Capítulo 3.1

O confronto

Horas antes do encontro com a Ana.

Passei a noite em um bar e entre um copo e outro, eu via a imagem da Rose projetada na minha frente. Ela era tão pequena, tão meiga. Resolvo que não é hora de sentir pena de mim e sim, é hora de correr atrás do tempo perdido. Faço sinal para o garçom e deixo uma nota de cem largada sobre a mesa. Saio do bar me sentindo meio tonto, mas bem capaz de voltar para casa. Subo na moto e acelero ganhando o asfalto quase sem movimento. Minutos depois, deixo a moto na garagem e vou para dentro do meu antigo quarto, onde passei a minha infância, mas que agora já não me sinto em meu lugar. Essas paredes guardam muitas mentiras. Como eles puderam? Na sala, encontro o meu pai sentado em um dos sofás lendo o jornal. "Esse confronto seria algo inevitável." Penso. Ele percebe a minha presença e deixa o jornal de lado. Os olhos claros e frios me encaram duramente e neles não um pingo de arrependimento. Nem um remorso. Nada. Há apenas uma pedra de gelo em cada retina. Com mais dois passos me aproximo do homem que se diz meu pai. O homem que destruiu a minha vida e que me tornou o que eu sou hoje. Tão frio quanto ele. Calculista, cruel, intolerante, sem alma e sem coração. Inabalável. Pelo menos até ontem eu era.

— Ainda está vivo — diz com um tom seco, sem tirar os seus olhos dos meus.

— Esperava que eu morresse? — indago tão frio quanto ele.

— Pelo jeito que saiu daqui ontem. Não sei porque ainda eu fico surpreso — rosna. E eu só consigo pensar que o filho da puta esteve em casa e não me recebeu. Ficou incluso o tempo todo. Assinto lentamente para o seu comentário. — Imagino que sua mãe lhe contou tudo. — Ele continua. Dou-lhe as costas em silêncio e caminho até o bar de canto sem muita pressa e me sirvo uma dose generosa de uísque.

— Aceita? — Ofereço ignorando a sua afirmação.

— Não, ainda é muito cedo, penso que você também não deveria.— Rio sem vontade.

— Você acha. — ralho irônico. — O que mais você acha, senhor Fassini? — questiono, me virando e volto a encará-lo. Ele não desvia o seu olhar. Porra ele se acha o dono da vida e que somos suas marionetes que ele pode mexer como quiser e bem entender.

— Edgar, filho...

— NÃO ME CHAMA DE FILHO, PORRA! — esbravejo, puto da vida. Vejo o meu pai endurecer a face ainda mais e assentindo, ele começa a andar em direção da biblioteca.

— Precisamos conversar, e essa conversa não vai acontecer aqui, no meio da minha sala onde os empregados possam nos ouvir — diz sem olhar para trás.

— Claro, não podemos manchar a reputação do senhor Enrico Fassini — rebato debochado. Ele se quer me olha e continua sua caminhada para o seu destino... O escritório. Entorno a bebida de uma vez, que desce me rasgando por dentro. Respiro fundo, ajeitando o meu terno e o sigo logo atrás do meu pai. O escritório ainda está do mesmo jeito. Velhas estantes de madeira escuras, ladeiam a enorme parede do lado esquerdo do cômodo. A enorme mesa colonial ainda está lá. Os estofados negros... Nada mudou por aqui. Como sempre, ele se senta em sua cadeira imponente, como se fosse um grande rei olhando os seus súditos com o seu olhar superior. Eu não fico por menos. Aprendi a não sentir medo de nada e nem de ninguém. Aprendi a esmagar as feras com minhas próprias mãos.

— Sente-se! — ordena.

— Por que me fez acreditar que ela havia me abandonado? — Volto a questioná-lo, ignorando a sua ordem. Sou direto, frio, implacável e objetivo. Enrico não deixa por menos.

— Não tive um filho pra se casar com a filha de uma simples empregada. Rose Falcão não era mulher para você. — Nossos olhos se encaram duramente. Ele é um desgraçado! Destruiu a minha felicidade por puro status.

— E quem seria uma mulher para mim, Enrico? — indago apertando firme o copo vazio em minha mão.

— Edgar, eu tinha planos para você. Você é o meu único herdeiro, é tudo o que eu tenho. Precisava que você estudasse, que se formasse e se casasse com uma dama da alta sociedade. Não com uma ratinha de esgoto! — Ele brada. Com sangue frio, eu caminho até a sua mesa, me inclino sobre a mesma e o encaro mais de perto.

— O que fizeram com ela? — pergunto entre dentes. Ele apenas me olha. Não há sentimentos, nem amor refletindo em seu olhar. Frio como uma geleira.

— A mandei embora — resonde com desdém. Pela segunda vez eu fui apunhalado e dessa vez pelas costas.

— Pra onde? — Mantenho minha voz firme, embora essa conversa esteja me quebrando por dentro. Enrico não pode saber que me desestabilizou.

— Nao sei, não me interessa!

— ELA ESTAVA GRÁVIDA PORRA! — grito.

— Não grite comigo! — ordena.

— Como pôde ser tão cruel? Aquele bebê era meu filho,  seu neto! Como pode expulsá-la. —Continuo a questioná-lo.

— Não tenho neto bastardo, Edgar! Se quer me dá um neto, faça isso direito — brada. Dominado pela fera dentro de mim, arrasto tudo que está sobre a sua mesa , levando tudo ao chão. O estrondo dos objetos se impactando no piso de madeira, fazem um barulho que chama a atenção de Mariajú, que bate a porta desesperada.

— Eu vou encontrá-la e a trarei de volta  — digo entre dentes.

— Se fizer isso, o deserdo, Edgar. Não será mais o meu filho!  — Gargalho em alto e bom tom.

— Não preciso de você e nem do seu dinheiro para nada, senhor Enrico Fassini. Se quer saber, deixei de ser o seu filho desde que pus os meus pés para fora dessa casa, a vinte anos. — Ele engole em seco. Pela primeira vez o vejo estremecer e os olhos vacilam. — Fiz fortuna. Aprendi direitinho. Agora é a minha vez de tomar as rédeas da minha vida.

— Se sair daqui para ir procurar aquela rata de esgoto, não precisa mais voltar — avisa, voltando a sua postura anterior.

— Que assim seja, senhor Fassini, está mais do que na hora de ser feliz — rebato, lhe dando as costas e sigo para a saída. Liberdade. A sensação de tê-la é tão maravilhosa! Eu sinto que posso fazer tudo. Sem limites, sem algemas, sem as correntes Fassini prendendo os meus pulsos e pés. Abro a porta do escritório e encontro Mariajú em lágrimas. Seus olhos refletem o puro pânico.

— O que houve? — pergunto.

— É a senhora Giovanna, a sua mãe Edgar... — Não espero que termine de falar e saio correndo em direção das escadas e subo os degraus quase que voando e invado o seu quarto, a encontrando desacordada em sua cama. Minha mãe está pálida, o seu corpo totalmente inerte e a máscara de oxigênio está caída no chão. Não! Ando em direção da cama lentamente e desolado, eu me sento ao seu lado. Seguro a sua mão, sentindo o quão está geladas e sem vida e uma lágrima escorre pelo meu rosto, depois de longos anos sem derramá-las.

— Mãe? — A chamo em um sussurro. As lágrimas escorrem sem timidez alguma. Se quer tive tempo de me despedir. Não houve chance. Me sentindo desamparado, eu me debruço sobre o seu corpo e me deixo levar pelo choro dolorido. Algumas horas depois, estou sentado na varanda da casa, observando as pessoas lá dentro através dos vidros transparentes das janelas. Há um caixão bem no meio da sala, muitas coroas de flores, muitas homenagens. As pessoas e olham o seu sono eterno, enquanto andam lentamente e conversam baixinho. Seu Enrico está em pé, diante do caixão, olhando com ternura a sua esposa. Acho que ela foi a única pessoa que ele realmente amou na vida. Ele não chora, não emite qualquer som, apenas a olha em seu descanso.

— Oi! — Uma garota diz se aproximando da varanda. Ela aparenta ter uns quinze anos. Penso em meu filho. Ele deve ter os seus vinte e cinco? Não sei. Já deve ser um homem ou uma mulher. Suspiro.

— Oi! — respondo ao cumprimento da garota. Ela sorri.

— Posso? — Ela aponta para cadeira ao lado.

— Claro.

— Você deve ser o Edgar. — Ela diz com convicção e eu a encaro aguardando por mais.

— E, quem é você? — pergunto.

— Me chamo Maria Flor, sou a filha de Morgana. — O que me diz me deixa surpreso e automaticamente olho ao meu redor a procura da sua mãe. — Ela me contou muito sobre as histórias de Edgar Fassani e de Rose Falcão — diz atraindo a minha atenção outra vez. Sorrio. Morgana era a melhor amiga de Rose aqui na fazenda. Ela era a pessoa que nos encobria para que pudéssemos namorar sem sermos descobertos. Nossa cúmplice, posso assim dizer.

— Como está a sua mãe? — Procuro saber. A menina fica séria.

— Ela está bem. Soubemos da morte da senhora Geovanna e viemos imediatamente para cá. 

— Você a conhecia? — A garota parece pensar em uma resposta, mas log faz um não com a cabeça.

— Pessoalmente, não, mas minha mãe me falou muito sobre ela. — Arqueio as sobrancelhas para essa informação. Certo que Morgana viveu aqui desde que nasceu, mas ela sempre manteve distância das fazendas Fassini, pelo óbvio. Enrico Fassini mantinha meus amigos distantes. Apenas assinto para a menina e resolvo sair um pouco, caminhar pelo jardim, até parar na pequena casa onde ela morou.

— Senhor Edgar? — Mariana indaga apreensiva.

— Será que eu posso entrar um instante? — peço. Ela puxa a respiração e assente receosa.

— O senhor aceita um café? — oferece.

— Não, obrigado! — A casa é bem humilde e tem as paredes brancas, alguns poucos móveis. Tem um piso de cerâmica branca e na velha estante de madeira clara há alguns porta retratos. Um em especial me chama a atenção. É uma foto minha e da Rose ainda criança brincando em um jardim que eu não conheço. Em outro há uma foto dela com seus catorze, quinze anos ao lado da melhor amiga que encontrara nesse lugar. Tempos bons. Não havia preocupações ali, apenas diversão e risos. Encaro a imagem por algum tempo, até perceber a presença de Josué no cômodo.

— Boa tarde senhor, Edgar, o que faz aqui? — Ele indaga com um tom áspero na voz. Ponho o posta retratos de volta no lugar e encaro o homem sisudo em pé na minha frente.

— Quero falar com você.

— Não temos o que conversar, senhor Fassini, não tenho nada a dizer.

— Preciso saber onde está a Rose, para onde ela foi? — Ele me lança um olhar firme. — Josué, por favor, eu preciso encontrá-la!

— Não sei aonde ela está. Rose deixou de ser a minha filha desde que ágil feito uma vagabunda qualquer  — rosna impaciente.

— Josué! — Mariana o repreende.

— Como pôde expulsar a sua própria filha de casa e ainda por cima grávida? — inquiro com um tom intimidante. Josué abaixa os olhos e suspira, me encarando com uma carranca.

— Como eu disse, ela não é mais a minha filha  — dito isto, ele me dá as costas. Inconformado, eu encaro a Mariana.

— Tenho algo pra você. — Ela diz baixinho, como se me confidenciasse algo e tira um papel dobrado de dentro do seu avental branco. — Sabia que viria atrás de respostas, por isso o guardei comigo — fala me estendendo o papel e eu suspiro ao ver que se trata de um endereço no Rio de Janeiro. Engulo em seco. Finalmente há um rastro de esperança correndo em minhas veias. — Eu tentei manter contato com ela, nós nos falamos por alguns meses. Pelo menos até o nascimento da minha neta. —Neta, é uma menina, uma filha! Eu tenho uma filha! Meu coração parece que quer sair pela boca.

— Menina? — pergunto quase sem voz. Ela assente e deixa as lágrimas escorrerem. Puxo mais uma vez a respiração para conter as minhas lágrimas.

— Ana Júlia Falcão, esse é o nome dela.

— Ana Júlia — pronuncio o nome, sentindo uma sensação diferente dentro de mim.

— Esse foi o único endereço que ela me passou. Não sei se ainda moram no mesmo lugar. Já faz muitos tempo.

— Eu vou procurá-las e prometo que vou encontrá-las. Obrigado, Mariana! — Ela se aproxima para me dar um abraço apertado.

— Eu não devia te dizer isso — sibila ao se afastar. — Josué é um homem fiel ao seu patrão, ele jamais diria.

— Do que está falando? — A interrompo.

— Seu pai nos procurou na noite anterior a sua viagem, ele nos deu um ultimato. Me lembro como se fosse ontem.

— Filha atenda a porta por favor — pedi enquanto tirava a travessa do forno. De repente ouvi o som vozes alteradas na minha sala e corri para ver o que está acontecendo. O pânico se alastrou dentro de mim, quando vi o senhor Enrico segurando a minha filha pelos cabelos e gritando em alto feito um louco descontrolado..

— Sua vagabunda, oportunista! Pensou mesmo que ia enlaçar o meu filho? Ele é muito pra você. Você é uma rata de esgoto, uma infeliz. Fique longe dele — rosnou de forma agressiva, enquanto a minha filha gemia dolorosamente com o seu aperto.

— Mas o que está acontecendo aqui? — Josué perguntou entrando na sala em seguida. O senhor Enrico encarou o meu marido com fúria e soltou a Rose bruscamente, aproveitei e corri para perto dela, segurando-a com carinho em meus braços.

— A vagabunda da sua filha, deitou-se na cama do meu filho. É uma oportunista. Quer subir fácil na vida? Mas não nas minhas costas. — Ele cuspiu cada palavra como se tivesse nojo de nós.

— Diga que isso não é verdade, Rose. —Josué pediu quase ficando vermelho de raiva. Rose apenas chorava escondendo o seu rosto em meus braços.

— Ela não pode, peguei isso com a Morgana. — Estendeu um papel para o meu marido. Eu estava tão nervosa com isso aquilo.

— Está grávida, Rose? —Josué perguntou com amargura. Meu mundo estava desabando de uma sóvez só sobre a minha cabeça.

— Por Deus, filha, diga que isso é engano — pedi desesperada. Mas a minha menina só chora com desespero.

— FALA PORRA! — Ele gritou e aquele som me despedaçou, quando senti a minha frágil menina estremecer..

— Quero essa vagabunda fora daqui ainda hoje!

— Por Deus, senhor Fassini, ela é apenas uma menina! — intercedi, rompendo em lágrimas.

— Uma menina esperta demais para o meu gosto. Achou mesmo que eu não descobriria o golpe da barriga? Eu lhes darei duas opções... Ela aborta esse bastardo ou vai para rua. Enrico deu o ultimato e saiu.

— Filho da puta, desgraçado, eu o mato! — brado furioso me dirigindo a porta de saída da casa. Mariana me segura pelo braço, me fazendo encarar os olhos amedrontados.

— Edgar não!  Sua mãe acabou de ser enterrada, respeite a sua morte. Só se afaste, esfrie a cabeça e pense. Prometa que não vai enfrentar o seu pai. Se você disser uma palavra eu e o meu marido estaremos no olho da rua. —Ela suplica. De repente algo me acomete.

— Ela escolheu ter o nosso filho — sussurro emocionado. Ela assente sorrindo em meio às lágrimas.

— Encontre-as, Edgar. Essa é uma nova chance para vocês — diz. O meu sorriso se amplia Pela primeira vez em anos, sinto que respiro aliviado. Ela não me deixou de fato. Me sinto fortalecido, renovado e... Vivo outra vez.

— Eu vou encontrá-las e vou voltar para buscá-los — prometo e ela sorri ainda mais.

— Obrigada. meu filho! Sabia que quando voltasse, resolveria tudo isso. Ajeito o meu terno e caminho de volta para a mansão.

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