InĂ­cio / Romance / Inferno Em Mim / đŸ‘€ CapĂ­tulo 4 - Sombra
đŸ‘€ CapĂ­tulo 4 - Sombra

A noite chegou mais densa do que o habitual. Não era só o céu, carregado de nuvens escuras, ou o vento cortante que soprava pelas ruas da cidade. Era algo mais. Algo que vinha de dentro. E Kauan sentia essa sombra se espalhar por cada centímetro de sua pele.

Ele estava no alto de um prédio abandonado na zona norte, observando a movimentação do galpão rival por trås de binóculos militares. Seu corpo, imóvel como o concreto sob seus pés, era pura tensão. Os olhos, atentos. A mente, agitada.

Mas o que o atormentava nĂŁo era o galpĂŁo.

Era Melina.

Desde que cruzara o olhar com ela pela primeira vez, sabia que algo dentro dele tinha se partido. NĂŁo pela beleza, embora ela fosse devastadora. Mas pelo que ela escondia por trĂĄs daquele olhar duro. Pela maneira como falava com firmeza, mesmo quando estava prestes a desmoronar. Pela cicatriz invisĂ­vel que carregava e que, de alguma forma, ecoava as dele.

Ele tentou afastå-la da cabeça. Sabia que não podia se dar a esse luxo. Não naquele mundo. Não naquela guerra.

E, principalmente, nĂŁo com uma mulher que ainda estava ligada a Miguel.

Mas ela nĂŁo saĂ­a de seus pensamentos.

Quando desceu do prédio e voltou para a moto, Kauan tirou o capacete e respirou fundo. O vento noturno cortou seu rosto e trouxe consigo memórias antigas. De outra cidade. De outra mulher. De um passado que ele tentou esquecer, mas que voltava sempre, como uma maldição.

Ele acelerou.

No esconderijo, o clima era de silĂȘncio. Os outros homens do cartel estavam dispersos, ocupados demais com seus prĂłprios demĂŽnios. Kauan nĂŁo era prĂłximo de nenhum. Gostava de manter distĂąncia. NĂŁo era o tipo que se envolvia. Nem com pessoas, nem com sentimentos. AtĂ© agora.

Ele passou a noite toda em vigĂ­lia. No escuro, sozinho, com os pensamentos corroendo por dentro.

Na manhã seguinte, voltou ao armazém de Melina.

Ela estava lĂĄ.

Sentada em frente a uma mesa, analisando mapas, coordenadas e relatĂłrios. Usava uma camisa preta justa, e o cabelo estava preso em um coque alto. Os olhos estavam levemente inchados — ela havia chorado? Dormido mal? — mas ninguĂ©m ousaria comentar.

Kauan a observou de longe por alguns segundos. Depois se aproximou, em silĂȘncio.

— A movimentação na zona norte aumentou — ele disse. — Estão reforçando a segurança.

— Esperado — ela respondeu, sem tirar os olhos do mapa. — Miguel está em guerra, mesmo que finja que não.

— E vocĂȘ?

Ela o olhou pela primeira vez naquele dia.

— Eu estou sobrevivendo.

Houve uma pausa. Longa o suficiente para que o ar ficasse mais pesado entre eles.

— VocĂȘ tem dormido? — ele perguntou.

— O suficiente pra não perder o controle.

Kauan se aproximou mais um passo. Podia sentir o perfume dela, algo entre jasmim e pĂłlvora. Era um aroma que viciava. Como ela.

— VocĂȘ sabe que ele estĂĄ preparando algo, nĂŁo sabe?

— Miguel sempre está.

— E mesmo assim vocĂȘ ainda divide o impĂ©rio com ele.

Melina se levantou lentamente. A diferença de altura entre eles era notåvel, mas ela parecia maior do que qualquer um. Era como se ocupasse o espaço com pura presença.

— Eu nĂŁo divido nada. Eu tomo o que Ă© meu, Kauan. Miguel sĂł ainda respira porque ainda me serve.

Ele sorriu de leve. Não em zombaria. Em admiração.

— Eu acredito em vocĂȘ, Melina. Mais do que vocĂȘ acredita em si mesma.

Aquelas palavras a pegaram desprevenida. Ela piscou devagar, como se estivesse tentando decifrĂĄ-lo. Mas antes que pudesse responder, ele deu um passo atrĂĄs.

— SĂł... tome cuidado. O tipo de poder que vocĂȘ carrega atrai todos os tipos de sombra. Inclusive as que fingem ser luz.

Ela ficou olhando enquanto ele saĂ­a. E sentiu algo apertar no peito.

Era medo. Mas nĂŁo do que Kauan representava.

Era medo do que ela estava começando a sentir.

Mais tarde naquele dia, Kauan estava no subsolo de um prĂ©dio velho, onde um informante aguardava com informaçÔes sobre Miguel. O ambiente era Ășmido, fĂ©tido, mas ele estava acostumado com lugares piores.

O homem falou rĂĄpido, nervoso:

— Miguel desconfia de vocĂȘ. Acha que vocĂȘ se aproximou da Melina por interesse. E estĂĄ começando a testar sua lealdade.

Kauan nĂŁo reagiu. Apenas ouviu, em silĂȘncio.

— Ele quer usar ela como isca. TĂĄ armando algo... grande. Talvez seja melhor vocĂȘ sumir por uns tempos.

Kauan segurou o homem pelo colarinho.

— NinguĂ©m encosta nela. NinguĂ©m.

O informante arregalou os olhos.

— VocĂȘ tĂĄ se envolvendo demais, cara...

— Ela Ă© o que resta de humano nesse inferno. E eu nĂŁo vou deixĂĄ-la queimar sozinha.

Naquela noite, ele voltou ao armazém, mas ficou no carro, do lado de fora. Observando. Esperando. Pensando em tudo o que ela carregava nas costas. Em tudo o que ainda viria.

E se perguntou...

SerĂĄ que ela me deixaria lutar ao lado dela? Ou serĂĄ que ela prefere sangrar sozinha?

A sombra dentro dele crescia. Mas era pela primeira vez, ele via uma luz no fim daquela escuridĂŁo.

E essa luz... tinha o nome dela.

Enquanto isso, Melina estava diante do espelho.

Ainda com o vestido justo que usara no armazĂ©m, os cabelos presos num coque frouxo, os olhos escuros como tempestade. Seus dedos deslizaram pela cicatriz fina logo abaixo da clavĂ­cula — uma lembrança antiga. Uma das muitas.

Ela pensava em Kauan. Pensava no modo como ele a olhava, como desafiava sem agredir, como oferecia resistĂȘncia sem menosprezĂĄ-la. Isso era raro. Isso era perigoso.

Melina havia se moldado para sobreviver. Para se tornar a mulher que ninguém ousava contrariar. Mas agora havia uma rachadura. Uma pequena, ainda imperceptível. Mas que, se não cuidasse, abriria caminho para um abismo.

Ela sabia que precisava manter o controle. Que Miguel, apesar de tudo, ainda era uma sombra constante. E que qualquer deslize colocaria tudo a perder.

Mas também sabia que havia algo diferente em Kauan.

Ela se virou para a penteadeira, onde um maço de cigarros repousava. Acendeu um, deu uma tragada longa e se encostou à parede, deixando a fumaça subir devagar. Seu olhar era distante, quase nostålgico.

No fundo, ela ainda era aquela garota com sonhos pequenos, cicatrizes profundas e uma sede insaciĂĄvel de liberdade. Uma que tinha aprendido a amar com medo, a obedecer calada e a sobreviver engolindo a prĂłpria voz.

Mas agora, nĂŁo mais.

Agora ela era Melina. LĂ­der. Perigo. Vontade. E, talvez, desejo.

E mesmo que estivesse perdida entre as sombras de Miguel e os olhos de Kauan, havia dentro dela uma certeza silenciosa:

Ninguém mais mandaria no seu coração.

Nem o passado. Nem a culpa. Nem o medo.

Ela se aproximou da janela. A cidade lĂĄ embaixo respirava violĂȘncia e promessa. E ali, entre o vidro e a fumaça, ela murmurou para si:

— Que venham as sombras
 eu fui criada dentro delas.

E naquele instante, soube que a guerra estava só começando.

Com ou sem amor.

Com ou sem salvação.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o cĂłdigo para baixar o App

CapĂ­tulos relacionados

Último capítulo

Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto nĂșmero de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que vocĂȘ gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o cĂłdigo para ler no App