Miguel não se moveu quando Melina atravessou as portas automáticas. Ficou parado, estático, observando o vazio deixado por ela como se o ar ao redor tivesse perdido o cheiro de perfume e ganhado o peso de algo irreversível.Seu maxilar estava travado. As mãos cerradas.Ela ousou. E ele amava quando ela ousava.Mas odiava ainda mais quando ela o desafiava.Andou até a parede de vidro que dava para a avenida. De lá, viu Melina entrando em um carro preto, os vidros escurecidos refletindo o céu nublado. O salto dela soava em sua mente como um eco de guerra. Uma marcha silenciosa. Uma despedida que ele não permitira. Não ainda.Encostou a testa no vidro frio.“Lembranças, filha da puta de palavra.”Era o que Melina sempre dizia quando queria fugir de si mesma.E agora era ele quem se afogava nelas.Eles se conheceram na universidade.Ela tinha vinte e dois. Ele, trinta e cinco. Era um ex-aluno convidado para palestrar sobre mercado financeiro e estratégias de investimento. Miguel lembrava
A primeira lição que ela aprendeu foi o silêncio.Melina sentava-se à mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mãos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisível, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estômago estava revirado. Obediência era amor, ele dizia. E amor era sacrifício. Ela repetia isso como um mantra, noite após noite, até que parou de ouvir a própria voz.Naquela manhã, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero — salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma história que não era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questioná-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.Miguel odiava desobediência. E Melina era uma aluna exemplar.Desceu as escadas da mansão com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz — dizia que era música de homens inteligentes. O
Não era apenas a vista que a enjaulava. Era a ideia de que cada escolha que fazia não lhe pertencia. O quarto em que Melina acordava todos os dias era amplo, luxuoso e sufocante como um caixão de veludo. O teto era alto, as janelas largas, os lençóis macios — mas tudo ali parecia feito para mantê-la confortável na prisão que alguém construiu com muito dinheiro e pouco afeto.Ela acordou cedo, como sempre fazia, porque o corpo ainda carregava o instinto de agradar. Mas o coração... o coração estava mudando.Ela se sentou na beira da cama, sentindo os lençóis frios tocarem a pele nua. Miguel jazia ao seu lado, dormindo pesado, o peito subindo e descendo em um ritmo preguiçoso. Ela o observou por alguns segundos, como se buscasse alguma humanidade no homem que um dia acreditou amar. Não encontrou nada além de controle. De medo. De poder mal distribuído.Levantou-se em silêncio, vestindo uma camisola preta de seda, e caminhou até a varanda. A cidade se estendia diante dela, com seus grito
A chuva caía pesada sobre a cidade quando Melina entrou no carro blindado, protegida por dois dos seus homens. Era dia de inspeção. O armazém novo estava em fase de consolidação, e ela fazia questão de estar presente em cada detalhe — algo que Miguel raramente permitia, mas que ela fazia mesmo assim. A diferença era que agora, não mais pedia permissão. Apenas ia.O motorista seguiu silencioso, e os seguranças também. Todos sabiam quem ela era. E mais importante: quem ela podia se tornar.No banco de trás, sozinha, Melina olhava a cidade molhada por trás dos vidros escuros. Pensava na conversa do dia anterior. Em Kauan. Em sua resposta. "Ou me libertar."Era ousado demais para um homem recém-chegado. Mas era isso que a intrigava nele. Ele não pedia espaço — ele tomava. E fazia isso com um olhar.No armazém, ela caminhou entre caixas, checando lacres, verificando registros. O cheiro de pó e madeira molhada tomava o ambiente, e seus saltos batiam contra o piso de concreto com autoridade.
A noite chegou mais densa do que o habitual. Não era só o céu, carregado de nuvens escuras, ou o vento cortante que soprava pelas ruas da cidade. Era algo mais. Algo que vinha de dentro. E Kauan sentia essa sombra se espalhar por cada centímetro de sua pele.Ele estava no alto de um prédio abandonado na zona norte, observando a movimentação do galpão rival por trás de binóculos militares. Seu corpo, imóvel como o concreto sob seus pés, era pura tensão. Os olhos, atentos. A mente, agitada.Mas o que o atormentava não era o galpão.Era Melina.Desde que cruzara o olhar com ela pela primeira vez, sabia que algo dentro dele tinha se partido. Não pela beleza, embora ela fosse devastadora. Mas pelo que ela escondia por trás daquele olhar duro. Pela maneira como falava com firmeza, mesmo quando estava prestes a desmoronar. Pela cicatriz invisível que carregava e que, de alguma forma, ecoava as dele.Ele tentou afastá-la da cabeça. Sabia que não podia se dar a esse luxo. Não naquele mundo. Nã
Melina sentiu algo quebrar por dentro como um espelho estilhaçado. A mulher que ergueu um império com sangue, suor e silêncio, não era de se abalar facilmente. Mas aquela sensação — aquela intuição visceral de que algo estava errado — cravou fundo. Como uma adaga enfiada por alguém que ela nunca imaginaria.Tudo começou com um envelope, deixado sobre a mesa da sala da cobertura. Sem remetente. Apenas o nome dela rabiscado em tinta preta. Dentro, poucas páginas. Relatórios. Horários. Locais. Uma nota fiscal de hotel. E uma foto tremida, tirada de longe. Miguel, entrando num saguão luxuoso. Sozinho. Mas dias depois, a mesma rotina, no mesmo hotel. Só que dessa vez... acompanhado. A imagem não mostrava o rosto da mulher. Apenas as pernas esguias e um salto vermelho que parecia ter sido escolhido para ser notado.Melina encarou aquela foto como se fosse uma sentença. Não havia beijo. Não havia nudez. Mas havia um cheiro de traição tão forte que o ar pareceu rarefeito. Ela sentiu as mãos s
As flores no vaso da sala estavam murchas, mas Melina nem percebeu. Ela havia deixado de notar coisas assim fazia tempo. Agora, só enxergava padrões. Erros. Riscos. Mentiras.A dor já não ardia como antes. Tinha se transformado em algo mais útil. Frio. Cirúrgico. Ela era boa nisso — transformar desgraça em arma. Mas ainda assim, algo dentro dela estava diferente. A mulher ferida começava a morrer. E em seu lugar, surgia algo pior.No espelho, ela observou os próprios olhos: escuros, insones, intensos. Como se carregassem um cemitério inteiro atrás deles.No celular, a mensagem de Kauan:“Tem alguém dentro do seu círculo. Alguém que fala demais.”Ela não respondeu. Mas aquilo acendeu uma nova linha de fogo dentro dela.Era mais do que Miguel. Era mais do que sexo. Alguém estava minando seu império por dentro. E ela precisava descobrir quem.Na sala de reuniões, os líderes de suas operações estavam reunidos. Jonas lia relatórios. Kauan permanecia calado, no fundo da sala, como uma sombr
O som dos saltos ecoava pelo hall de mármore branco. Ninguém ousava parar Melina. A cada passo firme, os olhares se voltavam, mas ela não retribuía. Sua atenção estava no celular, enquanto uma notificação atrás da outra confirmava a aprovação de um novo aporte. Milhões. Mais um negócio promissor bancado por ela. Mais uma mulher tirando o sonho do papel e colocando o próprio nome no mercado. E ninguém ali fazia ideia. No vigésimo andar do edifício mais discreto do bairro mais caro da cidade, estava sediada a fortaleza que Melina construiu sozinha: HEM. Uma holding de investimentos criada por e para mulheres. Seu império secreto. Uma rede de influência e negócios altamente rentável — e 100% limpa. Tudo começou com trinta mil guardados, dois contatos confiáveis e uma obsessão: nunca mais depender de Miguel. Na época, ela ainda dividia a cama com ele, mas já sentia o peso de um amor que não sustentava mais nada além da aparência. E foi ali, em silêncio, que a revolução começou. — Senho