanso. Acordara, portanto, com o telefone tocando ao seu lado, fazendo um barulho mais estridente do que o normal. Estava exausta e teria amaldiçoado quem ligava se não fosse Tatianna do outro lado da linha. — Prima? — Tatianna chamou, perceb
Voltou para casa com o céu já escuro e se deu conta de que nem percebera o tempo passando tão rápido. Era bom desligar-se do mundo por um tempo, deixando de se preocupar com todas as coisas que a afligiam. Costumava ser assim antigamente, quando tinha uma vida mais simples, sem complicações, cheia de sorrisos e notícias boas, vivendo apenas cercada por suas flores e pelas pessoas que amava. Não se dera conta do quanto aquelas coisas faziam falta até se sentir tão bem na companhia de amigos tão queridos. Porém, não contava em sair da casa dos Ruther e perder todo aquele clima de felicidade que reconquistara depois de tanto tempo. Assustou-se, portanto, quando chegou em casa e viu a irmã com uma expressão muito estranha, sentada à sua porta. Correu para ela, rezando para que não fosse nada grave
Depois que Cailey foi embora bem cedo no domingo, Faith ficou muito ansiosa, esperando pelo contato de Steve. Pelo menos com a irmã ali, ela se sentira distraída e se esquecera um pouco do caso. Mas ao se ver sozinha, não conseguia parar de pensar no rosto bonito de Rowan, tão cheio de dor e sofrimento. Queria ajudar. Claro que ele não era o único motivo pelo qual desejava descobrir alguma coisa. Era principalmente por causa do resto da família da moça e pela estranha ligação que sentira com ela. Nunca tivera uma “visão” com alguém que não conhecia e, por esse motivo, não poderia ter sido em vão. Porém, acabou passando o dia inteiro sem resposta e foi somente na segunda-feira que recebeu qualquer notícia de Steve. Ele apareceu em sua estufa bem cedo, com duas pastas nas mãos. Com certeza tivera um imenso trabalho para juntar todas aquelas informa&
A semana passou depressa, e ainda era bem cedo quando Faith despertou. Ela estava começando a tomar seu café-da-manhã, quando sentiu aquele odor especial do Amaranto e, outra vez, viu a imagem da sepultura de Ursulla Allers. Era mais um sinal de que havia mesmo alguma ligação entre elas. E não apenas isso, era como se suas flores quisessem que ela se intrometesse na história, que ajudasse a família Allers em sua dificuldade. Era como se precisasse fazer tudo aquilo por ela mesma, por algum motivo... Tentou encontrar uma maneira de conciliar sua sexta-feira de trabalho com uma breve ida ao cemitério; para isso, chamou Thomas e ofereceu-lhe dinheiro para que ele cuidasse da floricultura por algumas horas. Ele era um pouco atrapalhado, mas nada que pudesse lhe prejudicar. Assim
Faith passou o dia inteiro ansiosa para que aquela noite chegasse. Trabalhou, olhando a todo o momento para o relógio, contando os minutos, jurando que sua ansiedade não tinha nada a ver com o fato de que veria Rowan. E ele chegou tão pontualmente que ela mal acreditou. Ficou observando-o enquanto ele saltava de seu belo carro preto, em seu terno elegante, o mesmo que usara naquela manhã. Com certeza nem tivera tempo de passar em casa, mas quando se aproximou, Faith reparou que ele ainda estava muito cheiroso, com um leve aroma de madeira de algum perfume caro. Assim que ele pisou na floricultura, teve a estranha sensação de estar entrando em um lugar mágico. Era como se todas aquelas flores conversassem entre si e lhe desejassem boas vindas. Faith se encaixava perfeitamente naquele lugar,