A noite chegou mais densa do que o habitual. NĂŁo era sĂł o cĂ©u, carregado de nuvens escuras, ou o vento cortante que soprava pelas ruas da cidade. Era algo mais. Algo que vinha de dentro. E Kauan sentia essa sombra se espalhar por cada centĂmetro de sua pele.
Ele estava no alto de um prédio abandonado na zona norte, observando a movimentação do galpão rival por trås de binóculos militares. Seu corpo, imóvel como o concreto sob seus pés, era pura tensão. Os olhos, atentos. A mente, agitada.
Mas o que o atormentava nĂŁo era o galpĂŁo.
Era Melina.
Desde que cruzara o olhar com ela pela primeira vez, sabia que algo dentro dele tinha se partido. NĂŁo pela beleza, embora ela fosse devastadora. Mas pelo que ela escondia por trĂĄs daquele olhar duro. Pela maneira como falava com firmeza, mesmo quando estava prestes a desmoronar. Pela cicatriz invisĂvel que carregava e que, de alguma forma, ecoava as dele.
Ele tentou afastå-la da cabeça. Sabia que não podia se dar a esse luxo. Não naquele mundo. Não naquela guerra.
E, principalmente, nĂŁo com uma mulher que ainda estava ligada a Miguel.
Mas ela nĂŁo saĂa de seus pensamentos.
Quando desceu do prédio e voltou para a moto, Kauan tirou o capacete e respirou fundo. O vento noturno cortou seu rosto e trouxe consigo memórias antigas. De outra cidade. De outra mulher. De um passado que ele tentou esquecer, mas que voltava sempre, como uma maldição.
Ele acelerou.
No esconderijo, o clima era de silĂȘncio. Os outros homens do cartel estavam dispersos, ocupados demais com seus prĂłprios demĂŽnios. Kauan nĂŁo era prĂłximo de nenhum. Gostava de manter distĂąncia. NĂŁo era o tipo que se envolvia. Nem com pessoas, nem com sentimentos. AtĂ© agora.
Ele passou a noite toda em vigĂlia. No escuro, sozinho, com os pensamentos corroendo por dentro.
Na manhã seguinte, voltou ao armazém de Melina.
Ela estava lĂĄ.
Sentada em frente a uma mesa, analisando mapas, coordenadas e relatĂłrios. Usava uma camisa preta justa, e o cabelo estava preso em um coque alto. Os olhos estavam levemente inchados â ela havia chorado? Dormido mal? â mas ninguĂ©m ousaria comentar.
Kauan a observou de longe por alguns segundos. Depois se aproximou, em silĂȘncio.
â A movimentação na zona norte aumentou â ele disse. â EstĂŁo reforçando a segurança.
â Esperado â ela respondeu, sem tirar os olhos do mapa. â Miguel estĂĄ em guerra, mesmo que finja que nĂŁo.
â E vocĂȘ?
Ela o olhou pela primeira vez naquele dia.
â Eu estou sobrevivendo.
Houve uma pausa. Longa o suficiente para que o ar ficasse mais pesado entre eles.
â VocĂȘ tem dormido? â ele perguntou.
â O suficiente pra nĂŁo perder o controle.
Kauan se aproximou mais um passo. Podia sentir o perfume dela, algo entre jasmim e pĂłlvora. Era um aroma que viciava. Como ela.
â VocĂȘ sabe que ele estĂĄ preparando algo, nĂŁo sabe?
â Miguel sempre estĂĄ.
â E mesmo assim vocĂȘ ainda divide o impĂ©rio com ele.
Melina se levantou lentamente. A diferença de altura entre eles era notåvel, mas ela parecia maior do que qualquer um. Era como se ocupasse o espaço com pura presença.
â Eu nĂŁo divido nada. Eu tomo o que Ă© meu, Kauan. Miguel sĂł ainda respira porque ainda me serve.
Ele sorriu de leve. Não em zombaria. Em admiração.
â Eu acredito em vocĂȘ, Melina. Mais do que vocĂȘ acredita em si mesma.
Aquelas palavras a pegaram desprevenida. Ela piscou devagar, como se estivesse tentando decifrĂĄ-lo. Mas antes que pudesse responder, ele deu um passo atrĂĄs.
â SĂł... tome cuidado. O tipo de poder que vocĂȘ carrega atrai todos os tipos de sombra. Inclusive as que fingem ser luz.
Ela ficou olhando enquanto ele saĂa. E sentiu algo apertar no peito.
Era medo. Mas nĂŁo do que Kauan representava.
Era medo do que ela estava começando a sentir.
Mais tarde naquele dia, Kauan estava no subsolo de um prĂ©dio velho, onde um informante aguardava com informaçÔes sobre Miguel. O ambiente era Ășmido, fĂ©tido, mas ele estava acostumado com lugares piores.
O homem falou rĂĄpido, nervoso:
â Miguel desconfia de vocĂȘ. Acha que vocĂȘ se aproximou da Melina por interesse. E estĂĄ começando a testar sua lealdade.
Kauan nĂŁo reagiu. Apenas ouviu, em silĂȘncio.
â Ele quer usar ela como isca. TĂĄ armando algo... grande. Talvez seja melhor vocĂȘ sumir por uns tempos.
Kauan segurou o homem pelo colarinho.
â NinguĂ©m encosta nela. NinguĂ©m.
O informante arregalou os olhos.
â VocĂȘ tĂĄ se envolvendo demais, cara...
â Ela Ă© o que resta de humano nesse inferno. E eu nĂŁo vou deixĂĄ-la queimar sozinha.
Naquela noite, ele voltou ao armazém, mas ficou no carro, do lado de fora. Observando. Esperando. Pensando em tudo o que ela carregava nas costas. Em tudo o que ainda viria.
E se perguntou...
SerĂĄ que ela me deixaria lutar ao lado dela? Ou serĂĄ que ela prefere sangrar sozinha?
A sombra dentro dele crescia. Mas era pela primeira vez, ele via uma luz no fim daquela escuridĂŁo.
E essa luz... tinha o nome dela.
Enquanto isso, Melina estava diante do espelho.
Ainda com o vestido justo que usara no armazĂ©m, os cabelos presos num coque frouxo, os olhos escuros como tempestade. Seus dedos deslizaram pela cicatriz fina logo abaixo da clavĂcula â uma lembrança antiga. Uma das muitas.
Ela pensava em Kauan. Pensava no modo como ele a olhava, como desafiava sem agredir, como oferecia resistĂȘncia sem menosprezĂĄ-la. Isso era raro. Isso era perigoso.
Melina havia se moldado para sobreviver. Para se tornar a mulher que ninguĂ©m ousava contrariar. Mas agora havia uma rachadura. Uma pequena, ainda imperceptĂvel. Mas que, se nĂŁo cuidasse, abriria caminho para um abismo.
Ela sabia que precisava manter o controle. Que Miguel, apesar de tudo, ainda era uma sombra constante. E que qualquer deslize colocaria tudo a perder.
Mas também sabia que havia algo diferente em Kauan.
Ela se virou para a penteadeira, onde um maço de cigarros repousava. Acendeu um, deu uma tragada longa e se encostou à parede, deixando a fumaça subir devagar. Seu olhar era distante, quase nostålgico.
No fundo, ela ainda era aquela garota com sonhos pequenos, cicatrizes profundas e uma sede insaciĂĄvel de liberdade. Uma que tinha aprendido a amar com medo, a obedecer calada e a sobreviver engolindo a prĂłpria voz.
Mas agora, nĂŁo mais.
Agora ela era Melina. LĂder. Perigo. Vontade. E, talvez, desejo.
E mesmo que estivesse perdida entre as sombras de Miguel e os olhos de Kauan, havia dentro dela uma certeza silenciosa:
Ninguém mais mandaria no seu coração.
Nem o passado. Nem a culpa. Nem o medo.
Ela se aproximou da janela. A cidade lĂĄ embaixo respirava violĂȘncia e promessa. E ali, entre o vidro e a fumaça, ela murmurou para si:
â Que venham as sombras⊠eu fui criada dentro delas.
E naquele instante, soube que a guerra estava só começando.
Com ou sem amor.
Com ou sem salvação.
Melina sentiu algo quebrar por dentro como um espelho estilhaçado. A mulher que ergueu um impĂ©rio com sangue, suor e silĂȘncio, nĂŁo era de se abalar facilmente. Mas aquela sensação â aquela intuição visceral de que algo estava errado â cravou fundo. Como uma adaga enfiada por alguĂ©m que ela nunca imaginaria.Tudo começou com um envelope, deixado sobre a mesa da sala da cobertura. Sem remetente. Apenas o nome dela rabiscado em tinta preta. Dentro, poucas pĂĄginas. RelatĂłrios. HorĂĄrios. Locais. Uma nota fiscal de hotel. E uma foto tremida, tirada de longe. Miguel, entrando num saguĂŁo luxuoso. Sozinho. Mas dias depois, a mesma rotina, no mesmo hotel. SĂł que dessa vez... acompanhado. A imagem nĂŁo mostrava o rosto da mulher. Apenas as pernas esguias e um salto vermelho que parecia ter sido escolhido para ser notado.Melina encarou aquela foto como se fosse uma sentença. NĂŁo havia beijo. NĂŁo havia nudez. Mas havia um cheiro de traição tĂŁo forte que o ar pareceu rarefeito. Ela sentiu as mĂŁos s
As flores no vaso da sala estavam murchas, mas Melina nem percebeu. Ela havia deixado de notar coisas assim fazia tempo. Agora, sĂł enxergava padrĂ”es. Erros. Riscos. Mentiras.A dor jĂĄ nĂŁo ardia como antes. Tinha se transformado em algo mais Ăștil. Frio. CirĂșrgico. Ela era boa nisso â transformar desgraça em arma. Mas ainda assim, algo dentro dela estava diferente. A mulher ferida começava a morrer. E em seu lugar, surgia algo pior.No espelho, ela observou os prĂłprios olhos: escuros, insones, intensos. Como se carregassem um cemitĂ©rio inteiro atrĂĄs deles.No celular, a mensagem de Kauan:âTem alguĂ©m dentro do seu cĂrculo. AlguĂ©m que fala demais.âEla nĂŁo respondeu. Mas aquilo acendeu uma nova linha de fogo dentro dela.Era mais do que Miguel. Era mais do que sexo. AlguĂ©m estava minando seu impĂ©rio por dentro. E ela precisava descobrir quem.Na sala de reuniĂ”es, os lĂderes de suas operaçÔes estavam reunidos. Jonas lia relatĂłrios. Kauan permanecia calado, no fundo da sala, como uma sombr
O som dos saltos ecoava pelo hall de mĂĄrmore branco. NinguĂ©m ousava parar Melina. A cada passo firme, os olhares se voltavam, mas ela nĂŁo retribuĂa. Sua atenção estava no celular, enquanto uma notificação atrĂĄs da outra confirmava a aprovação de um novo aporte. MilhĂ”es. Mais um negĂłcio promissor bancado por ela. Mais uma mulher tirando o sonho do papel e colocando o prĂłprio nome no mercado. E ninguĂ©m ali fazia ideia. No vigĂ©simo andar do edifĂcio mais discreto do bairro mais caro da cidade, estava sediada a fortaleza que Melina construiu sozinha: HEM. Uma holding de investimentos criada por e para mulheres. Seu impĂ©rio secreto. Uma rede de influĂȘncia e negĂłcios altamente rentĂĄvel â e 100% limpa. Tudo começou com trinta mil guardados, dois contatos confiĂĄveis e uma obsessĂŁo: nunca mais depender de Miguel. Na Ă©poca, ela ainda dividia a cama com ele, mas jĂĄ sentia o peso de um amor que nĂŁo sustentava mais nada alĂ©m da aparĂȘncia. E foi ali, em silĂȘncio, que a revolução começou. â Senho
O cigarro entre os dedos longos de Melina ardia com a mesma intensidade que o desejo que ela sentia por controle. Era um vĂcio antigo â nĂŁo o cigarro em si, mas o gesto. O controle. A pausa. O instante de prazer entre a tragada e a expiração. Um ritual silencioso que a acompanhava desde os tempos em que ainda era apenas uma garota marcada pela violĂȘncia e pela falta.Agora, com a brasa iluminando o rosto e a cidade se derramando aos seus pĂ©s, Melina se permitia um raro momento de contemplação. LĂĄ embaixo, no centro financeiro da cidade, o prĂ©dio onde ficava sua holding de investimentos femininos se destacava entre os outros â nĂŁo por ostentação, mas por eficiĂȘncia. Discreta. Precisa. Letal como ela.Era ali, longe dos olhos do cartel, que ela construĂa seu verdadeiro impĂ©rio.A HEM â Holding Empresarial Melina â era uma estrutura complexa, camuflada por camadas de sĂłcias e empresas de fachada. Mas o que ela fazia era simples: investia em mulheres. Em potencial bruto. Em fĂșria contida.
O cheiro de alecrim e manteiga invadia os cĂŽmodos da casa. Miguel havia caprichado no jantar. Na cozinha impecĂĄvel de mĂĄrmore preto, panelas reluziam sob a luz quente dos pendentes. Ele terminava de grelhar os filĂ©s, atento ao ponto certo da carne â como Melina sempre gostou. O vinho respirava em uma taça larga, a mĂșsica francesa tocava suave no ambiente. Tudo calculado para impressionar.Melina demorava a descer. Desde cedo, Miguel notou sua distĂąncia. Havia dias em que ela parecia ausente â com os olhos fixos em lugares que nĂŁo existiam ali. E mesmo quando estavam no mesmo cĂŽmodo, ele sentia a ausĂȘncia dela como uma ausĂȘncia fĂsica, como se o corpo presente nĂŁo fosse suficiente para preencher o vazio entre os dois.Ela desceu as escadas lentamente, vestida de preto, um vestido justo que marcava sua cintura fina, saltos agulha que ecoavam no mĂĄrmore claro. A maquiagem era impecĂĄvel, mas os olhos... havia algo diferente neles. Um olhar duro, como se ela jĂĄ tivesse
Uma notificação no celular vibrou sobre a penteadeira. Era de Celina, sua analista financeira e confidente de longa data. A mulher, que tambĂ©m fazia parte da HEM e cuidava discretamente de auditorias internas, havia mandado algo importante.Celina: âO relatĂłrio de repasses de capital ao ateliĂȘ estĂĄ estranho. HĂĄ indĂcios de que parte do valor foi desviado para contas ligadas a... ele.âMelina soltou a fumaça com lentidĂŁo, como se aquilo jĂĄ nĂŁo fosse mais surpresa. Tocou o visor com suavidade e respondeu:Melina: âContinue rastreando. Em breve, vamos fechar esse ciclo.âEla sabia que o âeleâ era Miguel.O vento cortava as ruas estreitas do centro financeiro com uma frieza que lembrava a da noite anterior. O dia amanhecia lento, encoberto por nuvens grossas, e Melina caminhava em passos firmes entre os arranha-cĂ©us espelhados, com um sobretudo preto e os cabelos presos em um coque impecĂĄvel. NĂŁo havia
A noite estava densa, úmida, e o som da chuva batendo na janela era quase hipnótico. Melina se remexia na cama, coberta apenas por um lençol fino. Sua respiração era irregular. A testa levemente suada. Seus olhos tremiam sob as pálpebras fechadas.No sonho, Miguel a puxava pela cintura com firmeza, os dedos cavando possessivos em sua pele. Estavam numa sala escura, antiga, cheia de sombras e veludo — ela de vestido de seda, ele com a gravata solta no pescoço. Beijos urgentes. Mãos explorando como se estivessem famintos.— “Você é minha, Melina”, ele sussurrava com voz grave, entre o prazer e a ameaça.E ela queria acreditar.Queria odiá-lo.Mas naquele sonho... ela ainda o amava.Do outro lado da porta, uma fresta entreaberta deixava escapar não só o calor da madrugada, mas o som abafado de gemidos. Kauan passava pelo corredor
O barulho dos saltos de Melina ecoava pelas paredes espelhadas da sala de reuniões, mas seus pensamentos estavam distantes dali. A HEM seguia em expansão, e ela havia agendado um encontro importante para aquele dia — com uma das mulheres que mais confiou no início de sua trajetória. Alguém que ela conhecia desde os tempos difíceis, quando ainda era uma bolsista determinada em meio à elite arrogante da Fundação Getúlio Vargas.Na noite anterior, após a conversa tensa com Kauan, Melina pegou o celular e digitou uma mensagem curta, mas carregada de intenção:“Nos vemos amanhã? Só você e eu. Preciso conversar. – M.”Helena não demorou a responder. Um simples: “Sempre que precisar.”Agora, Melina esperava por ela. Sabia que aquele reencontro poderia trazer à tona verdades incômo