Parte 4 -
Bianca
— Você não parece bem - ele insistiu, suavemente, seus dedos desenhando círculos lentos nas minhas costas, uma carícia quase imperceptível. — Mas não vou insistir. Não agora.
Fiquei em silêncio, incapaz de formar uma resposta coerente. Era como se eu estivesse perdendo o controle sobre meus pensamentos, sobre mim mesma.
A música continuava, lenta e suave, embalando nossos corpos em uma dança íntima que eu sabia que não deveria estar acontecendo.
— Biatrice - ele disse depois de alguns minutos, o tom da sua voz mais suave, quase um sussurro. — Você mora por aqui?
Engoli em seco, tentando me concentrar.
— Não... Não exatamente.
Desviei o olhar, lutando para manter uma fachada tranquila. Não podia contar nada a ele, não podia deixar escapar quem eu era ou de onde vinha. Seria um desastre.
— Interessante - ele olhou para mim de maneira intensa, como se estivesse tentando desvendar cada segredo que eu escondia. — Então o que você faz? Quem é você, Biatrice?
— Eu...
As palavras se embaralharam na minha garganta. Como eu poderia explicar a verdade? Que eu era uma mulher que havia passado anos em um convento, fugindo para ter um gostinho de liberdade e que estava presa em uma promessa de casamento que eu não havia escolhido e nem queria pensar sobre?
— Eu só estou... De passagem.
Ele sorriu de canto, como se não acreditasse em uma palavra do que eu dizia.
— De passagem? Certo.
Ele continuou me guiando pela pista de dança, como se soubesse exatamente o que fazer para me deixar ainda mais desconfortável e ao mesmo tempo encantada.
— E que tal me deixar mostrar mais da cidade enquanto está por aqui?
Meu coração disparou. Ele estava me convidando para sair? Era uma oferta inocente ou algo mais?
— Eu... Não posso. - minha voz saiu mais fraca do que eu pretendia. — Eu tenho... Compromissos.
Ele ergueu uma sobrancelha, claramente intrigado.
— Compromissos? Como quais?
Pisquei, tentando não parecer tão nervosa. E sem querer falar demais.
— Família. Assuntos de família. - era a única resposta que consegui formular.
— Entendo. - ele inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse avaliando minhas palavras. — Mas às vezes, você precisa de um tempo para si mesma, não acha?
A pergunta pairou no ar, como se ele soubesse exatamente o peso das minhas responsabilidades, dos meus segredos. Eu queria dizer que sim, que merecia aquele tempo, aquela liberdade. Mas não era tão simples.
— É complicado - respondi, desviando o olhar, incapaz de encarar seus olhos por muito tempo. — Minha vida não é... Como a das outras pessoas.
Ele não respondeu imediatamente, mas senti a mudança em sua postura, um entendimento silencioso que ele parecia captar de forma intuitiva.
— Complicado é algo que eu entendo bem - ele murmurou finalmente, sua mão ainda firme na minha cintura. — Talvez, um dia, você possa me contar mais sobre esses compromissos. Quem sabe, eu possa ajudar a torná-los menos complicados?
Eu ri nervosamente, sabendo que isso era impossível. Ele não fazia ideia do que estava envolvido na minha vida, nem do que aconteceria quando o tempo que eu tinha acabasse.
— Obrigada pela oferta, mas... - comecei, mas ele me interrompeu gentilmente.
— Eu não desisto fácil, Biatrice - seus olhos brilhavam com uma determinação que me fez tremer. — Vou esperar o momento certo. E quando você estiver pronta, eu estarei aqui.
A música começou a diminuir, e a sensação de realidade voltou a me atingir.
Eu estava longe do meu mundo, fora de lugar, dançando com um homem que eu mal conhecia, mas que, de alguma forma, parecia já fazer parte da minha história.
— Que tal me dizer ao menos o seu telefone? - ele mexeu em meu cabelo, enrolando o dedo — Preciso achar você.
Eu engoli em seco.
*** *** *** ***
Trajano
Ela estava ali, perto do bar, olhando para a pista de dança, completamente deslocada, mas, ao mesmo tempo, como se todo o ambiente tivesse se ajustado para girar ao redor dela.
De imediato, soube que havia algo diferente naquela mulher. Não era como as outras que costumavam frequentar lugares como este, buscando atenção, tentando ser notadas.
Ela... Ela parecia querer passar despercebida. O que, curiosamente, só a tornava ainda mais visível para mim.
Seu corpo se movia com hesitação, devagar, observando as pessoas dançando e eu percebi que dançar não era algo natural para ela, não ali, pelo menos.
O vestido colado ao corpo revelava curvas que qualquer homem notaria, mas havia algo mais. Algo no modo como ela olhava ao redor, com uma mistura de curiosidade e cautela. Era quase inocente... Quase.
Fiquei curioso, como há tempos não ficava por alguém. O tipo de curiosidade que surge quando você encontra algo inesperado, um mistério. E eu sempre gostei de um bom mistério.
Então, antes que pudesse pensar demais, meus pés já estavam me levando até ela.
Não me importava com quem estava ao redor, com o barulho ou as luzes que piscavam. Era como se, de repente, o mundo tivesse encolhido até aquele ponto exato onde ela estava.
Cheguei perto o suficiente para sentir o perfume dela, algo leve, fresco, que contrastava com a atmosfera carregada da boate.
Parei à sua frente e puxei assunto. Ela me pareceu tímida a princípio e depois foi se soltando, respondendo ao que eu perguntava.
Depois que a amiga dela apareceu, eu queria falar com ela sozinho e estendi a mão, a convidando para dançar.
Ela me olhou por um segundo, surpresa, como se não esperasse que alguém fosse se aproximar. Os olhos dela... Tinham uma profundidade que me prendeu no mesmo instante. Um tom escuro, misterioso, e ao mesmo tempo vulnerável.
— Vamos dançar?
A pergunta escapou de mim antes que eu pudesse me impedir, mas não era bem uma pergunta. Era mais uma decisão que já havia tomado. Eu queria dançar com ela, e ela iria aceitar.
Vi a hesitação no rosto dela, uma espécie de batalha interna que durou poucos segundos. Quase como se ela soubesse que não deveria, mas não conseguisse dizer não. E isso me intrigou ainda mais.
— Eu... Não sei dançar direito... - a voz dela saiu baixinha, quase como se estivesse tentando se desculpar.
— Só sinta a música - respondi, sem tirar os olhos dos dela.
Eu a puxei para mais perto, envolvendo sua cintura com minhas mãos de forma firme, mas não invasiva. Era como se o toque tivesse sido ensaiado, mas, ao mesmo tempo, completamente espontâneo.
Quando nossos corpos se alinharam, algo dentro de mim se acendeu.
Autora Zara
Parte 5 -TrajanoEla era diferente. Não só pela maneira como parecia fora de lugar, mas pela forma como seu corpo reagia ao meu. Havia uma tensão ali, uma vibração que eu podia sentir, quase como se ela estivesse resistindo a algo... Ou a alguém. Não era só a música que movia nossos corpos, havia uma conexão. Um reconhecimento silencioso, mas real.Senti o corpo dela tenso contra o meu, as mãos dela pousando hesitantes nos meus ombros, mas ainda assim, ela não se afastou. Pelo contrário, mesmo com a hesitação, havia uma entrega que ela mesma talvez não percebesse.— Você parece tensa - eu disse, e podia sentir o leve estremecer do corpo dela em resposta. — Eu... Estou bem - ela murmurou, mas sabia que era mentira. O que estava acontecendo aqui? Eu acabara de a conhecer, e mesmo assim, sentia como se conhecesse aquela mulher há mais tempo. Como se já houvesse algo entre nós, algo que ainda não tinha nome, mas que estava ali, latente. E eu gostava disso. Eu gostava muito disso.
Parte 6...BiancaEu e Luísa nos esgueiramos pelo corredor do convento, tentando manter os passos leves, mas o eco das nossas respirações parecia amplificado no silêncio absoluto da madrugada. Meu coração batia com força no peito, e eu sentia o suor escorrer pelas costas, enquanto minhas mãos ainda tremiam da emoção de tudo o que havia acontecido na boate. Tínhamos conseguido voltar sem que ninguém notasse, mas o peso da nossa transgressão me fazia sentir que estávamos carregando o pecado estampado no rosto.Era até engraçado como alguns anos aqui dentro, me faziam sentir pecadora, por algo tão simples e livre como ir a uma boate.— Shh, devagar - sussurrei, sentindo minha respiração ofegante. — Acho que estamos seguras. Parece que ninguém nos viu sair.— Seguras? - Luísa bufou, tentando controlar uma risada nervosa. — Deus queira que sim. Se a Madre nos pegar...Coloquei o dedo na boca para ela ficar calada quando passamos em frente do quarto das irmãs mais velhas, que cuidavam da
Parte 7...BiancaA cela era fria e desprovida de qualquer conforto. As paredes de pedra, úmidas e ásperas ao toque, eram quase nuas, exceto por um crucifixo acima da cabeceira da cama estreita e dura.O chão também era de pedra fria. Ao lado da cama uma Bíblia em cima de uma cadeira de madeira. E não havia uma janela, só uma abertura no alto com barras de ferro, por onde entrava um pouco de luz da lua.Na cela não tinha aquecimento e o ar estava impregnado de um cheiro de incenso antigo, misturado à úmidade.Fiquei triste por Luísa ter levado a culpa de tudo. Na verdade, eu a incentivei mais. Desde que cheguei aqui eu já pensava em ir embora e depois que Luísa chegou, isso ficou mais forte.Ela também não sabia se queria ficar aqui e sua vontade maior não era essa, mas sua família a forçava a ser freira.— Bianca, venha comigo - a porta se abriu de vez e uma das freiras veio me chamar.Levantei e fui com ela até uma sala que fica no final do corredor. Isso já me preocupou porque eu s
Parte 8...BiancaEnquanto me encolhia naquela cela fria, o corpo ainda latejando do castigo, os joelhos doendo muito e ardendo, as sombras das paredes pareciam se fechar sobre mim. Aquilo era sufocante. Tudo o que eu conseguia ouvir era o eco da bronca da madre superiora e o som abafado da minha própria respiração. O que mais me torturava, no entanto, não era a dor física, mas o peso da memória.Fechei os olhos e voltei àquele dia, quando tudo mudou para mim.Eu tinha apenas treze anos quando fui chamada ao escritório do meu pai. Não era comum ele me chamar para conversar, muito menos naquele lugar, o ambiente mais proibido da casa para mim. O escritório dele era um mundo à parte, sempre repleto de homens de terno, conversas em voz baixa e olhares duros. O cheiro de tabaco e couro impregnava o ar.Quando entrei, ele estava sentado à mesa, os olhos fixos em um ponto qualquer, sem sequer me olhar. Meu coração disparou. Não sabia o que estava acontecendo, mas sentia que algo grande e
Parte 9...Bianca— Não estou vendo ninguém - eu abri a porta de fininho e olhei para os lados. O corredor estava deserto — Vamos agora ou nunca.Luísa assentiu com a cabeça, fazendo uma careta de dor, quando esfregou os joelhos de novo, que tinham pontos de sangue, assim como os meus, que ardiam ainda.A escuridão do convento parecia mais densa hoje à noite. O silêncio era opressor, apenas quebrado pelo som suave de nossos passos rápidos no corredor. Luísa e eu saímos da cela de punição com os joelhos latejando, ainda sentindo os grãos de milho espetando nossa pele machucada. Tínhamos que ser rápidas, antes que alguém percebesse nossa ausência.— Rápido! - sussurrou Luísa, com a voz trêmula, puxando minha mão enquanto nos esgueirávamos pelos corredores frios.A dor nos joelhos quase me fazia vacilar a cada passo, mas o medo de sermos descobertas era maior. Chegamos ao meu quarto primeiro. Abri a porta com cuidado, tentando não fazer barulho. Lá dentro, o breu tomava conta do espaço
Parte 10 - BiancaDepois de horas de estrada, as primeiras luzes da manhã começaram a surgir no horizonte e como estava longe, aí sim começamos a relaxar e Luísa lembrou de uma pessoa.A casa da amiga dela ficava num bairro tranquilo, de ruas estreitas e árvores que faziam sombra até nas primeiras horas do dia. O carro finalmente parou diante de uma casa modesta, com janelas grandes e um portão de ferro enferrujado.— É aqui - disse Luísa, com a voz trêmula de cansaço e alívio. — Vamos entrar antes que alguém nos veja.Eu olhei em volta, nervosa. A rua estava vazia, mas o silêncio da madrugada terminando se quebrava com o barulho do motor do carro, que parecia avisar toda a vizinhança. Luísa saiu rapidamente do carro e eu a segui, segurando minha bolsa com força.Ela empurrou o portão com cuidado, tentando fazer o mínimo de barulho possível, mas, inevitavelmente, o metal rangeu alto. — Droga!- ela disse, torcendo a boca, olhando para trás.A casa era de um andar, com uma varanda pe
Parte 11 - CaterinaA Madre, do outro lado da linha, tentava se justificar. Sua voz era abafada, mas ainda assim dava para ouvir as desculpas tropeçando nas palavras. O viva - voz era muito bom.— Senhor Martinelli, faremos o possível para localizar sua filha. Não sabemos como isso aconteceu, mas já estamos organizando uma busca.— Busca? - ele gargalhou de maneira amarga. — Busca? Eu não quero promessas, Madre! Eu quero minha filha de volta. E rápido! Porque se eu tiver que resolver isso sozinho, você não vai gostar do que eu vou fazer.Eu conhecia aquele tom. Era o tom de ameaça, o mesmo que ele usava nos negócios quando as coisas saíam do controle. E também comigo algumas vezes.Por um momento, temi por Bianca e por essa garota Luísa. O que ele faria se as encontrasse? O que faria com quem as ajudou? Lorenzo nunca fora homem de meias medidas, e qualquer ameaça ao seu poder era tratada de forma brutal.Me aproximei mais, ainda escondida, mas agora meu coração estava acelerado. Ouv
Parte 12 -Bianca— Eles queriam que eu fosse freira, por causa de três tias minhas, muito queridas - Luísa disse, sua voz fria de amargura. — Queriam que eu fosse alguém que eu não sou. Eu me escondi atrás daquela batina, atrás da oração, mas nunca fui feita para aquilo.Clara deu um passo em direção a ela, sua expressão cheia de compaixão. — Mas agora você está livre, Luísa. Nós podemos decidir o que fazer juntas. Não tem mais que voltar para lá.— Eu sei, Clara. E nem posso... Eles vão me mandar de volta ou me expulsar de vez - Luísa olhou para ela com olhos marejados, sua mão tremendo ligeiramente quando tocou a de Clara sobre a mesa. — Mas e se eles vierem atrás de mim de novo? Não tenho para onde ir. Não tenho mais família.— Se souberem que está comigo, não vão vir - ela deu de ombro — Eles não gostam de mim, aliás, me odeiam.— Mas se meu irmão...— Esqueça. Você tem a mim - Clara respondeu, sua voz suave, mas firme. — Agora vai ser diferente, você já ficou tempo demais naque