CAPÍTULO I

Abri os olhos e uma poeira granulosa estava grudada em minha pele, meus lábios ressecados, a garganta doendo de sede. Passei a mão pelos cabelos e caiu uma nuvem arenosa. Me sentei sob o chão e a luz do sol cegava meu rosto. Me levantei e tentei identificar onde estava.

Árvores frondosas ficavam a longos metros atrás de mim, como uma pequena floresta. Um grande espaço aberto com terra seca amarela dava margens a um rio ou talvez uma bacia hidrográfica por seu tamanho expansivo. Confuso, percebi as marcas sulcadas no chão em linhas diagonais, desiguais e um tanto estranhas, de perto não tinha ideia do que as voltas poderiam se tornar. 

Mas, eu iria descobrir. Desenrolei minhas asas, que se abriram como um leque negro contra o sol intenso. Seus músculos se esticam, renovando as fibras de sua parte de dentro e penas afiadas brilharam levemente iridescentes, no meio uma garra afiada marcava, onde ela se dobrava, quando as colocava em guarda. Coloquei força nas coxas e corri o mais rápido que pude, flexiono as asas para cima e depois para baixo, tomando impulso e alcei voo. A sensação de liberdade foi intensa e eu raramente voava, preferia o conforto de carros ou aviões para me locomover, no entanto estar no céu era como uma segunda natureza, um chamado ao que era, há milênios atrás, quase como sentir o cheiro do Paraíso. 

Sujo e cheio de terra, voei sobre a copa das árvores observando cada detalhe para ver se eu já havia estado aqui. A marca no chão, feita de forma grosseira, era um pentagrama com um círculo ao seu redor de mais ou menos cem metros e feito naquele espaço sem grama, como se a terra se recusasse a produzir vida naquele solo sob o desenho. Ponderei durante alguns minutos, lembrando da conversa horrível com Lúcifer e a Morte e não achei que renasceria na entrada do portal do Inferno. 

Eu sabia onde estava. 

Ao norte de Lisakovsk, no Cazaquistão. Ao sol que refletia tão densamente, por volta da uma hora da tarde. Se eu tivesse vindo do Vazio ou seja lá o que isso representa, acreditei que o portal deveria estar em outro lugar. 

Odiei aquela sujeira sob meu corpo e disparando para o rio Toldo, mergulhando com asas e tudo sob a água negra. Afundei o corpo todo, até o fundo do rio e voltei batendo as asas na água para a superfície, limpando o rosto e o corpo da poeira, que saiu rapidamente. Nadei um pouco e senti o sol aquecendo minha pele novamente não tinha preço. Por mais que não tivesse recordação sobre estar morto, além dos últimos momentos ao lado de Handora, tinha consciência dos anos que passaram como um peso desconhecido e inerte. 

Limpei toda a minha pele nua e notei que as cicatrizes da vida passada não a cobriam mais. Quando Melahel me atacou duas vezes com fogo, sob a superfície inteira do meu corpo tinha ficado queimada e após a cicatrização dolorosa, retorcida e derretida de uma forma horrorosa. Eu o odiava por isso, por roubar uma das coisas que eu mais prezava como um demônio, era a aparência impecável. E além das cicatrizes meu corpo parecia de alguém mais velho. Talvez vinte cinco anos e não o rapaz que tinha morrido, jovem e todo cheio de feridas. 

Caminhei para a beirada do rio e estendi as asas para secá-las ao sol, assim eu por completo. Ouvi um galho se partindo ao meio, no mesmo segundo levantei o rosto inumano e um casal curvou

as cabeças, se esconderam atrás de uma árvore. Um clique ressoou como uma câmera e algo dentro de mim sorriu rosnando. 

Meu coração tremeu no peito para que eu me transformasse para comer, mas não fiz isso. Apenas encarei as duas entrando sutilmente entre a vegetação para que eu não conseguisse vê-las. Mas, o cheiro de seu medo preencheu meu nariz e ela poderiam ter sido invisíveis, e mesmo assim conseguiria caçá-las. Joguei meu cabelo molhado para trás e andei tranquilamente até onde eles tinham aparecido e retesou as asas em posição de ataque, às ponta voltadas para cima. Passei por todo o espaço aberto e conseguia ouvir seus passos apertando cada vez mais. Da caminhada, passei por algo quase correndo e meu demônio arreganhou os dentes, quase afiando um palitinho para espetar aqueles humanos. 

Para dar mais graça a caçada, estendi minhas asas e me ergui facilmente, mas corri em disparada para eles, alcançando em questão de segundos. Rosnei, algo primitivo e sensorial, pegando minha presa entre as pernas, levantando o homem como se ele pesasse uma folha e o joguei com força em um tronco de árvore. Ele caiu, morto e me coloquei sobre ele, afundando meu rosto em seu pescoço sem que nem desse tempo para ele gritar. Os dentes cortaram a carne fresca e quente, acertando a sua arterial principal, o sangue bombeando para dentro de minha boca. Minha garganta fez sons sobrenaturais enquanto me enchia daquela vida para renovar a minha. 

Antes que pudesse acabar com a refeição, o vento se alterou rapidamente e me virei, segurando o pedaço de madeira que a mulher tinha pegado para me atacar. 

- Espere sua vez. - puxei a tora e ela largou sem entender e acertei com força seu rosto. Ela desmaiou, mas seu coração ainda batia. 

Voltei a me alimentar preguiçosamente e quando terminei, estava cheio e pesado, o corpo forte inflado e vibrando com a recém refeição. Mas, eu queria mais, queria me esbaldar e arrastei o corpo desmaiado da mulher para acabar o que tinha começado. 

                                      ***

Vesti as calças do homem morto e estiquei os braços para cima, me espreguiçando. Meus músculos se flexionam, amaciando a carne e finalmente estava satisfeito. Se Handora me visse agora, teria me matado apenas por ter tocado um humano, mas para mim já não importava mais. Por mais que eu a amasse, os valores dela e os meus não davam para se fundir, eu fui criado pelo Inferno durante tantos milênios que isso fazia parte de quem eu era. Não dava para modificar como se fosse um botão, eu já havia demonstrado compaixão uma vida inteira por ter me sacrificado por ela, e não me arrependia, provavelmente faria de novo se precisasse, mas não quer dizer que eu era bom, como seu anjo insuportável. 

Ao pensar nela, a curiosidade me venceu. Como ela estaria? 

Estendi minhas asas, pegaria vôo até os Estados Unidos e a acharia. Eu não iria aparecer na sua frente… Mas, queria saber como ela estava, como estava sua filha e se tudo que eu tinha sacrificado, que não era muita coisa, mas se minha vida havia valido a pena por isso. 

- Eu se fosse você não faria isso. - a voz feminina tão sensual disse.

Ergui as sobrancelhas e me virei de costas.

Encostada entre duas árvores como uma coisinha pequena sexy, uma mulher ruiva estava sorrindo. 

- Você é previsível demais, Azazyel. - ela debochou. 

Cruzei os braços. 

- Poderia me dizer seu nome, antes de se intrometer na minha vida? - pedi. 

Ela riu ainda mais e se aproximou, mexendo os quadris de um jeito sensual, meu demônio sorriu mostrando os dentes e o xinguei mentalmente. A confiança dela me chamou a atenção, além do olhar penetrante. A mulher tinha longos cabelos ondulados até a cintura, a pele de um marrom como terracota, brilhava sedosa ao sol e uma estatura bem baixa. Mas, ganhava ao andar com o nariz fino empinado para cima e arrogância em pessoa. Os lábios grandes e olhos escuros como meia noite. Não lembrava de tê-la visto em lugar nenhum. Com certeza me lembraria daquele corpo cheio de curvas em um vestido vinho cheio de fendas e recortes. 

Ela parou próxima. 

- Sou Ashtarote. - ela pronunciou com convicção. - Mas, pode me chamar de Ash. 

Assenti, compreendendo. 

- Anjo mais sábio da morte. - murmurei. - Será que pode me chamar de Heron? Afinal, não sou mais esse. 

Ela riu e inclinou a cabeça para o lado. 

- Eu se fosse você aceitaria seu nome de batismo. - Ash mordeu o lábio, como se lembrasse de uma piada. 

Dei os dois passos de distância para ficar colado a ela, que o rosto batia quase abaixo de meu peito. 

- Está brincando comigo? - minha expressão se fechou. 

Ela bateu em meu peito e deu dois passos para trás. 

- Estava, Mister Músculos. - ela revirou os olhos. - Mas, devo alertá-lo de duas coisas. Você não é mais bem visto pelos demônios como costumava ser. Depois de entregar tudo e se aliar aos anjos, você praticamente fez sua cama ao preferir a parceira de um anjo. Você entregou Lucian de bandeja várias vezes para ela. Quando houve aqueles caos todos os demônios que se aliaram a ela, foram mortos com os anos, perseguidos por quererem algum tipo de liberdade. Os que restaram, vencendo por domínio e força, enterraram essa história como uma traição ao seu chefe. E se tornaram tão violentos e hostis para reforçarem isso, que até os anjos os temem. 

Olhei para os lados e esperei a trilha sonora do medo. 

- Deveria ficar arrepiado? - a encarei. - Obrigado pela aula de história e até gosto do nome angelical, mas não sou mais um anjo.

Ash assentiu. 

- Até seria, se não fosse por isso. - ela estalou os dedos. 

Foi em dois segundos, em um eu estava olhando-a com deboche, no outro caí de joelhos gritando e uma onda reverberou pelas árvores, estrondando tudo e fazendo com que caíssem em um raio de cinquenta metros. Meu corpo queimava e não parei de gritar. A dor latejando cada centímetro de minha pele, com mais abundância pelos braços, coluna e o peito. Meus olhos pegavam fogo, as flamejantes labaredas corroendo meus globos oculares. Minha voz estava saindo rouca e rosnei, como um lobo morrendo. 

Olhei para frente e enxergava tudo em tons dourados e prata, como uma espécie terrível de cegueira. 

- O que é isso, porra? - gritei e gritei novamente. 

Minha cabeça estava como uma geléia derretendo e meu demônio interior uivava, cada vez mais sem voz. 

A figura de Ash estava parada e apenas seu cabelo flutuava. Seus tons demarcam seu corpo em dourado. 

- Isso é a marca da Morte, querido. Vocês fizeram um pacto e na verdade, estou aqui para acompanhar seu progresso com essa questão. Deveria dizer que esse pacto é algo benigno? - ela levantou um dos ombros e coloquei o rosto entre as mãos, que ainda queimava em líquido dourado - Você voltou a ser um anjo quando aceitou levar almas terríveis para Lúcifer. Está entendendo que isso é contrária a sua descendência demoníaca? - ela disse como se fosse óbvio. - Era você estar andando com eles, essas criaturas vis que irá caçar. Não matá-las. E é o que você deverá fazer. Se quiser, não cair em danação eterna com elas. 

Ela sorriu. 

- Você é uma criatura desgraçada. - grunhi como um animal, aquilo ardia como o Inferno. 

Suas mãos tocaram meus ombros curvados. 

- Já vai passar. Levante-se e olhe para cima. 

Fiz o que ela pediu e sai de suas mãos malditas. 

Me coloquei sobre as pernas que tremiam, tirando minhas mãos do rosto e meus olhos ainda queimavam, mas os tons dourados haviam sumido e de alguma forma, meus olhos que sempre ficavam pretos nos meus momentos mais perversos de ira, reluziam dourados como acredito que os de Handora, mas algo como fogo ondulante e vivo. Minhas asas se inclinaram para frente e as pontas estavam com reflexos dourados, como se pinceladas divinas a tocassem de brincadeira, tingindo o preto, mesclando e se tornando um dourado mais escuro em algumas partes e bem mais claras, como ouro quilate brilhante e amarelo amanteigado. 

Rugi e me voltei para ela, pisando com força no chão. 

- Vocês não podem tirar quem eu sou. 

Ash nem se mexeu. 

- Sua reputação está tão feia, que o Céu não se opôs e Lúcifer não fez questão. Você trabalha para a Morte e é um anjo que colhe almas até pagar seu débito. E eu vi o saldo. Acredite, não será quitado tão cedo. - sua voz era sincera, sem o tom de deboche. 

Rosnei de novo, mas sabia que não tinha outra escolha. 

Eu mataria e destruiria em pedacinhos quem tinha feito aquilo comigo. 

O ardor da queimação parou aos poucos e meu corpo já não queimava mais. Olhei minhas mãos, vendo sob a pele escura, como a de um espanhol, se havia alguma alteração e fechei-as em punho quando descobri as runas antigas que marcaram cada pedacinho de meus braços, ambos os lados iguais, se desenrolando pelos ombros, clavícula e tórax, provavelmente nas costas, seguindo a linha da coluna, se onde havia queimado mais, era a tatuagem, também pelas laterais do corpo, até o início do quadril. Eram marcas da Morte, como se recebendo em oração as almas obscuras, que eu colheria. 

Sentindo algo tocar meu cabelo como uma carícia, olhei para cima e vi uma auréola angelical, exata e redonda, tremulando em uma luz dourada, pairando cinco centímetros sobre minha cabeça trazendo leves vibrações por meu couro cabeludo. 

- Isso aqui é um tipo de piada? - minha voz saiu quase como um urro. 

A raiva me balançava em várias direções, mas não ouvi o demônio interno brigando comigo para pegar de volta o que éramos. 

- Não. Essa… é a foice concedida a você como um presente da Morte, já que você é o primeiro anjo em muito tempo que vai realizar essa tarefa, seja por obrigação ou não. - ela explicou. - Você pode camuflá-la com o poder de sua mente, assim como suas tatuagens. Eu faço isso quando ando entre humanos. Pode ser mais fácil de conseguir se adaptar. 

Fechei meus olhos, a cor deles voltando ao normal, por não sentir mais aquela coisa estranha quando eles trocavam de tom e virei meu rosto para baixo, tentando respirar fundo. Ouvi os passos nas folhas secas do chão. 

- Eu sei que pode ser demais. E vou deixá-lo sozinho por alguns dias. No começo não é fácil. Estarei aqui para auxiliá-lo. Quando estiver pronto, começaremos. Deixarei você se adaptando e conversaremos daqui um tempo. Eu peço que não vá atrás de Handora. Sua fama não é muito boa por aí e sei que não quer que isso leve até ela. 

Me afastei novamente dela e não tive forças nem para olhar para Ash para brigar. 

Apenas abri aquelas malditas asas douradas e alcei voo o mais distante que conseguia. 

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