Capítulo um

Por Hannah Luiza 

Acordo cedo, faço minha higiene e me preparo para mais um dia de trabalho. Preparo um café e arrumo minha mochila. Logo, minha amiga me envia uma mensagem.

“Halú, cuidado, amiga. Os meninos estão no alvoroço.”

“Valeu, Macla, vou ficar na ativa.”

Assim que travo o celular, os tiros começam. Nem sempre o morro é desse jeito, mas de uns tempos pra cá tem acontecido com frequência, e tudo culpa da facção rival, que quer tomar o controle daqui.

Moro no Rio de Janeiro, especificamente na rua Gregory Copper, vulgo Morro do Chipre. Nome chique para uma favela.

— Halú, se protege e não sobe pra escola, não! — meu irmão grita da minha janela.

— Valeu! Vou esperar normalizar e subir. Cuidado aí.

— Pode deixar, mana. — Ele solta uma lufada de ar, como sempre, e vai embora.

Dia de tiroteio não me traz boas recordações. Meu irmão é o subchefe do morro. Na verdade, eu também sou uma subchefe. Já explico pra você entender melhor.

Meu irmão, Carlos Luiz, é conhecido como Luizinho; nosso amigo, Matheus, é conhecido como MT; e eu, Hannah Luiza, conhecida como Halú. Somos a nova leva de comandantes. Antes de nós, meu pai, Luizão, e meu tio, Mig, eram os que comandavam tudo aqui.

Atualmente, tenho 23 anos. Sou órfã desde os 6, quando presenciei a morte dos meus pais numa tentativa de invasão da facção rival. Como Carlinhos e eu não tínhamos mais família viva, o tio Mig e a tia Marilú, pais do Matheus, nos criaram. Mesmo sendo uma das "donas do morro", nunca quis me envolver diretamente. 

Fiz faculdade de assistência social, dou aulas na escola do morro durante o dia e, à noite, faço faculdade de Direito. Ajudo minha comunidade e tenho orgulho de ter nascido aqui. Sou conhecida como a “princesinha do tráfico”, ou “Princesa Herdeira”; o porquê desses apelidos eu não faço ideia.

Assim que vejo que a situação acalmou, resolvo ir para a escola, mesmo sabendo que muitos alunos e funcionários vão faltar. Subo o morro e paro ao ouvir o som de uma moto. Pelo ronco do motor, já sei de quem se trata.

— Falaê, Halú! Tudo na paz? — reviro os olhos ao ouvir a voz de MT.

— Estou ótima, Matheus, agora me deixa ir e vai cuidar dos seus afazeres. — digo, e ele sorri. Esse cara tem sérios problemas.

— Colé', Haluzinha! Faz mó' cota que nóis' não troca uma ideia. Não tem novidade pra contar, não? — Olho para ele e reviro os olhos.

— Quer conversar? Chama as tuas negas. — digo, voltando a caminhar.

— Sobe aí que eu te levo. — Ele b**e na parte de trás da sua moto, e por um momento eu penso em subir, mas logo desisto.

— Muito obrigada, mas estou muito bem assim. Prefiro andar por uma eternidade a subir na sua moto.

— Porra, Halú! Nós cresceu' juntos, tu vivia na garupa da minha moto. — Matheus tenta me convencer a subir mais uma vez.

— Agora prefiro morrer caminhando do que pegar carona com você.

— Já vi que nunca vai me perdoar, né? — Ele espera minha resposta, e eu o olho de má vontade.

— Quem perdoa é Deus; eu, não tenho nada a perdoar. — Ele acelera e vai embora.

Sei que alguém está me vigiando de longe. Ser uma das herdeiras do morro é assim mesmo.

Minha história com Matheus é complicada. Crescemos juntos e nos apaixonamos; começamos a namorar, mas não era uma paixonite qualquer. Era um sentimento real. Aos quinze anos, perdi a virgindade com ele. Nosso relacionamento era sólido — pelo menos, era o que eu acreditava. Aos dezoito anos, descobri que ele engravidou a Malu, irmã gêmea da minha amiga Macla, que também era minha amiga. Ambos me pediram perdão e disseram que estavam bêbados no baile... enfim, a ladainha de sempre. Me afastei dos dois e segui com minha vida.

Descobrimos que a gravidez dela era de risco, então deixei meu orgulho de lado e ajudei Malu. Os nove meses passaram, e Carlinha nasceu; porém, a mãe dela não resistiu. Antes de ir para a sala de parto, Malu me fez prometer que, se algo acontecesse, eu ajudaria Matheus a cuidar de sua filha. Ao ver aquele pacotinho rosa e barulhento, Macla e eu juramos que a protegeríamos com nossas vidas; afinal, ela era o ser mais inocente no meio dessa história toda.

Matheus assumiu a criança e disse que cuidaria dela, mas sempre estava me procurando para ajudá-lo. Me afeiçoei tanto a ela que estou sempre indo à casa do Matheus ver como minha princesinha está. Carlinha sabe que não sou sua mãe, mas me chama assim, e temos um amor incondicional de mãe e filha. Somos tão unidas que às vezes Macla sente ciúmes. Já minha relação com Matheus mudou; antes éramos inseparáveis, hoje quero distância. Minha mãe e minha tia sempre diziam que Matheus e eu somos almas gêmeas, mas depois de tudo o que aconteceu, passei a desacreditar.

Assim que chego à escola, recebo a notícia de que a secretaria foi roubada, e dois computadores foram levados. Era só o que faltava! O governo mal se importa conosco, e agora isso. Rita, a diretora, insiste que precisamos chamar a polícia.

— Rita, você enlouqueceu? Não podemos chamar a polícia aqui no morro.

— Mas esse é o procedimento padrão! — Ela me diz.

— Você não mora aqui. Acho muito corajoso de sua parte aceitar trabalhar aqui no morro, mas esqueça esse procedimento. A lei aqui é outra.

— Então, o que faremos? — Ela pergunta, confusa.

— Deixa que eu resolvo. — Ela assente, e rapidamente pego o celular do bolso.

— Carlinhos, está podendo falar? — Ele atende rapidamente.

— Falaê, mana! Qual foi do bagulho? — Reviro os olhos para sua forma de falar.

— Aconteceu uma coisa chata aqui na escola. Levaram dois computadores. — digo, e ouço seu suspiro pesado.

— Ih, qual foi? Marca dez que já colo aí. — Ele desliga, e eu sei que logo estará aqui.

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