O cheiro de alecrim e manteiga invadia os cômodos da casa. Miguel havia caprichado no jantar. Na cozinha impecável de mármore preto, panelas reluziam sob a luz quente dos pendentes. Ele terminava de grelhar os filés, atento ao ponto certo da carne — como Melina sempre gostou. O vinho respirava em uma taça larga, a música francesa tocava suave no ambiente. Tudo calculado para impressionar.
Melina demorava a descer. Desde cedo, Miguel notou sua distância. Havia dias em que ela parecia ausente — com os olhos fixos em lugares que não existiam ali. E mesmo quando estavam no mesmo cômodo, ele sentia a ausência dela como uma ausência física, como se o corpo presente não fosse suficiente para preencher o vazio entre os dois.Ela desceu as escadas lentamente, vestida de preto, um vestido justo que marcava sua cintura fina, saltos agulha que ecoavam no mármore claro. A maquiagem era impecável, mas os olhos... havia algo diferente neles. Um olhar duro, como se ela já tivesseUma notificação no celular vibrou sobre a penteadeira. Era de Celina, sua analista financeira e confidente de longa data. A mulher, que também fazia parte da HEM e cuidava discretamente de auditorias internas, havia mandado algo importante.Celina: “O relatório de repasses de capital ao ateliê está estranho. Há indícios de que parte do valor foi desviado para contas ligadas a... ele.”Melina soltou a fumaça com lentidão, como se aquilo já não fosse mais surpresa. Tocou o visor com suavidade e respondeu:Melina: “Continue rastreando. Em breve, vamos fechar esse ciclo.”Ela sabia que o “ele” era Miguel.O vento cortava as ruas estreitas do centro financeiro com uma frieza que lembrava a da noite anterior. O dia amanhecia lento, encoberto por nuvens grossas, e Melina caminhava em passos firmes entre os arranha-céus espelhados, com um sobretudo preto e os cabelos presos em um coque impecável. Não havia
A noite estava densa, úmida, e o som da chuva batendo na janela era quase hipnótico. Melina se remexia na cama, coberta apenas por um lençol fino. Sua respiração era irregular. A testa levemente suada. Seus olhos tremiam sob as pálpebras fechadas.No sonho, Miguel a puxava pela cintura com firmeza, os dedos cavando possessivos em sua pele. Estavam numa sala escura, antiga, cheia de sombras e veludo — ela de vestido de seda, ele com a gravata solta no pescoço. Beijos urgentes. Mãos explorando como se estivessem famintos.— “Você é minha, Melina”, ele sussurrava com voz grave, entre o prazer e a ameaça.E ela queria acreditar.Queria odiá-lo.Mas naquele sonho... ela ainda o amava.Do outro lado da porta, uma fresta entreaberta deixava escapar não só o calor da madrugada, mas o som abafado de gemidos. Kauan passava pelo corredor
O barulho dos saltos de Melina ecoava pelas paredes espelhadas da sala de reuniões, mas seus pensamentos estavam distantes dali. A HEM seguia em expansão, e ela havia agendado um encontro importante para aquele dia — com uma das mulheres que mais confiou no início de sua trajetória. Alguém que ela conhecia desde os tempos difíceis, quando ainda era uma bolsista determinada em meio à elite arrogante da Fundação Getúlio Vargas.Na noite anterior, após a conversa tensa com Kauan, Melina pegou o celular e digitou uma mensagem curta, mas carregada de intenção:“Nos vemos amanhã? Só você e eu. Preciso conversar. – M.”Helena não demorou a responder. Um simples: “Sempre que precisar.”Agora, Melina esperava por ela. Sabia que aquele reencontro poderia trazer à tona verdades incômo
O tremor não começou no chão.Começou no olhar de Miguel.Logo depois daquele jantar envolto em tensão, com palavras afiadas e corpos prestes a se tocarem por desejo ou por guerra, Melina saiu da casa dele sentindo-se em um campo minado. Miguel não havia respondido diretamente à pergunta. Mas os olhos dele falaram. E o modo como segurou seu braço. O vinco que surgiu na testa. O copo de vinho deixado pela metade. Pequenos gestos de um homem que sabe mais do que deveria.E era exatamente isso que causava o tremor.Ao retornar para sua cobertura, Melina não conseguiu dormir. Repassou cada detalhe da noite, tentando extrair informações ocultas. Não era apenas Miguel. Era o sistema em torno dele. Homens ricos não caem sozinhos, eles caem em silêncio, com aliados, com padrinhos. E Miguel era um desses. Um príncipe em um castelo de sombras.Ela sabia que precisava acelerar os passos. Havia mais traições no caminho.Naquela manhã, Melina foi até o escritório da HEM pessoalmente. Evitava fazer
Miguel não se moveu quando Melina atravessou as portas automáticas. Ficou parado, estático, observando o vazio deixado por ela como se o ar ao redor tivesse perdido o cheiro de perfume e ganhado o peso de algo irreversível.Seu maxilar estava travado. As mãos cerradas.Ela ousou. E ele amava quando ela ousava.Mas odiava ainda mais quando ela o desafiava.Andou até a parede de vidro que dava para a avenida. De lá, viu Melina entrando em um carro preto, os vidros escurecidos refletindo o céu nublado. O salto dela soava em sua mente como um eco de guerra. Uma marcha silenciosa. Uma despedida que ele não permitira. Não ainda.Encostou a testa no vidro frio.“Lembranças, filha da puta de palavra.”Era o que Melina sempre dizia quando queria fugir de si mesma.E agora era ele quem se afogava nelas.Eles se conheceram na universidade.Ela tinha vinte e dois. Ele, trinta e cinco. Era um ex-aluno convidado para palestrar sobre mercado financeiro e estratégias de investimento. Miguel lembrava
A primeira lição que ela aprendeu foi o silêncio.Melina sentava-se à mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mãos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisível, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estômago estava revirado. Obediência era amor, ele dizia. E amor era sacrifício. Ela repetia isso como um mantra, noite após noite, até que parou de ouvir a própria voz.Naquela manhã, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero — salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma história que não era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questioná-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.Miguel odiava desobediência. E Melina era uma aluna exemplar.Desceu as escadas da mansão com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz — dizia que era música de homens inteligentes. O
Não era apenas a vista que a enjaulava. Era a ideia de que cada escolha que fazia não lhe pertencia. O quarto em que Melina acordava todos os dias era amplo, luxuoso e sufocante como um caixão de veludo. O teto era alto, as janelas largas, os lençóis macios — mas tudo ali parecia feito para mantê-la confortável na prisão que alguém construiu com muito dinheiro e pouco afeto.Ela acordou cedo, como sempre fazia, porque o corpo ainda carregava o instinto de agradar. Mas o coração... o coração estava mudando.Ela se sentou na beira da cama, sentindo os lençóis frios tocarem a pele nua. Miguel jazia ao seu lado, dormindo pesado, o peito subindo e descendo em um ritmo preguiçoso. Ela o observou por alguns segundos, como se buscasse alguma humanidade no homem que um dia acreditou amar. Não encontrou nada além de controle. De medo. De poder mal distribuído.Levantou-se em silêncio, vestindo uma camisola preta de seda, e caminhou até a varanda. A cidade se estendia diante dela, com seus grito
A chuva caía pesada sobre a cidade quando Melina entrou no carro blindado, protegida por dois dos seus homens. Era dia de inspeção. O armazém novo estava em fase de consolidação, e ela fazia questão de estar presente em cada detalhe — algo que Miguel raramente permitia, mas que ela fazia mesmo assim. A diferença era que agora, não mais pedia permissão. Apenas ia.O motorista seguiu silencioso, e os seguranças também. Todos sabiam quem ela era. E mais importante: quem ela podia se tornar.No banco de trás, sozinha, Melina olhava a cidade molhada por trás dos vidros escuros. Pensava na conversa do dia anterior. Em Kauan. Em sua resposta. "Ou me libertar."Era ousado demais para um homem recém-chegado. Mas era isso que a intrigava nele. Ele não pedia espaço — ele tomava. E fazia isso com um olhar.No armazém, ela caminhou entre caixas, checando lacres, verificando registros. O cheiro de pó e madeira molhada tomava o ambiente, e seus saltos batiam contra o piso de concreto com autoridade.