Não era apenas a vista que a enjaulava. Era a ideia de que cada escolha que fazia não lhe pertencia. O quarto em que Melina acordava todos os dias era amplo, luxuoso e sufocante como um caixão de veludo. O teto era alto, as janelas largas, os lençóis macios — mas tudo ali parecia feito para mantê-la confortável na prisão que alguém construiu com muito dinheiro e pouco afeto.
Ela acordou cedo, como sempre fazia, porque o corpo ainda carregava o instinto de agradar. Mas o coração... o coração estava mudando.
Ela se sentou na beira da cama, sentindo os lençóis frios tocarem a pele nua. Miguel jazia ao seu lado, dormindo pesado, o peito subindo e descendo em um ritmo preguiçoso. Ela o observou por alguns segundos, como se buscasse alguma humanidade no homem que um dia acreditou amar. Não encontrou nada além de controle. De medo. De poder mal distribuído.
Levantou-se em silêncio, vestindo uma camisola preta de seda, e caminhou até a varanda. A cidade se estendia diante dela, com seus gritos silenciosos e becos que conhecia bem. Ali embaixo, ela era temida. Era chamada de "La Viúva Negra", embora nunca tivesse ficado viúva. Era um nome que Miguel havia incentivado, como se gostasse da ideia de que ela fosse uma mulher fatal, desde que o veneno não fosse para ele.
Mas o veneno estava crescendo.
Pegou o celular e checou as mensagens. Raissa havia enviado um áudio. Melina colocou os fones discretamente e ouviu:
— Elas tão prontas. A distribuição rolou como o esperado. A Layla falou que aquela polícia que rondava o bairro sumiu do nada. Estranho, mas bom. Você tem certeza que ele não sabe?
“Ele”. Miguel. A sombra que pairava sobre tudo.
Melina apagou o áudio após ouvir. Não podia deixar rastros. Não ainda.
Ela desceu as escadas duas horas depois, pronta para mais um dia de teatro. Miguel já estava acordado e vestido, sentado à cabeceira da mesa do café da manhã. Ruan estava ao lado, revisando alguns papéis, e do outro lado da sala, para sua surpresa, Kauan.
Ele estava ali, recém-chegado, como se sempre tivesse pertencido àquele círculo. Vestia preto da cabeça aos pés, e seus olhos analisavam o ambiente com frieza. Até pousarem sobre ela.
— Melina — ele disse com um leve aceno, não um sorriso. Uma constatação. Como se seu nome fosse uma palavra proibida e ele tivesse prazer em repeti-la.
Miguel ergueu os olhos também, como quem avalia se havia algo demais naquele cumprimento. Melina manteve a calma.
— Bom dia. Você é pontual — ela respondeu, sentando-se com graça felina. Pegou a taça de suco como se não tivesse sentido aquele arrepio subir pela espinha.
— Fui treinado para isso. E para perceber quem comanda, mesmo que esteja em silêncio.
Os olhos de Miguel cortaram o espaço como faca. — Aqui, todos sabemos quem comanda.
Kauan sorriu, lento, perigoso.
— Claro. É por isso que estou aqui. Para obedecer... e observar.
Melina permaneceu em silêncio, mas por dentro, uma risada contida queimava. Não era sobre o que ele dizia. Era como ele dizia. Como se falasse com ela por baixo de todas aquelas palavras triviais.
Naquela manhã, ela o viu melhor. O maxilar trincado, os olhos que não desviavam, a forma como os dedos tamborilavam na mesa, como se tivessem pressa para agir. Kauan era um homem com fome. Mas não era Miguel. E isso, por si só, já o tornava perigoso.
Mais tarde, enquanto Miguel e Ruan discutiam o transporte de armamento vindo do sul, Kauan se afastou até o jardim, e Melina o seguiu. Fingiu que ia até a estufa de orquídeas, mas parou ao lado dele, entre as roseiras que cultivava por pura ironia: flores com espinhos. Eram as preferidas de Miguel.
— Você sempre se aproxima das esposas dos chefes assim? — ela perguntou, sem olhar diretamente.
— Só quando percebo que elas não são esposas. Nem objetos. Nem obedientes.
Ela o encarou. E ali havia fogo. Não do tipo escancarado, mas daqueles que consomem devagar.
— Cuidado. Isso pode te matar.
— Ou me libertar — ele respondeu.
Por um segundo, o mundo parou. As folhas dançaram com o vento, e os olhos de Melina registraram um detalhe em Kauan que até então não havia notado: ele tinha cicatrizes nas mãos. Não de trabalho. De luta.
Ao final do dia, Melina voltou ao quarto e trancou a porta. O espelho refletia sua imagem, mas algo já havia mudado.
Ela tirou a camisola devagar. Deixou o vestido cair no chão. Caminhou nua até a penteadeira e pegou um batom vermelho escuro. Passou nos lábios, encarando a mulher ali diante dela. Uma mulher que sabia o gosto da submissão, mas também conhecia o desejo crescente pela liberdade.
Kauan não era solução. Era tentação.
E mesmo assim, algo nela já havia feito a escolha.
A gaiola em que vivia era dourada. Decorada. Cheia de confortos.
Mas toda noite, o som das grades ecoava em sua mente. E agora, pela primeira vez em anos, ela começava a procurar pelas chaves.
(Era só o começo.)
A chuva caía pesada sobre a cidade quando Melina entrou no carro blindado, protegida por dois dos seus homens. Era dia de inspeção. O armazém novo estava em fase de consolidação, e ela fazia questão de estar presente em cada detalhe — algo que Miguel raramente permitia, mas que ela fazia mesmo assim. A diferença era que agora, não mais pedia permissão. Apenas ia.O motorista seguiu silencioso, e os seguranças também. Todos sabiam quem ela era. E mais importante: quem ela podia se tornar.No banco de trás, sozinha, Melina olhava a cidade molhada por trás dos vidros escuros. Pensava na conversa do dia anterior. Em Kauan. Em sua resposta. "Ou me libertar."Era ousado demais para um homem recém-chegado. Mas era isso que a intrigava nele. Ele não pedia espaço — ele tomava. E fazia isso com um olhar.No armazém, ela caminhou entre caixas, checando lacres, verificando registros. O cheiro de pó e madeira molhada tomava o ambiente, e seus saltos batiam contra o piso de concreto com autoridade.
A noite chegou mais densa do que o habitual. Não era só o céu, carregado de nuvens escuras, ou o vento cortante que soprava pelas ruas da cidade. Era algo mais. Algo que vinha de dentro. E Kauan sentia essa sombra se espalhar por cada centímetro de sua pele.Ele estava no alto de um prédio abandonado na zona norte, observando a movimentação do galpão rival por trás de binóculos militares. Seu corpo, imóvel como o concreto sob seus pés, era pura tensão. Os olhos, atentos. A mente, agitada.Mas o que o atormentava não era o galpão.Era Melina.Desde que cruzara o olhar com ela pela primeira vez, sabia que algo dentro dele tinha se partido. Não pela beleza, embora ela fosse devastadora. Mas pelo que ela escondia por trás daquele olhar duro. Pela maneira como falava com firmeza, mesmo quando estava prestes a desmoronar. Pela cicatriz invisível que carregava e que, de alguma forma, ecoava as dele.Ele tentou afastá-la da cabeça. Sabia que não podia se dar a esse luxo. Não naquele mundo. Nã
Melina sentiu algo quebrar por dentro como um espelho estilhaçado. A mulher que ergueu um império com sangue, suor e silêncio, não era de se abalar facilmente. Mas aquela sensação — aquela intuição visceral de que algo estava errado — cravou fundo. Como uma adaga enfiada por alguém que ela nunca imaginaria.Tudo começou com um envelope, deixado sobre a mesa da sala da cobertura. Sem remetente. Apenas o nome dela rabiscado em tinta preta. Dentro, poucas páginas. Relatórios. Horários. Locais. Uma nota fiscal de hotel. E uma foto tremida, tirada de longe. Miguel, entrando num saguão luxuoso. Sozinho. Mas dias depois, a mesma rotina, no mesmo hotel. Só que dessa vez... acompanhado. A imagem não mostrava o rosto da mulher. Apenas as pernas esguias e um salto vermelho que parecia ter sido escolhido para ser notado.Melina encarou aquela foto como se fosse uma sentença. Não havia beijo. Não havia nudez. Mas havia um cheiro de traição tão forte que o ar pareceu rarefeito. Ela sentiu as mãos s
As flores no vaso da sala estavam murchas, mas Melina nem percebeu. Ela havia deixado de notar coisas assim fazia tempo. Agora, só enxergava padrões. Erros. Riscos. Mentiras.A dor já não ardia como antes. Tinha se transformado em algo mais útil. Frio. Cirúrgico. Ela era boa nisso — transformar desgraça em arma. Mas ainda assim, algo dentro dela estava diferente. A mulher ferida começava a morrer. E em seu lugar, surgia algo pior.No espelho, ela observou os próprios olhos: escuros, insones, intensos. Como se carregassem um cemitério inteiro atrás deles.No celular, a mensagem de Kauan:“Tem alguém dentro do seu círculo. Alguém que fala demais.”Ela não respondeu. Mas aquilo acendeu uma nova linha de fogo dentro dela.Era mais do que Miguel. Era mais do que sexo. Alguém estava minando seu império por dentro. E ela precisava descobrir quem.Na sala de reuniões, os líderes de suas operações estavam reunidos. Jonas lia relatórios. Kauan permanecia calado, no fundo da sala, como uma sombr
O som dos saltos ecoava pelo hall de mármore branco. Ninguém ousava parar Melina. A cada passo firme, os olhares se voltavam, mas ela não retribuía. Sua atenção estava no celular, enquanto uma notificação atrás da outra confirmava a aprovação de um novo aporte. Milhões. Mais um negócio promissor bancado por ela. Mais uma mulher tirando o sonho do papel e colocando o próprio nome no mercado. E ninguém ali fazia ideia. No vigésimo andar do edifício mais discreto do bairro mais caro da cidade, estava sediada a fortaleza que Melina construiu sozinha: HEM. Uma holding de investimentos criada por e para mulheres. Seu império secreto. Uma rede de influência e negócios altamente rentável — e 100% limpa. Tudo começou com trinta mil guardados, dois contatos confiáveis e uma obsessão: nunca mais depender de Miguel. Na época, ela ainda dividia a cama com ele, mas já sentia o peso de um amor que não sustentava mais nada além da aparência. E foi ali, em silêncio, que a revolução começou. — Senho
O cigarro entre os dedos longos de Melina ardia com a mesma intensidade que o desejo que ela sentia por controle. Era um vício antigo — não o cigarro em si, mas o gesto. O controle. A pausa. O instante de prazer entre a tragada e a expiração. Um ritual silencioso que a acompanhava desde os tempos em que ainda era apenas uma garota marcada pela violência e pela falta.Agora, com a brasa iluminando o rosto e a cidade se derramando aos seus pés, Melina se permitia um raro momento de contemplação. Lá embaixo, no centro financeiro da cidade, o prédio onde ficava sua holding de investimentos femininos se destacava entre os outros — não por ostentação, mas por eficiência. Discreta. Precisa. Letal como ela.Era ali, longe dos olhos do cartel, que ela construía seu verdadeiro império.A HEM — Holding Empresarial Melina — era uma estrutura complexa, camuflada por camadas de sócias e empresas de fachada. Mas o que ela fazia era simples: investia em mulheres. Em potencial bruto. Em fúria contida.
O cheiro de alecrim e manteiga invadia os cômodos da casa. Miguel havia caprichado no jantar. Na cozinha impecável de mármore preto, panelas reluziam sob a luz quente dos pendentes. Ele terminava de grelhar os filés, atento ao ponto certo da carne — como Melina sempre gostou. O vinho respirava em uma taça larga, a música francesa tocava suave no ambiente. Tudo calculado para impressionar.Melina demorava a descer. Desde cedo, Miguel notou sua distância. Havia dias em que ela parecia ausente — com os olhos fixos em lugares que não existiam ali. E mesmo quando estavam no mesmo cômodo, ele sentia a ausência dela como uma ausência física, como se o corpo presente não fosse suficiente para preencher o vazio entre os dois.Ela desceu as escadas lentamente, vestida de preto, um vestido justo que marcava sua cintura fina, saltos agulha que ecoavam no mármore claro. A maquiagem era impecável, mas os olhos... havia algo diferente neles. Um olhar duro, como se ela já tivesse
Uma notificação no celular vibrou sobre a penteadeira. Era de Celina, sua analista financeira e confidente de longa data. A mulher, que também fazia parte da HEM e cuidava discretamente de auditorias internas, havia mandado algo importante.Celina: “O relatório de repasses de capital ao ateliê está estranho. Há indícios de que parte do valor foi desviado para contas ligadas a... ele.”Melina soltou a fumaça com lentidão, como se aquilo já não fosse mais surpresa. Tocou o visor com suavidade e respondeu:Melina: “Continue rastreando. Em breve, vamos fechar esse ciclo.”Ela sabia que o “ele” era Miguel.O vento cortava as ruas estreitas do centro financeiro com uma frieza que lembrava a da noite anterior. O dia amanhecia lento, encoberto por nuvens grossas, e Melina caminhava em passos firmes entre os arranha-céus espelhados, com um sobretudo preto e os cabelos presos em um coque impecável. Não havia