Parte 5 -
Trajano
Ela era diferente.
Não só pela maneira como parecia fora de lugar, mas pela forma como seu corpo reagia ao meu.
Havia uma tensão ali, uma vibração que eu podia sentir, quase como se ela estivesse resistindo a algo... Ou a alguém.
Não era só a música que movia nossos corpos, havia uma conexão. Um reconhecimento silencioso, mas real.
Senti o corpo dela tenso contra o meu, as mãos dela pousando hesitantes nos meus ombros, mas ainda assim, ela não se afastou.
Pelo contrário, mesmo com a hesitação, havia uma entrega que ela mesma talvez não percebesse.
— Você parece tensa - eu disse, e podia sentir o leve estremecer do corpo dela em resposta.
— Eu... Estou bem - ela murmurou, mas sabia que era mentira.
O que estava acontecendo aqui?
Eu acabara de a conhecer, e mesmo assim, sentia como se conhecesse aquela mulher há mais tempo.
Como se já houvesse algo entre nós, algo que ainda não tinha nome, mas que estava ali, latente. E eu gostava disso. Eu gostava muito disso.
Nos movíamos devagar ao som da música, e senti que ela, aos poucos, começava a relaxar. Seu corpo cedeu um pouco, como se estivesse finalmente se entregando ao momento, ao toque, àquele breve pedaço de tempo que estávamos compartilhando.
— Então, quem é você? O que você faz? - perguntei, curioso, enquanto meus dedos traçavam um caminho discreto pela base da coluna dela.
Era uma pergunta simples, mas não era só isso. Eu queria saber mais. Eu precisava saber mais.
— Eu... Só estou de passagem - ela respondeu, desviando o olhar por um segundo, e notei um leve rubor subindo pelas bochechas.
Interessante. Ela estava mentindo, ou pelo menos, escondendo algo. E isso só me deixava ainda mais curioso.
— De passagem? Certo.
Eu sorri de lado, sem deixar de observar cada movimento, cada expressão.
— E que tal me deixar mostrar mais da cidade enquanto está por aqui?
Ela riu nervosamente, e o som daquela risada foi como uma pequena vitória para mim. Eu queria mais daquilo.
Eu queria ver mais daquele lado dela que parecia tão escondido.
— Eu... Não posso. - me respondeu e a forma como disse aquilo me fez querer saber ainda mais. Era uma negação suave, mas firme. Parecia mesmo esconder algo — Eu tenho... Compromissos.
— Compromissos? Como quais? - repeti, com um leve sorriso.
Ela soltou uma risada suave, mas seus olhos mostravam que falava sério
— Família. Assuntos de família.
— Entendo. - inclinei a cabeça para o lado, avaliando suas palavras. — Mas às vezes, você precisa de um tempo para si mesma, não acha?
A pergunta pairou no ar. Parecia que tinha algo suspenso.
— É complicado - ela respondeu, desviando o olhar, incapaz de me encarar — Minha vida não é... Como a das outras pessoas.
Levei um momento para responder.
— Complicado é algo que eu entendo bem - eu disse finalmente, minha mão ainda firme em sua cintura. — Talvez, um dia, você possa me contar mais sobre esses compromissos. Quem sabe, eu possa ajudar a torná-los menos complicados.
Ela riu nervosamente.
— Obrigada pela oferta, mas... - começou, mas a interrompi gentilmente.
— Eu não desisto fácil, Biatrice - contestei com uma determinação que a fez tremer de leve — Vou esperar o momento certo. E quando você estiver pronta, eu estarei aqui.
A música começou a diminuir. Senti que ela ficou tensa. Talvez eu tenha ido muito em cima dela, mas preciso saber mais.
— Que tal me dizer ao menos o seu telefone? - mexi em seu cabelo, enrolando o dedo — Preciso achar você.
*** *** *** ***
Bianca
O calor da pista de dança começava a me sufocar. Cada movimento ao lado de Trajano, cada toque sutil de suas mãos em minha cintura, me deixava mais confusa.
Como era possível que um estranho mexesse tanto comigo?
Ele não era só bonito. Não era só o jeito como seus olhos me fitavam, como se quisessem desvendar todos os meus segredos.
Era algo mais profundo, algo que eu não sabia identificar. E isso me assustava. Muito. Acho que eu não deveria ter saído do convento.
Eu não podia estar ali. Não podia me sentir daquele jeito. Trajano era um desconhecido, e eu... Era prometida a outro homem.
Mesmo que a promessa tivesse sido feita quando eu era apenas uma menina, o peso disso me acompanhava desde que fui enviada ao convento. Esse era o meu destino.
Mas estar ali, com ele, fez com que tudo parecesse diferente. Pela primeira vez em anos, me senti viva, como se houvesse uma outra possibilidade.
Só que, ao mesmo tempo, eu sabia que não podia deixar essa fantasia continuar.
— Você está bem? - a voz grave dele me tirou dos meus pensamentos. Eu pisquei, tentando esconder o quanto minha mente estava em tumulto.
— Eu... Preciso de um pouco de ar.
Aquelas palavras saíram quase sem controle, como se meu corpo estivesse tentando fugir antes que meu cérebro pudesse protestar.
Ele me olhou de um jeito que fez meu estômago dar um nó. Era como se soubesse que eu estava enrolando.
E talvez soubesse mesmo. Mas ao invés de insistir, ele apenas sorriu de leve, um sorriso que parecia entender mais do que eu estava disposta a compartilhar.
— Claro, vamos lá fora. - ele fez menção de me guiar até a saída, mas eu balancei a cabeça rapidamente.
— Não, eu preciso ir sozinha. É só um minuto. - sorri sem jeito.
Minhas palavras estavam apressadas. Ele franziu o cenho, claramente intrigado, mas deu um passo para trás, me dando o espaço que eu tanto precisava naquele momento.
Me virei antes que ele pudesse dizer qualquer coisa.
Assim que me distanciei, procurei desesperadamente por Luísa. Ela estava do outro lado do salão, conversando animadamente com um grupo de caras, como se estivesse em seu quarto no convento, de forma solta. Quando me viu, seus olhos se arregalaram.
— Bianca? O que está acontecendo? Você está bem? - ela correu até mim, com o vestido vermelho colado, atrapalhando enquanto desviava das pessoas.
— Eu preciso sair daqui, Luísa. Agora! - segurei o braço dela como se minha vida dependesse disso — Eu menti e dei o nome errado.
— Você está me dizendo que vai fazer uma fuga estilo Cinderela? Agora? - ela parecia mais divertida do que preocupada, mas ao ver a seriedade no meu rosto, ficou atenta. — Ok, ok, vamos embora. Mas me diga, o que aconteceu?
— Eu não posso explicar agora. Só preciso ir. Vamos logo!
Ela revirou os olhos, claramente adorando o drama da situação, mas não questionou.
— Tudo bem, siga-me. Mas já aviso que vamos ter que sair pelo fundo. Seu par de dança está perto da saída e você claramente parece uma fugitiva em pânico.
Eu ri, mesmo com o coração acelerado. Era típico de Luísa fazer piada de tudo, mas agradeci por ela não me fazer perguntas demais. Não agora.
Passamos rapidamente pelo corredor estreito e vimos que levava à cozinha. O cheiro de frituras e o calor do fogão me atingiram como uma onda, mas continuei andando, determinada.
— Se alguém perguntar, estamos atrás do banheiro, tá? - Luísa cochichou com uma piscadela, enquanto desviávamos de garçons apressados.
— Você está louca! - sussurrei de volta, mas ela apenas deu de ombros.
— Não dava pra sair lá por onde viemos - ela deu de ombros — Ele estava esperando por você - apressou o passo.
No instante em que passamos pela última porta e saímos para o beco atrás da boate, senti o ar fresco no rosto. Parecia um alívio.
Um alívio e, ao mesmo tempo, um medo. Não gostei do beco e apertei a mão dela.
— Vamos logo, Luísa. Não gosto desse tipo de lugar.
— Você queria sair rápido e conseguiu fugir, não foi, Cinderela? - Luísa sorriu, ajeitando o cabelo, enquanto caminhava na direção do carro. — Mas você vai precisar me contar tudo depois. O que diabos aconteceu naquela pista de dança?
Respirei fundo, olhando para o céu escuro e estrelado.
— Eu não sei, Luísa. Eu realmente não sei. Mas... Foi intenso demais. E eu não estou pronta para isso.
— Ah, querida, ninguém está preparado para certas coisas, mas isso não significa que você precisa fugir de tudo.
Eu ri, mas era uma risada nervosa, ansiosa. Apertei os lábios.
— Isso é fácil para você dizer. Eu não sou como você. Não deveria nem estar aqui. E muito menos sentir o que senti.Luísa parou, virando-se para mim com um olhar sério pela primeira vez.
— Escuta, Bianca. Você não é mais aquela garotinha que foi deixada no convento. Você tem o direito de viver sua vida. Então, se o problema é se sentir culpada por ter aproveitado um pouco... Relaxa. Ninguém vai te julgar.
— Não sei se isso é real - pensei em minha família se soubesse.
— Como quiser, Cinderela. Mas da próxima vez, espero que você perca um sapato para ele te procurar depois. - ela piscou, rindo enquanto entrava no carro.
Parte 6...BiancaEu e Luísa nos esgueiramos pelo corredor do convento, tentando manter os passos leves, mas o eco das nossas respirações parecia amplificado no silêncio absoluto da madrugada. Meu coração batia com força no peito, e eu sentia o suor escorrer pelas costas, enquanto minhas mãos ainda tremiam da emoção de tudo o que havia acontecido na boate. Tínhamos conseguido voltar sem que ninguém notasse, mas o peso da nossa transgressão me fazia sentir que estávamos carregando o pecado estampado no rosto.Era até engraçado como alguns anos aqui dentro, me faziam sentir pecadora, por algo tão simples e livre como ir a uma boate.— Shh, devagar - sussurrei, sentindo minha respiração ofegante. — Acho que estamos seguras. Parece que ninguém nos viu sair.— Seguras? - Luísa bufou, tentando controlar uma risada nervosa. — Deus queira que sim. Se a Madre nos pegar...Coloquei o dedo na boca para ela ficar calada quando passamos em frente do quarto das irmãs mais velhas, que cuidavam da
Parte 7...BiancaA cela era fria e desprovida de qualquer conforto. As paredes de pedra, úmidas e ásperas ao toque, eram quase nuas, exceto por um crucifixo acima da cabeceira da cama estreita e dura.O chão também era de pedra fria. Ao lado da cama uma Bíblia em cima de uma cadeira de madeira. E não havia uma janela, só uma abertura no alto com barras de ferro, por onde entrava um pouco de luz da lua.Na cela não tinha aquecimento e o ar estava impregnado de um cheiro de incenso antigo, misturado à úmidade.Fiquei triste por Luísa ter levado a culpa de tudo. Na verdade, eu a incentivei mais. Desde que cheguei aqui eu já pensava em ir embora e depois que Luísa chegou, isso ficou mais forte.Ela também não sabia se queria ficar aqui e sua vontade maior não era essa, mas sua família a forçava a ser freira.— Bianca, venha comigo - a porta se abriu de vez e uma das freiras veio me chamar.Levantei e fui com ela até uma sala que fica no final do corredor. Isso já me preocupou porque eu s
Parte 8...BiancaEnquanto me encolhia naquela cela fria, o corpo ainda latejando do castigo, os joelhos doendo muito e ardendo, as sombras das paredes pareciam se fechar sobre mim. Aquilo era sufocante. Tudo o que eu conseguia ouvir era o eco da bronca da madre superiora e o som abafado da minha própria respiração. O que mais me torturava, no entanto, não era a dor física, mas o peso da memória.Fechei os olhos e voltei àquele dia, quando tudo mudou para mim.Eu tinha apenas treze anos quando fui chamada ao escritório do meu pai. Não era comum ele me chamar para conversar, muito menos naquele lugar, o ambiente mais proibido da casa para mim. O escritório dele era um mundo à parte, sempre repleto de homens de terno, conversas em voz baixa e olhares duros. O cheiro de tabaco e couro impregnava o ar.Quando entrei, ele estava sentado à mesa, os olhos fixos em um ponto qualquer, sem sequer me olhar. Meu coração disparou. Não sabia o que estava acontecendo, mas sentia que algo grande e
Parte 9...Bianca— Não estou vendo ninguém - eu abri a porta de fininho e olhei para os lados. O corredor estava deserto — Vamos agora ou nunca.Luísa assentiu com a cabeça, fazendo uma careta de dor, quando esfregou os joelhos de novo, que tinham pontos de sangue, assim como os meus, que ardiam ainda.A escuridão do convento parecia mais densa hoje à noite. O silêncio era opressor, apenas quebrado pelo som suave de nossos passos rápidos no corredor. Luísa e eu saímos da cela de punição com os joelhos latejando, ainda sentindo os grãos de milho espetando nossa pele machucada. Tínhamos que ser rápidas, antes que alguém percebesse nossa ausência.— Rápido! - sussurrou Luísa, com a voz trêmula, puxando minha mão enquanto nos esgueirávamos pelos corredores frios.A dor nos joelhos quase me fazia vacilar a cada passo, mas o medo de sermos descobertas era maior. Chegamos ao meu quarto primeiro. Abri a porta com cuidado, tentando não fazer barulho. Lá dentro, o breu tomava conta do espaço
Parte 10 - BiancaDepois de horas de estrada, as primeiras luzes da manhã começaram a surgir no horizonte e como estava longe, aí sim começamos a relaxar e Luísa lembrou de uma pessoa.A casa da amiga dela ficava num bairro tranquilo, de ruas estreitas e árvores que faziam sombra até nas primeiras horas do dia. O carro finalmente parou diante de uma casa modesta, com janelas grandes e um portão de ferro enferrujado.— É aqui - disse Luísa, com a voz trêmula de cansaço e alívio. — Vamos entrar antes que alguém nos veja.Eu olhei em volta, nervosa. A rua estava vazia, mas o silêncio da madrugada terminando se quebrava com o barulho do motor do carro, que parecia avisar toda a vizinhança. Luísa saiu rapidamente do carro e eu a segui, segurando minha bolsa com força.Ela empurrou o portão com cuidado, tentando fazer o mínimo de barulho possível, mas, inevitavelmente, o metal rangeu alto. — Droga!- ela disse, torcendo a boca, olhando para trás.A casa era de um andar, com uma varanda pe
Parte 11 - CaterinaA Madre, do outro lado da linha, tentava se justificar. Sua voz era abafada, mas ainda assim dava para ouvir as desculpas tropeçando nas palavras. O viva - voz era muito bom.— Senhor Martinelli, faremos o possível para localizar sua filha. Não sabemos como isso aconteceu, mas já estamos organizando uma busca.— Busca? - ele gargalhou de maneira amarga. — Busca? Eu não quero promessas, Madre! Eu quero minha filha de volta. E rápido! Porque se eu tiver que resolver isso sozinho, você não vai gostar do que eu vou fazer.Eu conhecia aquele tom. Era o tom de ameaça, o mesmo que ele usava nos negócios quando as coisas saíam do controle. E também comigo algumas vezes.Por um momento, temi por Bianca e por essa garota Luísa. O que ele faria se as encontrasse? O que faria com quem as ajudou? Lorenzo nunca fora homem de meias medidas, e qualquer ameaça ao seu poder era tratada de forma brutal.Me aproximei mais, ainda escondida, mas agora meu coração estava acelerado. Ouv
Parte 12 -Bianca— Eles queriam que eu fosse freira, por causa de três tias minhas, muito queridas - Luísa disse, sua voz fria de amargura. — Queriam que eu fosse alguém que eu não sou. Eu me escondi atrás daquela batina, atrás da oração, mas nunca fui feita para aquilo.Clara deu um passo em direção a ela, sua expressão cheia de compaixão. — Mas agora você está livre, Luísa. Nós podemos decidir o que fazer juntas. Não tem mais que voltar para lá.— Eu sei, Clara. E nem posso... Eles vão me mandar de volta ou me expulsar de vez - Luísa olhou para ela com olhos marejados, sua mão tremendo ligeiramente quando tocou a de Clara sobre a mesa. — Mas e se eles vierem atrás de mim de novo? Não tenho para onde ir. Não tenho mais família.— Se souberem que está comigo, não vão vir - ela deu de ombro — Eles não gostam de mim, aliás, me odeiam.— Mas se meu irmão...— Esqueça. Você tem a mim - Clara respondeu, sua voz suave, mas firme. — Agora vai ser diferente, você já ficou tempo demais naque
Parte 13 -AdrianoAinda bem que eu nasci homem nesse mundo capitalista e cruel. Deus me livre ter que passar a vida como essa garota. Apesar dela ser filha de um dos nossos conflitos, anteriormente inimigo, eu não desejo mal para ela.A garota foi enviada ao convento com apenas quatorze anos de idade, para que não tivesse contato com outros rapazes.E sei que a ideia absurda foi de meu pai, mas eu não tinha voz ativa na época. Nem mesmo cheguei a conhecer a menina, só sei que seu nome de batismo é Bianca.Nunca nem cheguei a ver seu rosto, o que não iria adiantar muito, já que na época do acerto feito por meu pai e pelo pai dela, eu tinha acabado de fazer trinta anos e a coitada só tinha treze.Meu pai já estava doente e tinha deixado o poder nas mãos de Leonardo e eu fiquei sendo o segundo na família. Isso realmente não me incomodou. Leonardo tem muitos problemas sendo o cabeça.Quando a menina foi enviada para o convento, o pai dela queria que eu fosse junto com ele, mas não vi mo