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💔​Capítulo 3 – Cicatriz

A chuva caĂ­a pesada sobre a cidade quando Melina entrou no carro blindado, protegida por dois dos seus homens. Era dia de inspeção. O armazĂ©m novo estava em fase de consolidação, e ela fazia questĂŁo de estar presente em cada detalhe — algo que Miguel raramente permitia, mas que ela fazia mesmo assim. A diferença era que agora, nĂŁo mais pedia permissĂŁo. Apenas ia.

O motorista seguiu silencioso, e os seguranças também. Todos sabiam quem ela era. E mais importante: quem ela podia se tornar.

No banco de trĂĄs, sozinha, Melina olhava a cidade molhada por trĂĄs dos vidros escuros. Pensava na conversa do dia anterior. Em Kauan. Em sua resposta. "Ou me libertar."

Era ousado demais para um homem recĂ©m-chegado. Mas era isso que a intrigava nele. Ele nĂŁo pedia espaço — ele tomava. E fazia isso com um olhar.

No armazém, ela caminhou entre caixas, checando lacres, verificando registros. O cheiro de pó e madeira molhada tomava o ambiente, e seus saltos batiam contra o piso de concreto com autoridade. Uma autoridade que ela tivera que construir do nada.

— Temos uma falha de contagem aqui — disse Jonas, o chefe da distribuição. — Quatro caixas a menos do que o previsto.

Melina nĂŁo respondeu de imediato. Se aproximou, conferiu os nĂșmeros, depois encarou Jonas.

— Ou estão escondendo... ou roubando.

— Talvez um erro no transporte.

— Talvez. Mas erros custam caro, Jonas. E eu já paguei demais na vida pra aceitar mais perdas.

Seu tom era calmo. Frio. Mas todos ali sentiram o peso da ameaça não dita.

Foi quando ele apareceu.

Kauan. Vestindo um casaco escuro, cabelo molhado pela chuva, e aquele mesmo olhar inquietante. Ele nĂŁo parecia desconfortĂĄvel. Pelo contrĂĄrio. Era como se aquele ambiente sombrio fosse seu verdadeiro lar.

— Faltando caixas? — ele perguntou casualmente, ao lado dela.

— Aparentemente.

— Quer que eu investigue?

Melina virou o rosto devagar, medindo as palavras.

— VocĂȘ Ă© bom em encontrar o que estĂĄ perdido?

— Eu sou bom em fazer com que nunca mais se percam.

Ela sorriu de lado. Aquela confiança... era perigosa. Mas profundamente sedutora.

— Então comece.

Kauan se afastou com um aceno curto. Melina ficou ali, observando-o de costas. E foi aĂ­ que viu de novo.

A cicatriz.

NĂŁo era uma sĂł. O punho dele carregava ao menos trĂȘs marcas visĂ­veis. NĂŁo eram de acidentes comuns. Eram marcas de guerra. Marcas de dor.

E Melina conhecia bem esse tipo de dor.

Mais tarde, no escritório improvisado nos fundos do armazém, ela o chamou.

— Descobriu algo?

— Sim. Um dos carregadores desviou parte da carga antes da contagem. Disse que achou que ninguĂ©m notaria, jĂĄ que Miguel nunca vem aqui.

— Ele está certo. Miguel nunca vem.

— Mas vocĂȘ vem.

SilĂȘncio. Ele se aproximou um pouco mais. Estavam a menos de um metro um do outro. O som da chuva ainda batia no telhado, abafando os sons do mundo. LĂĄ dentro, sĂł eles dois.

— Por que ainda está com ele? — Kauan perguntou.

A pergunta atravessou sua pele como uma lĂąmina fina.

— Porque sair requer mais coragem do que eu tinha. AtĂ© agora.

Ele assentiu. Depois, caminhou até ela e parou tão perto que ela podia sentir o calor do seu corpo. Não a tocou. Mas foi pior assim. O desejo cresceu entre eles como fumaça.

— Ele me mostrou quem eu sou. — ela disse, quase num sussurro. — Mas Ă© vocĂȘ quem me faz lembrar do que eu fui. E talvez... do que ainda posso ser.

— E o que vocĂȘ era?

Ela sorriu, com um amargor.

— Uma garota com cicatrizes. Algumas visíveis. Outras não.

— Então estamos quites. — ele murmurou, erguendo o punho e mostrando uma das marcas.

Ela estendeu a mĂŁo e, pela primeira vez, tocou nele. Os dedos deslizaram pela cicatriz com uma reverĂȘncia silenciosa.

— Isso aqui foi o quĂȘ?

— Prisão. Briga com dois guardas. Ganhei, mas deixaram lembranças.

— E essa?

— Corda. Quando tentaram me enforcar numa ĂĄrvore no sertĂŁo. Sobrevivi porque alguĂ©m me cortou a tempo.

Ela o olhou fundo. — E por que continua lutando?

— Porque ainda tem gente como vocĂȘ que vale a pena.

O silĂȘncio voltou, espesso. Melina nĂŁo sabia se era medo ou desejo o que sentia. Talvez os dois. Mas sabia que algo havia mudado de novo. E nĂŁo havia mais como voltar.

— Volte pro galpão. Diga a Jonas que eu mesma vou cuidar da punição.

Kauan assentiu e saiu, mas antes de cruzar a porta, virou-se:

— VocĂȘ tem mais cicatrizes do que imagina, Melina. Mas ao contrĂĄrio das minhas... as suas ninguĂ©m vĂȘ. E por isso sĂŁo mais perigosas.

Ela ficou ali, sozinha. O som da chuva, as paredes Ășmidas, e a memĂłria de um toque breve. Como uma lĂąmina em pele viva.

E pensou: talvez amar fosse isso.

Uma cicatriz a mais.

Ao sair do escritório, Melina caminhou até a årea externa do armazém, onde a noite jå engolia a cidade. A chuva havia cessado, mas o cheiro da terra molhada ainda era forte. Jonas a esperava, nervoso, ao lado do carregador culpado. Ela não hesitou: deu ordens secas. O homem seria retirado da operação e entregue ao comando da segurança interna. Nenhuma palavra a mais foi dita.

Ela voltou ao carro em silĂȘncio. O motorista ligou o motor, e a cidade começou a passar diante de seus olhos mais uma vez. Mas agora, cada reflexo nos vidros molhados parecia mais intenso. Mais real.

Melina passou os dedos pelo prĂłprio pulso, onde uma antiga cicatriz em forma de meia-lua repousava. Um lembrete de tempos em que sobreviver era um milagre diĂĄrio.

Kauan havia tocado algo que ninguém mais via.

Ela olhou pela janela. Pela primeira vez em muito tempo, nĂŁo se sentiu presa.

Talvez, pensou... talvez estivesse começando a se libertar

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