InĂ­cio / Romance / Inferno Em Mim / đŸ–€ CapĂ­tulo 1 – ObediĂȘncia
Inferno Em Mim
Inferno Em Mim
Por: Yiskah
đŸ–€ CapĂ­tulo 1 – ObediĂȘncia

A primeira lição que ela aprendeu foi o silĂȘncio.

Melina sentava-se Ă  mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mĂŁos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisĂ­vel, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estĂŽmago estava revirado. ObediĂȘncia era amor, ele dizia. E amor era sacrifĂ­cio. Ela repetia isso como um mantra, noite apĂłs noite, atĂ© que parou de ouvir a prĂłpria voz.

Naquela manhã, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero — salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma história que não era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questioná-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.

Miguel odiava desobediĂȘncia. E Melina era uma aluna exemplar.

Desceu as escadas da mansĂŁo com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz — dizia que era mĂșsica de homens inteligentes. O cheiro de cafĂ© recĂ©m-passado flutuava no ar, misturado ao perfume caro que ele usava: Ăąmbar, couro e algo levemente metĂĄlico.

Ela o encontrou sentado, camisa branca impecĂĄvel, mangas dobradas, dedos tamborilando lentamente no braço do sofĂĄ. NĂŁo sorriu ao vĂȘ-la. Nunca sorria. Apenas acenou com o queixo para que ela se aproximasse.

— VocĂȘ atrasou — disse ele, sem tirar os olhos da xĂ­cara de cafĂ©.

— O motorista se perdeu no desvio da avenida nova — respondeu, baixo, como se sua própria voz a punisse por tentar se justificar.

Ele a olhou, finalmente. Aqueles olhos castanhos escuros, duros, como rochas molhadas por tempestades.

— Isso nĂŁo Ă© desculpa. Se vocĂȘ fosse importante o suficiente, ele teria chegado a tempo.

SilĂȘncio. Melina apenas assentiu. Sentou-se na poltrona Ă  frente, mantendo a postura impecĂĄvel. Sabia exatamente como deveria parecer: frĂĄgil, mas nĂŁo burra. Bonita, mas nĂŁo vulgar. Inteligente, mas nĂŁo desafiadora.

— VocĂȘ vai ao jantar com os espanhĂłis hoje Ă  noite — Miguel avisou, tomando um gole do cafĂ©.

Melina hesitou. Havia outra reuniĂŁo, uma que ela prĂłpria organizara com as mulheres da comunidade da zona norte, para distribuir suprimentos e recrutar discretamente mais colaboradoras para sua rede. Era algo pequeno, mas importante. Algo que ela mesma havia construĂ­do, longe dos olhos dele.

— Pensei que vocĂȘ iria com o Ruan — disse, medindo o tom.

O som da xícara sendo colocada com força demais sobre o pires a fez estremecer.

— Ruan nĂŁo causa impacto. VocĂȘ, sim. Quero vocĂȘ do meu lado.

E lĂĄ estava: o "quero". Nunca foi "gostaria", "preciso", ou "aceitaria". Sempre uma ordem disfarçada de afeto. Miguel a queria como seu trofĂ©u — a mulher bela, silenciosa e obediente ao lado do traficante refinado. Um sĂ­mbolo de poder.

Ela não respondeu de imediato. Uma parte dela queria explodir. Gritar. Dizer que tinha outras prioridades. Mas então, os olhos dele se estreitaram — e ela lembrou. Daquela vez no quarto, o vidro quebrado, a porta trancada, os hematomas em lugares escondidos. Lembrou da dor. Do gosto de sangue na boca. Da solidão.

— Está bem. Irei — disse, e seus olhos pareceram se desligar.

Miguel sorriu, satisfeito, e voltou ao jazz.

Horas depois, Melina estava na suĂ­te, observando a cidade pela janela. A mansĂŁo de Miguel ficava em um dos morros mais altos da zona sul — um trono de concreto e violĂȘncia. As luzes lĂĄ embaixo brilhavam como se o mundo fosse belo, como se ela nĂŁo estivesse presa a um conto de terror disfarçado de romance.

Pegou o celular. Havia uma mensagem de Raissa, sua aliada mais prĂłxima, perguntando se a reuniĂŁo com as mulheres seria mantida.

"Vai sem mim. DĂȘ as instruçÔes. E diga a elas que logo... tudo muda."

Digitou com os dedos tensos. Enviar aquela mensagem era, por si sĂł, um ato de rebeldia.

No fundo, Melina sabia. Algo dentro dela começava a se agitar. O eco de uma mulher que existia antes de Miguel. Uma faísca. Uma vontade de não obedecer.

Mas ela precisava de tempo. Discrição. Precisava parecer perfeita — atĂ© nĂŁo ser mais.

À noite, no jantar com os espanhóis, ela brilhou.

Cabelo preso num coque milimetricamente desalinhado, olhos esfumados em tons escuros, vestido preto que delineava seu corpo sem gritar. Miguel a apresentou como “minha mulher”. E ela sorriu, como ensaiado. Riu das piadas, fingiu estar interessada nas propostas. Mas seus olhos estavam atentos aos detalhes.

O mais jovem dos espanhĂłis, Diego, parecia observĂĄ-la mais do que devia. Era bonito. Atraente de um jeito perigoso. Mas nĂŁo foi nele que seus olhos pararam quando o salĂŁo se abriu para receber o novo convidado.

Ele entrou como quem nĂŁo devia nada ao mundo. Jeans escuros, blazer amassado, barba mal feita. Era a antĂ­tese de tudo o que aquele ambiente representava.

— Kauan Silva — disse o espanhol, orgulhoso. — Nosso reforço vindo do Brasil. Ex-policial. Sabe como lidar com polícia e com vagabundo.

Melina nĂŁo escondeu a surpresa. Ele olhou diretamente para ela, como se jĂĄ a conhecesse. E sorriu. Um sorriso lento, cheio de desafio.

— Encantado, senhora
?

— Melina — respondeu, antes que Miguel o fizesse.

— Melina — repetiu ele, como se provasse o nome na língua. — Bonito. Forte. Nome de mulher que comanda.

Miguel estreitou os olhos. A tensĂŁo flutuou no ar como cheiro de pĂłlvora. Mas Melina nĂŁo desviou o olhar. Pela primeira vez em muito tempo, nĂŁo desviou.

Na madrugada, deitada ao lado de Miguel, escutando-o roncar, Melina olhava para o teto com os olhos abertos.

Uma palavra martelava em sua cabeça:

ObediĂȘncia.

E ela soube, com a clareza de uma lĂąmina:

Estava pronta para desobedecer.

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