Um ano antes...
— Pai? — franzi a testa, agoniada, ao ver meu pai caído no sofá, bêbado novamente. Ultimamente, tem sido mais frequente vê-lo assim, e isso me cansa tanto físicamente quanto psicologicamente. Eu só queria viver um dia tranquilo, apenas um, mas parece que isso é impossível. Eu só tenho ele... e minha amiga Marcela. Na verdade, eu só tenho Marcela, porque meu pai se perdeu nos jogos e nas bebidas. Por mais que eu tente, não consigo salvá-lo. — Ele está fedendo. — Marcela sussurra atrás de mim enquanto nos aproximamos dele. Coloco a mão em sua testa para ver se não está com febre, mas, honestamente, eu não sei o que fazer. — Ele parece morto. Lanço um olhar de reprovação para minha querida amiga. — Não diga besteira. — Suspiro, empurrando-a suavemente em direção à cozinha. O apartamento é pequeno, não tenho luxo, mas ao menos é confortável. A cozinha e a sala são conjugadas, há dois quartos e um banheiro simples. Para mim, é perfeito. Abro a geladeira e pego uma garrafa de água, sirvo-me e, enquanto bebo, volto a olhar para meu pai jogado no sofá. — Até quando ele vai continuar vivendo assim? — Amiga... — Marcela se senta à mesa. — Ele já fez a escolha dele, Desirée. Ele não vai mudar. Deixe seu pai e comece a focar em você. Ela tem razão. Mas ele é minha única família. Quem, em plena consciência, abandonaria sua única família? — Eu estou tentando. — Sento-me à mesa e encaro o nada, perdida em pensamentos. — Você é tão linda... Por que não tenta uma vaga em uma agência de modelos? — Marcela insiste, com aquele tom provocador. — Já falei que não quero ser o centro das atenções. — respondo, com um toque de irritação na voz. — Vou seguir o que eu gosto, contabilidade. — Eca, que desperdício de beleza. — Ela revira os olhos, claramente frustrada. — Você devia usar o que tem a seu favor. Suspiro e me viro para ela, cansada dessa conversa. — Fica nessa fé cega que eu fico com meus olhos abertos. — retruco firme, deixando claro que estou decidida. — Eu odeio os seus bordões. — Resmunga, revirando os olhos. — Amiga, eu não vou me matar para virar modelo só porque você quer. — solto uma risada. — Seria como tentar estourar pipoca numa panela fria. — Tá bom, tá bom, mudando de assunto. — Marcela se aproxima, puxando a cadeira para perto de mim. — E o filho gostoso do seu chefe? Agora sou eu quem revira os olhos. — Aquele babaca? Está na cara que ele só quer um lugar para enfiar o pau. Marcela solta uma gargalhada, mas mantenho meu tom sério. — Saulo é insuportável. Bonito, não vou negar... bonito demais, do tipo que faz qualquer uma parar e olhar. Mas quando abre a boca... só sai besteira. Ela sorri, como quem já sabia a resposta, enquanto continuo. — Ele não tem uma conversa decente, é vazio, sabe? Quero distância. — Eu sei, você gosta dos certinhos. — Marcela provoca. — Não é que eu goste dos certinhos, é que certos tipos de atitudes eu não quero para o meu futuro. — Me levanto e guardo a garrafa. — Imagina eu no futuro casada com um homem desses. — Amiga, quem falou em casar? — Eu não quero algo passageiro. — Lavo minhas mãos e me viro, olhando para o meu pai. — Já vivi sozinha por muito tempo, quero ter o que eu nunca tive. — Amor é uma merda, Desirée. Olha o que ele fez com o seu pai. Ela tinha razão. Meu pai amou tanto a minha mãe, e esse amor o destruiu. Mas no fundo, sei que ele só amou a pessoa errada. Eu a odeio por isso. — Meu pai só fez a escolha errada. — A gente nunca sabe quando está fazendo a escolha certa. Verdade, a gente nunca sabe. O futuro é como uma caixa misteriosa. Me sento ao lado dela e por um momento, ficamos em silêncio, cada uma presa em seus próprios pensamentos. A verdade é que eu também não sei se estou no caminho certo. A vida parece uma sequência de escolhas às cegas, e a cada decisão, fica mais difícil saber o que é certo ou errado. — E você? — Pergunto, quebrando o silêncio. — O que espera para o seu futuro? Marcela dá de ombros, com aquele sorriso de quem não se leva muito a sério. — Sei lá. Acho que espero que alguém rico me descubra e me leve para uma vida de luxo e glamour. — Ela ri, mas o olhar revela que, no fundo, também carrega suas inseguranças. — Você e essa sua fantasia de filme... — Balanço a cabeça, rindo. — Não é fantasia, é estratégia! — Ela rebate, piscando. — Minha melhor amiga não quer ser uma modelo famosa, terei que me virar. Nosso riso preenche o pequeno apartamento por alguns instantes, e por mais que a vida seja incerta, naquele momento, a presença de Marcela me dá a sensação de que não estou tão sozinha. — Eu só espero que as coisas mudem. — Digo, voltando o olhar para o meu pai, ainda adormecido no sofá. — Eu não aguento mais viver nessa repetição. Marcela me olha, seu rosto sério pela primeira vez. — As coisas vão mudar, Desirée. Mas você precisa decidir o que quer de verdade. — Eu não sei, amiga, eu realmente não sei. — Suspiro, sentindo o peso das minhas próprias palavras. Marcela me observa por alguns segundos, como se tentasse decifrar algo que eu mesma não consigo entender. — Tudo bem não saber. — Ela diz suavemente. — Mas uma hora, você vai ter que decidir o que quer pra sua vida. Ninguém pode fazer isso por você. Fico em silêncio, absorvendo suas palavras. Talvez eu esteja esperando que algo mude por si só, que um caminho claro apareça de repente diante de mim. Mas a verdade é que o tempo está passando, e se eu não fizer nada, as coisas vão continuar exatamente como estão. — E se eu fizer a escolha errada? — Minha voz sai quase como um sussurro, mal ouso admitir esse medo em voz alta. Marcela dá um meio sorriso, aquele de quem já conhece bem essa dúvida. — A gente sempre vai ter medo, Desirée. Mas errar faz parte. O importante é não ficar parada, entende? Vai com medo mesmo. Eu queria ter essa coragem que ela parece ter, mas a verdade é que estou exausta. Tantas escolhas erradas ao meu redor, e a última coisa que quero é seguir o mesmo caminho. — Você vai descobrir. — Ela diz, levantando-se. — E quando descobrir, vai ver que a vida pode ser muito mais do que isso aqui. Só não desiste, tá? Assinto, deixando uma lágrima escorrer silenciosamente pelo meu rosto. Sempre fui forte e determinada, sempre fui aquela que mantinha tudo no lugar, mas agora... agora estou cansada. Cansada de tentar consertar tudo, de carregar o peso das escolhas erradas do meu pai e da minha própria vida que parece se arrastar num ciclo sem fim. Não é fraqueza, eu sei disso. Todo mundo tem um limite, e acho que finalmente cheguei no meu. Marcela me abraça, e permanecemos assim, envoltas em um silêncio reconfortante. Aos poucos, sinto meu coração se acalmar, a pressão no peito aliviando. É incrível como a presença dela, mesmo sem palavras, traz um pouco de paz ao caos que estou enfrentando. Depois de um tempo, solto um suspiro profundo, respirando lentamente para recuperar a força que preciso para seguir em frente. — Obrigada, amiga. — minha voz ainda soa embargada. — Eu realmente precisava disso. — Sempre que precisar, estarei aqui. — ela responde, me soltando um pouco e me olhando nos olhos. — Não se esqueça de que você não está sozinha nessa. Sorrio para ela, sentindo uma onda de gratidão. Volto a olhar para meu pai, sabendo que, mesmo em meio à dor e confusão, preciso encontrar um caminho que me leve para longe desse ciclo vicioso.O restaurante do senhor Aroldo está com um movimento bom hoje, o que, de certa forma, me alegra, porque isso pode me render uma grana extra.Depois de muito conversar com minha amiga, decidi internar meu pai em uma clínica de reabilitação e entrar na faculdade. A bolsa já ganhei; agora é só seguir com os meus sonhos. Mas, para isso, terei que trabalhar dobrado.— Desirée, mesa seis. — Respiro fundo, sabendo o que isso significa.Faz cerca de duas semanas que o mesmo rapaz vem aqui todos os dias. Ele se senta na mesma mesa e, por mais que as outras meninas tentem atendê-lo, ele só aceita ser atendido por mim. O pior é que, quando estou de folga, ele não vem. Isso, de certa forma, me deixou com o pé atrás. Aprendi a não confiar em ninguém, mas, dentro do estabelecimento, tenho que manter as aparências.Pego o cardápio e uma caneta, e sigo para sua mesa. Encaro seus olhos verdes, em um tom quase como o meu; ele parece gentil e amigável, mas o seguro morreu de velho. Não confio.— Boa tar
— Você está bem? — Marcela pergunta, levanto a cabeça e a vejo fechando a porta com as mãos cheias de sacolas. Hoje faz uma semana que enterrei meu pai. Eu não consigo entrar no quarto dele, não consigo dormir à noite, simplesmente não consigo fazer mais nada. O vazio parece me engolir a cada dia que passa. E, para piorar a situação, minha genitora ligou dizendo que eu tenho que vender o apartamento e ir morar com ela. Ela ainda teve a audácia de afirmar que metade da venda é dela, já que na época em que esse apartamento foi comprado, ela estava com meu pai. Eu a odeio, e não é pouco. — Estou bem. — minto, forçando um sorriso. — Pergunta estúpida. — Marcela diz, colocando as sacolas em cima do balcão. — Resposta errada. Decidiu o que vai fazer em relação à sua mãe? — Ela não é minha mãe. Marcela suspira, como se tentasse encontrar uma saída para a situação. — Desirée, você precisa dar um jeito nisso. — Eu vou voltar a trabalhar hoje, amanhã vou me matricular na faculdade e, ass
— Mande o currículo agora mesmo.Marcela está totalmente eufórica. Faz três dias que estou pensando sobre a proposta de Otávio em enviar um currículo para o Gran Hotel, mas ainda não tomei minha decisão.Consegui entrar na faculdade, meu salário já está ajeitado para alugar um novo lugar e o apartamento colocarei à venda amanhã.— Eu entrei na faculdade agora, eles não vão me ligar.— Para de ser teimosa e ao menos tenta.— Tudo bem.Pego meu celular e entro no Google. Primeiro vou pesquisar sobre esse hotel.Imediatamente uma enxurrada de informações aparece e, para o meu desespero, a imagem de Otávio dizendo que ele é o vice-presidente aparece. Abro a boca incrédula; como eu não percebi isso antes?— Terra chamado Desirée.— Você queria saber quem é Otávio.— Queria não, amiga, eu ainda quero.— Aqui. — Viro o celular para ela, e a reação dela é a mesma.— Ele é o vice-presidente Otávio Gambino. Não. — Ela balança a cabeça freneticamente.Me levanto, largando o celular. Agora que eu
Eu tive que passar por três entrevistas, o que, de certa forma, me deixou extremamente agoniada. A primeira envolveu perguntas básicas; na segunda, fui submetida a um teste psicológico; e, na terceira, tive que fazer algumas provas. Agora, finalmente, estou na última etapa: a sala do CEO.Confesso que estar de frente com Alexander Gambino é um misto de nervosismo e admiração. Pesquisei sobre a vida e a empresa dele e descobri que ele não é apenas o CEO, mas uma figura lendária na empresa, conhecida por sua frieza estratégica e presença intensa. Ao me encarar, seus olhos parecem avaliar cada detalhe, como se ele pudesse ler o que estou pensando antes mesmo de eu abrir a boca.Eu tento manter a compostura enquanto ele revisa o meu currículo. O silêncio na sala é quase esmagador, e eu sei que este momento é decisivo. Toda a preparação, todas as etapas, e tudo se resume ao que ele verá em mim agora.— Desirée González. — Ele levanta a cabeça depois de anotar algumas coisas no meu currícul
Dias atuais...— Vai trabalhar até mais tarde outra vez? — Tiro minha atenção dos papéis que analisava para encarar Alexander. Ele fecha a porta e caminha sem pressa até a mesa de café, servindo-se de uma xícara antes de vir na minha direção.— As coisas finalmente começaram a se alinhar — respondo, tentando manter o tom neutro. — Quero aproveitar esse momento de calmaria para revisar as papeladas da investigação de Milena. Não posso deixar passar nada despercebido.Alexander se senta na poltrona à minha frente e dá um gole no café, os olhos fixos em mim, como se tentasse medir o peso que isso tudo estava me causando. — Queria ter a mesma esperança que você, mas nós dois sabemos que a Yakuza dificilmente deixaria alguém vivo após tanto tempo.Engulo seco, desviando o olhar por um instante. Eu sei disso, e torço contra esse pensamento todos os dias. Todos dizem que a esperança é a última que morre… a minha irá morrer comigo, se for preciso.— Não sei. — Me recosto na cadeira, estudando
Abro os olhos encarando o teto, com a mente ainda presa naquele sonho horrível. Odeio esses sonhos. Dou um suspiro pesado e me sento na cama, esperando que, quem sabe, meu cérebro faça o download da minha alma. Nada. Sinto a frustração se instalar, como sempre.Hoje completo 19 anos. Consigo reconhecer que cheguei até aqui bem melhor do que imaginava. Tenho um emprego decente, estudo em uma ótima faculdade e moro em um apartamento só meu, perto do trabalho. Nem precisei mexer no dinheiro da venda do apartamento do meu pai. Metade, claro, já que tive que dividir com minha “genitora”.Olho ao redor, meio zonza, tentando reunir coragem para sair da cama e encarar o dia. O quarto ainda está na penumbra, a luz da manhã entra devagar pela janela entreaberta, trazendo uma brisa fria que faz o quarto parecer mais aconchegante. Lá fora, o som do trânsito começa a subir, quase reconfortante. A vida não para, e eu também não.Levanto devagar, o chão frio sob meus pés me tira o sono de vez. Vou a
Organizar a agenda do senhor Alexander não é uma tarefa fácil, mas organizar a agenda de Otávio é ainda pior. Às vezes, acho que vou ter um mini infarto só de olhar para esses horários. Ele sempre tem algo inesperado ou algum compromisso que surge do nada, e eu, como uma de suas assistentes, sou a encarregada de colocar tudo em ordem. Por exemplo, o horário de almoço dele hoje foi de meia hora. Apenas trinta minutos. Isso não dá nem tempo de mastigar! Além disso, ele tem três reuniões com os gerentes das filiais, uma com o senhor Alexander às seis, e um jantar de negócios às sete. E, para completar, de manhã ele ligou pedindo que a Melissa enviasse alguns documentos por e-mail, já que estava "ocupado com outros assuntos". Assuntos esses que só Deus sabe o que são. Meu celular vibra, tirando-me dos pensamentos caóticos da manhã. Quando olho, é uma mensagem de Marcela. "Feliz aniversário, minha ruiva! Se prepare, porque hoje vai ter comemoração SIM, e sem desculpas!" Logo, dois ing
Fiquei observando o presente: uma sandália de salto fino em um tom vibrante de rosa. As tiras trançadas, decoradas com pequenos spikes, traziam um ar moderno e ousado, contornando meu pé de forma elegante. A amarração no tornozelo, com um laço delicado, completava o visual com um toque feminino e sofisticado.Eu amei cada detalhe. Mas me pego pensando... Como ele poderia saber? A paixão que tenho por sandálias é algo que apenas Marcela conhece. Não há nenhuma chance de Otávio estar ciente desse meu pequeno vício por saltos altos.Decido que é hora de expressar minha gratidão. Pego o celular e lhe envio uma mensagem:"Obrigada, seu presente foi perfeito."Acrescento um emoji de joinha, tentando transmitir um pouco da empolgação que sinto.Nunca mandei mensagem para meu segundo chefe fora da empresa; esta é a primeira vez. Um misto de nervosismo e expectativa invade meu estômago. Espero por alguns segundos, mas a mensagem não é respondida. Coloco o celular no canto e volto a observar a