Parte 1 -
Bianca
Eu mal conseguia respirar. O silêncio da noite era tão denso que cada passo meu parecia um trovão dentro de minha cabeça.
Quando meus pés tocaram o chão do lado de fora da janela, o barulho abafado pela grama úmida ainda me pareceu alto demais. Por um instante, parei.
— Será que alguém ouviu? - pensei, com o coração martelando dentro do peito. O medo de sermos descobertas me queimava por dentro, mas eu não podia voltar atrás.
— Rápido, Bianca!
A voz de Luísa, que já estava mais à frente, me puxou de volta à realidade. Ela me agarrou pelo braço, e seus olhos brilhavam com a mesma mistura de medo e excitação que os meus.
Não era a primeira vez que fugíamos do convento juntas, mas essa noite era diferente. Nas outras vezes, tínhamos sido cuidadosas, nos limitando a passeios curtos e discretos pela cidade silenciosa. Desta vez, íamos mais longe — muito mais.
Todos esses anos enclausurada aqui dentro já eram demais. Não pedi por isso e nem fui consultada. Apenas acatei uma ordem.
Eu precisava sentir a liberdade, o mundo pulsando além dos muros sufocantes. Sabia que Luísa não era assim tão corajosa, mas algo nela parecia gostar da ideia de me ajudar a escapar.
Talvez fosse o desejo secreto de se libertar também, mesmo que apenas por algumas horas. Não sinto nela esse chamado especial que a maioria diz sentir.
O vento da madrugada cortava minha pele, gelado e constante. O tecido fino do meu vestido, que ainda era uma reminiscência das vestes do convento, colava-se à minha pele como uma segunda camada, me lembrando de que eu ainda não estava totalmente livre.
O véu, que mantinha como disfarce, balançava com o vento, e por um instante, senti que estava no limiar de dois mundos: o da submissão e o da tentação.
— Vamos, antes que a madre acorde - Luísa sussurrou, olhando nervosa para as janelas do convento.
Já tínhamos feito aquele caminho outras vezes, mas nunca antes arriscamos tanto. O coração dela também estava acelerado — eu podia sentir isso em cada passo apressado que ela dava ao meu lado, segurando minha mão.
O corredor de sombras entre o muro do convento e a estrada parecia interminável e cada vez que uma folha farfalhava ou um galho quebrava debaixo de nossos pés, eu sentia o pavor de sermos pegas, direto na minha espinha.
Estávamos cercadas por árvores antigas, que sussurravam com o vento, cúmplices ou ameaças? Eu não sabia dizer.
O convento era uma casa enorme, antiga, que já estava ali a serviço da população por mais de duzentos anos.
Mas eu não queria estar presa entre suas paredes e sei que Luísa também não queria, apesar dela ser uma noviça por escolha.
De repente, um ruído mais forte ecoou pela noite. Parei instantaneamente. Ouvi passos. Eles estavam vindo em nossa direção, cada vez mais perto. Luísa arregalou os olhos, sem fôlego.
— Corre! - ela sibilou, sem esperar mais.
O instinto tomou conta de mim e comecei a correr como se tivesse um fantasma atrás de nós. Nem olhei para trás.
O barulho dos passos se aproximava e isso aumentou meu batimento cardíaco.
Atrás de nós, eu podia jurar que uma das luzes do convento havia acendido. Alguém estava acordado. Alguém sabia que estávamos fugindo. E não queria ser pega. Isso ia dar muita confusão pra nós duas.
A respiração de Luísa estava pesada, nos forçando a avançar e algo nela me transmitia um tipo de confiança que eu não sabia que tinha.
Já havíamos saído antes — para ver as ruas, os cafés fechados na madrugada, as pontes antigas sobre os rios silenciosos de Sevilha.
Mas agora estávamos indo para um lugar onde não poderíamos ser apenas espectadoras.
Conseguimos chegar à estrada de terra que levava até a cidade. O pequeno Fiat de Luísa estava à nossa espera, meio escondido entre as árvores.
— Vá, vá logo! - ela gritou, enquanto abria a porta do passageiro.
Entramos no carro, ofegantes. O som do motor roncou pela primeira vez na noite, como um trovão que anunciava a nossa vitória, mas o início de algo muito maior também.
— Quem será que acordou? Será que nos seguiram? - perguntei, agora olhando para trás, esperando ver a figura da madre superiora ou uma das freiras furiosas correndo na nossa direção. Ainda bem que não vi.
— Ninguém nos viu... Assim eu espero - Luísa pisou no acelerador, os pneus derrapando levemente no chão de cascalho enquanto nos afastávamos rapidamente.
Dentro do carro, o medo ainda estava ali, mas começava a ser engolido pela excitação. A cidade estava à nossa frente, e pela primeira vez em muito tempo, eu senti o gosto da liberdade de verdade.
O véu, que até então eu segurava firme, foi parar no banco de trás. Comecei a puxar o vestido cinza sem graça, para ajeitar minha roupa de baixo.
Um dos vestidos que Luísa tinha trazido com ela para o convento e que estava guardado há muito tempo, esperando que decidisse se iria embora ou faria os votos.
— Para onde nós vamos? - perguntei, tentando parecer mais confiante do que estava.
— Il Rifugio. É um dos lugares mais badalados da cidade - Luísa respondeu, com um sorriso travesso nos lábios. Eu não conseguia acreditar. Não era mais um passeio inocente pelos arredores do convento. Íamos a uma boate.
Quando chegamos à porta do "Il Rifugio", as luzes de neon piscavam como um convite proibido e o som da música alta já ecoava pela calçada.
O contraste com a reclusão que a gente conhecia era chocante. Por um segundo, hesitei, mas Luísa pegou minha mão e me puxou para a fila, mostrando segurança.
— Vamos, Bianca. Hoje à noite, somos livres - ela piscou pra mim.
De repente, o receio de estar errada se transformou em uma adrenalina indescritível. Estávamos prestes a entrar num mundo que eu jamais imaginara.
Tudo o que eu queria era esquecer que eu sou prometida a um homem que nunca vi. Sei tão pouco sobre ele que cabe em uma única folha de papel.
Nem mesmo seu nome de família eu sei. Tudo o que ouvi foi que se chama Adriano. Seu pai é um grande mafioso que vivia em disputa com meu pai. Ambos são mafiosos e vivem de forma nada usual.
Autora Zara
* Escrevo com carinho.
Parte 2 -Bianca Tudo era tão diferente do convento que, por um momento, senti como se tivesse sido transportada para outro universo. As luzes vibrantes piscavam ritmicamente, refletindo nas paredes espelhadas da boate. O som era tão alto que quase abafava o tumulto de vozes e risadas ao nosso redor. Senti o cheiro forte de perfume misturado com álcool e suor, algo tão distante do aroma suave de incenso e velas que preenchiam os corredores do convento. Mas até que eu gostei.Estávamos dentro. Na boate. Eu e Luísa havíamos conseguido fugir mais uma vez e estávamos no meio de um mar de gente, num lugar onde nunca imaginei pisar. No carro, antes de chegar aqui, havíamos nos trocado às pressas. Luísa, com sua ousadia habitual, me emprestara um de seus antigos vestidos, algo que ela mantinha escondido como um relicário de sua antiga vida fora do convento. O vestido que agora grudava ao meu corpo era um tecido preto, fino e ligeiramente brilhoso, com alças delicadas que caíam sobre meu
Parte 3 -BiancaAgora, ele estava de pé, parado a poucos passos de mim, com uma expressão que eu não sabia decifrar. De perto, ele era ainda mais impressionante. Os cabelos negros bem penteados, o rosto marcado com linhas de expressão, mas com um charme perigoso. Seu terno impecável só aumentava o contraste com o ambiente ao redor.— Eu... S-sim, estou - gaguejei, tentando parecer calma, mas sentindo minhas pernas tremerem. — Só... Só um pouco perdida.— Perdida? - ele inclinou a cabeça, os lábios curvando-se levemente. — Esse não é o tipo de lugar onde uma pessoa deveria estar perdida.Senti o calor subir pelo meu rosto, incapaz de evitar a vergonha que me consumia.— É a minha primeira vez aqui - confessei, sem conseguir manter o olhar.— Isso explica muita coisa - ele parecia divertir-se, mas de uma maneira contida, quase perigosa.— Você vem aqui sempre? - eu tentei puxar conversa, mas sabia que estava tropeçando nas palavras.— Não, mas hoje... Algo me disse que seria uma noite
Parte 4 -Bianca— Você não parece bem - ele insistiu, suavemente, seus dedos desenhando círculos lentos nas minhas costas, uma carícia quase imperceptível. — Mas não vou insistir. Não agora.Fiquei em silêncio, incapaz de formar uma resposta coerente. Era como se eu estivesse perdendo o controle sobre meus pensamentos, sobre mim mesma. A música continuava, lenta e suave, embalando nossos corpos em uma dança íntima que eu sabia que não deveria estar acontecendo.— Biatrice - ele disse depois de alguns minutos, o tom da sua voz mais suave, quase um sussurro. — Você mora por aqui?Engoli em seco, tentando me concentrar. — Não... Não exatamente.Desviei o olhar, lutando para manter uma fachada tranquila. Não podia contar nada a ele, não podia deixar escapar quem eu era ou de onde vinha. Seria um desastre.— Interessante - ele olhou para mim de maneira intensa, como se estivesse tentando desvendar cada segredo que eu escondia. — Então o que você faz? Quem é você, Biatrice?— Eu...As pa
Parte 5 -TrajanoEla era diferente. Não só pela maneira como parecia fora de lugar, mas pela forma como seu corpo reagia ao meu. Havia uma tensão ali, uma vibração que eu podia sentir, quase como se ela estivesse resistindo a algo... Ou a alguém. Não era só a música que movia nossos corpos, havia uma conexão. Um reconhecimento silencioso, mas real.Senti o corpo dela tenso contra o meu, as mãos dela pousando hesitantes nos meus ombros, mas ainda assim, ela não se afastou. Pelo contrário, mesmo com a hesitação, havia uma entrega que ela mesma talvez não percebesse.— Você parece tensa - eu disse, e podia sentir o leve estremecer do corpo dela em resposta. — Eu... Estou bem - ela murmurou, mas sabia que era mentira. O que estava acontecendo aqui? Eu acabara de a conhecer, e mesmo assim, sentia como se conhecesse aquela mulher há mais tempo. Como se já houvesse algo entre nós, algo que ainda não tinha nome, mas que estava ali, latente. E eu gostava disso. Eu gostava muito disso.
Parte 6...BiancaEu e Luísa nos esgueiramos pelo corredor do convento, tentando manter os passos leves, mas o eco das nossas respirações parecia amplificado no silêncio absoluto da madrugada. Meu coração batia com força no peito, e eu sentia o suor escorrer pelas costas, enquanto minhas mãos ainda tremiam da emoção de tudo o que havia acontecido na boate. Tínhamos conseguido voltar sem que ninguém notasse, mas o peso da nossa transgressão me fazia sentir que estávamos carregando o pecado estampado no rosto.Era até engraçado como alguns anos aqui dentro, me faziam sentir pecadora, por algo tão simples e livre como ir a uma boate.— Shh, devagar - sussurrei, sentindo minha respiração ofegante. — Acho que estamos seguras. Parece que ninguém nos viu sair.— Seguras? - Luísa bufou, tentando controlar uma risada nervosa. — Deus queira que sim. Se a Madre nos pegar...Coloquei o dedo na boca para ela ficar calada quando passamos em frente do quarto das irmãs mais velhas, que cuidavam da
Parte 7...BiancaA cela era fria e desprovida de qualquer conforto. As paredes de pedra, úmidas e ásperas ao toque, eram quase nuas, exceto por um crucifixo acima da cabeceira da cama estreita e dura.O chão também era de pedra fria. Ao lado da cama uma Bíblia em cima de uma cadeira de madeira. E não havia uma janela, só uma abertura no alto com barras de ferro, por onde entrava um pouco de luz da lua.Na cela não tinha aquecimento e o ar estava impregnado de um cheiro de incenso antigo, misturado à úmidade.Fiquei triste por Luísa ter levado a culpa de tudo. Na verdade, eu a incentivei mais. Desde que cheguei aqui eu já pensava em ir embora e depois que Luísa chegou, isso ficou mais forte.Ela também não sabia se queria ficar aqui e sua vontade maior não era essa, mas sua família a forçava a ser freira.— Bianca, venha comigo - a porta se abriu de vez e uma das freiras veio me chamar.Levantei e fui com ela até uma sala que fica no final do corredor. Isso já me preocupou porque eu s
Parte 8...BiancaEnquanto me encolhia naquela cela fria, o corpo ainda latejando do castigo, os joelhos doendo muito e ardendo, as sombras das paredes pareciam se fechar sobre mim. Aquilo era sufocante. Tudo o que eu conseguia ouvir era o eco da bronca da madre superiora e o som abafado da minha própria respiração. O que mais me torturava, no entanto, não era a dor física, mas o peso da memória.Fechei os olhos e voltei àquele dia, quando tudo mudou para mim.Eu tinha apenas treze anos quando fui chamada ao escritório do meu pai. Não era comum ele me chamar para conversar, muito menos naquele lugar, o ambiente mais proibido da casa para mim. O escritório dele era um mundo à parte, sempre repleto de homens de terno, conversas em voz baixa e olhares duros. O cheiro de tabaco e couro impregnava o ar.Quando entrei, ele estava sentado à mesa, os olhos fixos em um ponto qualquer, sem sequer me olhar. Meu coração disparou. Não sabia o que estava acontecendo, mas sentia que algo grande e
Parte 9...Bianca— Não estou vendo ninguém - eu abri a porta de fininho e olhei para os lados. O corredor estava deserto — Vamos agora ou nunca.Luísa assentiu com a cabeça, fazendo uma careta de dor, quando esfregou os joelhos de novo, que tinham pontos de sangue, assim como os meus, que ardiam ainda.A escuridão do convento parecia mais densa hoje à noite. O silêncio era opressor, apenas quebrado pelo som suave de nossos passos rápidos no corredor. Luísa e eu saímos da cela de punição com os joelhos latejando, ainda sentindo os grãos de milho espetando nossa pele machucada. Tínhamos que ser rápidas, antes que alguém percebesse nossa ausência.— Rápido! - sussurrou Luísa, com a voz trêmula, puxando minha mão enquanto nos esgueirávamos pelos corredores frios.A dor nos joelhos quase me fazia vacilar a cada passo, mas o medo de sermos descobertas era maior. Chegamos ao meu quarto primeiro. Abri a porta com cuidado, tentando não fazer barulho. Lá dentro, o breu tomava conta do espaço