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2. Incertezas

Aquele tinha sido o sonho mais estranho que tivera, parecia real, palpável, fechava os olhos na cama e podia ainda se lembrar de cada detalhe daquele bosque maravilhoso, o perfume das flores, a calma dos animaizinhos, o frescor da brisa, a paz transmitida, de repente sentou-se na cama, de súbito lembrou-se:

“Bosque da Paz” será que esse lugar existia em algum canto? Tinha certeza, era esse o nome que o garoto dissera, e por que aquele garoto?

Já o vira algumas vezes na escola, estava sempre olhando pra ela, até que era bonitinho, gostava dela, mas namorar era algo tão complicado!

Ela mesma via quantas lágrimas sua irmã derramava por namorados, e eles eram todos ingratos, sem afeto, egoístas, enquanto ela sofria sozinha cada vez que algum deles ia embora.

Tinha certeza, não queria isso pra si, por mais bonitinho que aquele garoto fosse.       Havia decidido, seriam apenas amigos, se ele gostasse dela de verdade deveria lhe provar isso de várias maneiras, e a primeira delas era através do tempo, nenhum rapaz que ela tinha ouvido falar passava mais do que algumas semanas tentando conquistar uma garota, quem sabe então assim não se livrasse dele?

Era hora de levantar, afinal a nova escola ficava longe e ainda teria de tomar seu café, porém sentada à mesa ainda podia se lembrar de cada detalhe do sonho.

— Que foi Eduarda? Você parece preocupada.

— Ah, mãe, não sabe que ela vive no mundo da lua?

— Jessica, não fale assim de sua irmã.

— Deixa ela mãe, eu não ligo, por mim ela fala o que quiser, o que vem de baixo não me atinge.

— A ‘tá sua fedelha, senta num formigueiro então.

— Formigueiro?

— Como? — Jessica era a irmã mais velha de Eduarda, estava numa escola técnica em outro bairro e como saíam no mesmo horário tomavam o café da manhã juntas todos os dias, e agora admirou-se da cara de espanto da irmã, ela parecia se lembrar de algo importante.

— Formigas.

— ‘Tá doida, é?

— Jéssica, chega! Que foi Duda?

Sem dar chance de resposta a ninguém abandonou a mesa do café e saiu correndo para o quintal pela porta dos fundos.

Chegou até a cerca dos fundos, exatamente no ponto onde deveria haver uma abertura, mas não havia nada, olhou para o chão e nada de formigas, procurou-as desesperada pelo quintal, apenas umas poucas aqui e ali, mas nenhuma que indicasse alguma trilha, voltou triste para cozinha.

Como fora tola, realmente era apenas uma sonho, aquele bosque maravilhoso não existia.

Mais tarde, na escola, sentou-se em seu lugar de sempre, terceira carteira junto à parede, completamente aérea, nem viu quando tocou o sinal indicando o intervalo e seu coração quase saiu pela boca quando o viu novamente, era o mesmo garoto do sonho, sem aquela beleza celestial, porém era o mesmo, o mesmo sorriso tímido, o mesmo olhar profundo, a mesma pureza em sua aura.

Tinha que falar com ele, tinha que dizer alguma coisa, será que ele tinha aquela mesma voz cativante do sonho?

Aproximou-se dele alguns metros ainda indecisa, ele a olhava sem piscar, parecia estar vendo uma assombração quando a poucos metros de distância dele surgiu em sua frente, Andréia e sua turma, justo agora que faria qualquer coisa pra ouvir sua voz, aparece quem ela menos queria.

— Onde a senhorita pensa que vai?

— A lugar nenhum, por quê?

— Então vem andar por aí com a gente — sem dar-lhe chance de dizer sim ou não, agarrou-a pelo braço e saiu puxando.

Tendo uma mão presa por Andréia e a outra por seja lá quem fosse ela ainda conseguiu olhar para trás, para o local exato onde Haniel estava sentado apenas para constatar que ele já não estava mais lá.

Arrastaram-na por alguns metros tagarelando sobre qualquer coisa, quando ela finalmente perdeu a paciência, arrancando seus braços com violência.

— Me solta, Andréia, eu NÃO QUERO andar por aí.

— Ei espera aí, por que toda essa raiva, a gente quer te apresentar alguém.

— É Duda, vem com a gente, vai.

— Não quero conhecer ninguém, e seja lá quem for esse alguém manda ele pro INFERNO!

Saiu de lá batendo os pés de raiva, praticamente correndo de volta onde tinha visto Haniel, mas ele realmente não estava mais lá e agora era praticamente impossível achá-lo, os corredores da escola repletos de alunos, e ela nem sabia qual era a sala dele.

Precisava falar com ele de qualquer maneira, tinha de ouvir ao menos o som de sua voz, precisava saber se ela realmente era tão cativante na realidade quanto no sonho.

É bem verdade que no sonho a própria aparência de ambos era diferente, então ela não esperava grande coisa, já que no mundo real ele era apenas um garoto pouco mais velho, mas mesmo assim sentia uma compulsão avassaladora impelindo-a a falar com Haniel, e ela mal podia se controlar.

Voltou pra sua sala arrastando os pés de desapontamento assim que ouviu o sinal indicando o fim do intervalo, amaldiçoou Andréia e seu grupinho por terem-na atrapalhado justo na hora em que quase conseguia falar com Haniel quando a bem poucos metros dela, ele passou por ela sorrindo.

O resto da aula não serviu pra nada, algo de estranho estava lhe acontecendo, não conseguia tirar esse garoto da cabeça, ele estava preenchendo seus pensamentos o tempo todo.

Ao final das aulas obviamente não conseguiu encontrá-lo na multidão de alunos que saía desesperada pelos portões da escola e voltou para casa desolada, ao chegar em casa correu para os fundos do quintal, mas novamente não havia formiga alguma, nenhuma sequer, parecia que todas tinham fugido dela.

Passou a tarde enfiada em seu quarto estudando e a noite após o jantar foi dormir mais cedo, deitou-se em sua cama olhando o teto, lembrando-se do vestido azul que usava, nunca tinha visto um vestido como aquele, era simplesmente lindo, com certeza se estivesse a venda em alguma loja seria caríssimo.

Agora de olhos fechados podia novamente contemplar o bosque, podia mirar seu próprio reflexo nas águas cristalinas do pequeno riacho, ouvir o canto dos pássaros, imaginou-se sentada ao pé de uma das frondosas árvores ouvindo o som da água correr, sentia a brisa no rosto, uma paz inigualável inundar-lhe a alma quando a poucos metros de distância, a voz de Haniel a chamava:

— Eduarda, que bom vê-la.

Abriu os olhos e estava sentada em uma pedra grande e redonda à beira do riacho com suas sandálias do lado e os pés dentro da água.

— Oi Hanny.

— Aprendeu como chegar aqui? — sua voz era incrivelmente melodiosa, seu rosto irradiava uma pureza e uma paz que nunca tinha presenciado.

— Ainda não, eu tentei seguir as formigas como você disse mas não as encontrei.

— Mas é diferente moça, não é simples assim vir pra cá.

— Diz pra mim quem foi que fez esse lugar, por que é que eu nunca consigo vir pra cá quando quero, e por que é que toda vez que estou aqui tanto eu quanto você estamos assim tão diferentes?

— Calma Eduarda, calma — sentou-se ao seu lado, a poucos centímetros de distância, de modo que o braço de Haniel tocava o seu, sua pele era macia, quente, incrivelmente sedosa, seu sorriso claro a encantava — uma pergunta de cada vez.

Sorriu para ela por uns segundos e então continuou:

— Primeiro, não preciso te dizer quem fez este lugar, na hora certa você descobrirá isso sozinha, segundo por que é que você nunca consegue vir pra cá quando quer? Ora por que pra tudo tem-se um propósito, e vir pra também tem um propósito, você ainda tem muito o que aprender e minha função principal é garantir que isso aconteça sem nenhuma interrupção.

— Isso quer dizer que você é uma espécie de... guardião? ou qualquer coisa assim?

— Depende do ponto de vista, acredito que no momento certo eu e você teremos plena certeza disso.

— E por que essa... beleza toda...  ou diferença, sei lá?

— Não posso te dizer isso agora e...

— Ai, você é cheio de mistério, não diz nada do que eu quero saber.

— Acalme-se, não se perturbe demais por coisas desnecessárias, mas é bom saber que você gosta daqui.

— Ora, é impossível não gostar daqui.

— Nem todo mundo pensa assim, alguns acham monótono demais.

— Quem acharia esse paraíso monótono?!

— Quem não sente prazer em estar aqui.

— E existe esse tipo de gente?

— Claro que existe, moça, existe todo tipo de gente. As pessoas são capazes de coisas que eu e você nem imaginamos.

— Eu sei, meu pai sempre fala isso.

— E ele tem razão, mas gosto muito de vir aqui, nas últimas vezes tenho vindo aqui só pra te ver.

— Como assim últimas vezes? Acho que essa é a segunda vez que viemos aqui.

— Talvez, mesmo que eu possa te ver sempre que eu quiser, sua beleza aqui é inalterada.

— Inalterada como assim?

— Na hora certa você saberá, até lá te verei em outro lugar.

— Eu até sei onde, na escola.

— É, lá também, mas estou falando de qualquer outro lugar.

— Aliás, por que fugiu de mim hoje de manhã?

— Eu não fugi, só achei que você não voltaria mais, sempre que você sai com suas amigas demora voltar.

— É verdade, eu até briguei com elas por causa disso, eu queria falar com você e elas me atrapalharam.

Por um instante nada mais disseram, apenas contemplavam-se um ao outro, olho no olho, um admirando a beleza do outro, como podia criatura tão bela habitar o mundo dos homens?

Será que nascer como um humano também fazia com que ele pensasse como um humano também? Sentisse as mesmas emoções e sensações de um humano? As mesmas frustrações e desesperos?

Não tinha mais como negar, era isso o que os homens chamavam de “estar apaixonado.”

Lembrou-se claramente da advertência que um dia lhe fora dada, fechava seus olhos tendo Eduarda à sua frente e ainda podia ouvir claramente a voz retumbante do Arcanjo:

 “Estarás sujeito as mesmas emoções e sensações que afligem o coração humano, tens no entanto a obrigação de não permitir que isso interfira em tua missão.”

Sabia muito bem o que isso queria dizer, a verdade cortou como navalha, dividindo sua alma em mil pedaços, levantou-se vagarosamente e ficou a poucos metros de distância, de costas pra ela.

— Que foi Hanny? Deixei você triste?

— Não, está tudo bem. — Respondeu ele ainda de costas.

— Não está não, você está triste comigo.

Mas que desatino de viver! Será que ter um coração humano importava também em ter a alma transparente?

— Está tudo bem, minha querida. — Disse ele virando-se para ela, que preocupada, postara-se bem às suas costas.

Não, não estava tudo bem, não estava tudo bem coisa nenhuma e ela sabia disso. Mas ele não poderia estar mentindo, não ali naquele paraíso. Era impossível imaginar Haniel mentindo. Pelo menos não ali naquele “pedaço de Céu.”

Haniel não mentia. Jamais faria isso em qualquer lugar. Mas não podia entender por que ele estava tão triste. Talvez era alguma coisa que ela não podia saber naquele momento. Afinal, pra tudo se tem um propósito, era o que ele lhe dissera.

— Pra tudo se tem um propósito, lembra? Foi você quem me ensinou.

— Sim é verdade — respondeu ele sorrindo, satisfeito por saber que ela guardava cada palavra que ele lhe dizia.

Saber disso produziu um alegria tão infinita que inundou lhe a própria alma, transbordava por seus olhos, por seu sorriso, abraçou-a satisfeito pela primeira vez, o corpo estreito dela praticamente escondeu-se em seus braços e ombros largos.

Permaneceram assim por um longo tempo, desejando ansiosamente que o tempo parasse.

Pensar nas palavras do Arcanjo rasgava seu coração de tristeza, pensar na ideia de que ela guardava-lhe cada palavra, cada ensinamento, cada conselho, aliviava a dor.

Julgara mal essa missão, achava que seria fácil ter um coração humano sendo ele tão diferente. Mas a realidade na verdade era outra.

Não trocaria o calor dos braços de Eduarda por nada em qualquer lugar que fosse. O cheiro de seus cabelos. A maciez de sua pele. De repente estava em sua cama. Agarrado ao travesseiro em plena manhã de sábado.

Arrastou-se da cama para o banheiro preguiçosamente, fechou a porta atrás de si e antes de tomar sua escova mirou-se no espelho e já não via mais nada.

Não tinha mais Eduarda, nem a maciez de sua pele ou o frescor de seus cabelos molhados. Não tinha mais seus ombros largos ou o sorriso encantador.

Era apenas ele mesmo. O garoto que perdera o pai a algum tempo e ainda tentava superar isso.

Mas algo repetia em sua mente. Sozinho na cozinha, enquanto a família ainda dormia, sentado à mesa da cozinha lembrava-se claramente de detalhes do sonho: palavras do Arcanjo, coração humano, missão.

O que podia significar tudo isso? Que raio de sonho era aquele? Era claro que era uma continuação do sonho anterior. Nunca experimentara isso antes! Um sonho continuando em outro! Que palavras todas eram aquelas?

Não conseguia tocar em seu café. Olhava para a xícara de leite sem vontade alguma de beber. Deveria estar num curso de idiomas em poucos minutos e no entanto esses sonhos perturbavam lhe mais do que qualquer coisa.

Não conseguiria comer nada com aquelas dúvidas todas na cabeça. Saiu de casa deixando o café da manhã intocado sobre a mesa, trancou o portão e correu para o dia ainda humano que tinha pela frente.

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