Melina sentiu algo quebrar por dentro como um espelho estilhaçado. A mulher que ergueu um império com sangue, suor e silêncio, não era de se abalar facilmente. Mas aquela sensação — aquela intuição visceral de que algo estava errado — cravou fundo. Como uma adaga enfiada por alguém que ela nunca imaginaria.
Tudo começou com um envelope, deixado sobre a mesa da sala da cobertura. Sem remetente. Apenas o nome dela rabiscado em tinta preta. Dentro, poucas páginas. Relatórios. Horários. Locais. Uma nota fiscal de hotel. E uma foto tremida, tirada de longe. Miguel, entrando num saguão luxuoso. Sozinho. Mas dias depois, a mesma rotina, no mesmo hotel. Só que dessa vez... acompanhado. A imagem não mostrava o rosto da mulher. Apenas as pernas esguias e um salto vermelho que parecia ter sido escolhido para ser notado. Melina encarou aquela foto como se fosse uma sentença. Não havia beijo. Não havia nudez. Mas havia um cheiro de traição tão forte que o ar pareceu rarefeito. Ela sentiu as mãos suarem. Os olhos queimarem. A cabeça latejar. Mas não chorou. Ela já chorou por homens antes. Chorou até secar. Dessa vez, não. Dessa vez, a dor era diferente. Era silenciosa, densa e calculada. À noite, não disse uma palavra. Observou Miguel chegar, sorrir, tirar o paletó e beijá-la como fazia sempre. Como se nada estivesse fora do lugar. Como se aquele salto vermelho não estivesse cravado em sua mente como um espinho envenenado. No galpão, seus passos soavam duros, pontuados de raiva contida. A tempestade que se formava no céu parecia uma extensão dela mesma. Os relâmpagos, gritos internos. Os trovões, seus pensamentos em ebulição. — Jonas — ela disse ao entrar, a voz mais afiada que lâmina. — Senhora? — ele respondeu, endireitando o corpo. — Relatórios da movimentação no porto. Quero nomes, horários, e... se alguém diferente tem frequentado a região. Principalmente mulheres. — Mulheres? — Não repita. Apenas faça. Ela já não era só suspeita. Era investigação. Na penumbra do galpão, viu Kauan, sempre à espreita. O homem das sombras, dos silêncios. Desde que entrou em seu círculo, Melina sentia algo nele: um reflexo talvez. Uma ameaça talvez. Mas acima de tudo... confiança. Ela caminhou até ele, decidida. — Preciso que descubra algo. — Diga. — Miguel. Quero saber onde tem ido. Com quem tem falado. Discretamente. — Está desconfiando de algo? Ela apenas o encarou. — Quando tiver algo, me avise. Kauan assentiu com um movimento seco. Naquela noite, Melina não dormiu. Ficou sentada na poltrona da varanda, cigarro entre os dedos, olhos perdidos no nada. A cidade lá embaixo pulsava, mas dentro dela tudo estava suspenso, como se o tempo tivesse parado para dar lugar ao presságio. Pela manhã, Kauan reapareceu. — Estive em um dos locais citados nos relatórios do porto. Miguel esteve lá sim, mas... não sozinho. — Quem estava com ele? — Não consegui ver. Mas era uma mulher. Entraram em um carro com placas falsas. Foram até um prédio em Copacabana. — E o que tem nesse prédio? — Ainda estou investigando. Mas ele pertence a uma empresa de fachada. Conexões com o cartel do Salazar. O nome a fez cerrar os olhos. Salazar. O mesmo nome que há anos ela enterrou com ódio. O cartel que quase matou seu irmão. O sangue gelou. Mas ela não mostrou. Apenas sorriu, com os olhos cheios de guerra. — Continue. Sem alarde. Quero saber quem é essa mulher. Quero ver o rosto dela. Kauan hesitou, mas assentiu. Horas depois, em sua cobertura, Melina pegou o salto vermelho de seu armário. Era idêntico ao da foto. Ela o observou com cuidado, lembrando-se de quem costumava usar esse modelo. Apenas uma mulher veio à mente. E isso fez seu estômago virar. Mas não. Ainda era cedo para certezas. A raiva precisava ser fria. Calculada. Mortal. Jonas entrou no escritório. — Miguel sumiu. Disseram que viajou, mas ninguém sabe pra onde. — Ele sempre some quando tem algo a esconder — ela respondeu. O telefone tocou. Um número desconhecido. Ao atender, ouviu apenas uma voz mascarada: — O salto vermelho é só o começo. A ligação caiu. Ela largou o aparelho e respirou fundo. Agora era pessoal. Agora era fogo. A ruína não a destruía. A ruína a reerguia.As flores no vaso da sala estavam murchas, mas Melina nem percebeu. Ela havia deixado de notar coisas assim fazia tempo. Agora, só enxergava padrões. Erros. Riscos. Mentiras.A dor já não ardia como antes. Tinha se transformado em algo mais útil. Frio. Cirúrgico. Ela era boa nisso — transformar desgraça em arma. Mas ainda assim, algo dentro dela estava diferente. A mulher ferida começava a morrer. E em seu lugar, surgia algo pior.No espelho, ela observou os próprios olhos: escuros, insones, intensos. Como se carregassem um cemitério inteiro atrás deles.No celular, a mensagem de Kauan:“Tem alguém dentro do seu círculo. Alguém que fala demais.”Ela não respondeu. Mas aquilo acendeu uma nova linha de fogo dentro dela.Era mais do que Miguel. Era mais do que sexo. Alguém estava minando seu império por dentro. E ela precisava descobrir quem.Na sala de reuniões, os líderes de suas operações estavam reunidos. Jonas lia relatórios. Kauan permanecia calado, no fundo da sala, como uma sombr
O som dos saltos ecoava pelo hall de mármore branco. Ninguém ousava parar Melina. A cada passo firme, os olhares se voltavam, mas ela não retribuía. Sua atenção estava no celular, enquanto uma notificação atrás da outra confirmava a aprovação de um novo aporte. Milhões. Mais um negócio promissor bancado por ela. Mais uma mulher tirando o sonho do papel e colocando o próprio nome no mercado. E ninguém ali fazia ideia. No vigésimo andar do edifício mais discreto do bairro mais caro da cidade, estava sediada a fortaleza que Melina construiu sozinha: HEM. Uma holding de investimentos criada por e para mulheres. Seu império secreto. Uma rede de influência e negócios altamente rentável — e 100% limpa. Tudo começou com trinta mil guardados, dois contatos confiáveis e uma obsessão: nunca mais depender de Miguel. Na época, ela ainda dividia a cama com ele, mas já sentia o peso de um amor que não sustentava mais nada além da aparência. E foi ali, em silêncio, que a revolução começou. — Senho
O cigarro entre os dedos longos de Melina ardia com a mesma intensidade que o desejo que ela sentia por controle. Era um vício antigo — não o cigarro em si, mas o gesto. O controle. A pausa. O instante de prazer entre a tragada e a expiração. Um ritual silencioso que a acompanhava desde os tempos em que ainda era apenas uma garota marcada pela violência e pela falta.Agora, com a brasa iluminando o rosto e a cidade se derramando aos seus pés, Melina se permitia um raro momento de contemplação. Lá embaixo, no centro financeiro da cidade, o prédio onde ficava sua holding de investimentos femininos se destacava entre os outros — não por ostentação, mas por eficiência. Discreta. Precisa. Letal como ela.Era ali, longe dos olhos do cartel, que ela construía seu verdadeiro império.A HEM — Holding Empresarial Melina — era uma estrutura complexa, camuflada por camadas de sócias e empresas de fachada. Mas o que ela fazia era simples: investia em mulheres. Em potencial bruto. Em fúria contida.
O cheiro de alecrim e manteiga invadia os cômodos da casa. Miguel havia caprichado no jantar. Na cozinha impecável de mármore preto, panelas reluziam sob a luz quente dos pendentes. Ele terminava de grelhar os filés, atento ao ponto certo da carne — como Melina sempre gostou. O vinho respirava em uma taça larga, a música francesa tocava suave no ambiente. Tudo calculado para impressionar.Melina demorava a descer. Desde cedo, Miguel notou sua distância. Havia dias em que ela parecia ausente — com os olhos fixos em lugares que não existiam ali. E mesmo quando estavam no mesmo cômodo, ele sentia a ausência dela como uma ausência física, como se o corpo presente não fosse suficiente para preencher o vazio entre os dois.Ela desceu as escadas lentamente, vestida de preto, um vestido justo que marcava sua cintura fina, saltos agulha que ecoavam no mármore claro. A maquiagem era impecável, mas os olhos... havia algo diferente neles. Um olhar duro, como se ela já tivesse
Uma notificação no celular vibrou sobre a penteadeira. Era de Celina, sua analista financeira e confidente de longa data. A mulher, que também fazia parte da HEM e cuidava discretamente de auditorias internas, havia mandado algo importante.Celina: “O relatório de repasses de capital ao ateliê está estranho. Há indícios de que parte do valor foi desviado para contas ligadas a... ele.”Melina soltou a fumaça com lentidão, como se aquilo já não fosse mais surpresa. Tocou o visor com suavidade e respondeu:Melina: “Continue rastreando. Em breve, vamos fechar esse ciclo.”Ela sabia que o “ele” era Miguel.O vento cortava as ruas estreitas do centro financeiro com uma frieza que lembrava a da noite anterior. O dia amanhecia lento, encoberto por nuvens grossas, e Melina caminhava em passos firmes entre os arranha-céus espelhados, com um sobretudo preto e os cabelos presos em um coque impecável. Não havia
A noite estava densa, úmida, e o som da chuva batendo na janela era quase hipnótico. Melina se remexia na cama, coberta apenas por um lençol fino. Sua respiração era irregular. A testa levemente suada. Seus olhos tremiam sob as pálpebras fechadas.No sonho, Miguel a puxava pela cintura com firmeza, os dedos cavando possessivos em sua pele. Estavam numa sala escura, antiga, cheia de sombras e veludo — ela de vestido de seda, ele com a gravata solta no pescoço. Beijos urgentes. Mãos explorando como se estivessem famintos.— “Você é minha, Melina”, ele sussurrava com voz grave, entre o prazer e a ameaça.E ela queria acreditar.Queria odiá-lo.Mas naquele sonho... ela ainda o amava.Do outro lado da porta, uma fresta entreaberta deixava escapar não só o calor da madrugada, mas o som abafado de gemidos. Kauan passava pelo corredor
O barulho dos saltos de Melina ecoava pelas paredes espelhadas da sala de reuniões, mas seus pensamentos estavam distantes dali. A HEM seguia em expansão, e ela havia agendado um encontro importante para aquele dia — com uma das mulheres que mais confiou no início de sua trajetória. Alguém que ela conhecia desde os tempos difíceis, quando ainda era uma bolsista determinada em meio à elite arrogante da Fundação Getúlio Vargas.Na noite anterior, após a conversa tensa com Kauan, Melina pegou o celular e digitou uma mensagem curta, mas carregada de intenção:“Nos vemos amanhã? Só você e eu. Preciso conversar. – M.”Helena não demorou a responder. Um simples: “Sempre que precisar.”Agora, Melina esperava por ela. Sabia que aquele reencontro poderia trazer à tona verdades incômo
O tremor não começou no chão.Começou no olhar de Miguel.Logo depois daquele jantar envolto em tensão, com palavras afiadas e corpos prestes a se tocarem por desejo ou por guerra, Melina saiu da casa dele sentindo-se em um campo minado. Miguel não havia respondido diretamente à pergunta. Mas os olhos dele falaram. E o modo como segurou seu braço. O vinco que surgiu na testa. O copo de vinho deixado pela metade. Pequenos gestos de um homem que sabe mais do que deveria.E era exatamente isso que causava o tremor.Ao retornar para sua cobertura, Melina não conseguiu dormir. Repassou cada detalhe da noite, tentando extrair informações ocultas. Não era apenas Miguel. Era o sistema em torno dele. Homens ricos não caem sozinhos, eles caem em silêncio, com aliados, com padrinhos. E Miguel era um desses. Um príncipe em um castelo de sombras.Ela sabia que precisava acelerar os passos. Havia mais traições no caminho.Naquela manhã, Melina foi até o escritório da HEM pessoalmente. Evitava fazer