CAPÍTULO II

Não parei de voar durante horas e horas sem parar. Gastando toda a raiva e a perplexidade do que estava sendo obrigado a fazer. Aquele não era eu e estar sem saída com tudo que foi jogado sobre meus ombros, me deixava fora de si. 

Como se não bastasse, não conseguia ouvir meu demônio, se afinal de contas minha natureza angélica tinha voltado em alguns sentidos, isso teria sido cortado em questão de segundos. Anjos não possuíam bestas interiores querendo sangue e morte. Mas, não precisava disso para sentenciar quem havia me colocado nessa barganha desgraçada. Porque a Morte e Lúcifer eram peões nesse jogo estranho onde eu era a peça mais movida, como um brinquedo estúpido. 

Eu não tinha ideia de como começar a descobrir o causador de toda essa merda. Mas, acharia. Em breve. 

Primeiro, eu iria ver apenas como Handora estava. 

Atravessei todo o estado e mais baixo quando cheguei na cidade. Duvidava de que ela ainda estivesse ali depois da batalha. Mas, era um ponto de partida. No pico elevado coberto de árvores gigantes, parei em um dos galhos, tentando respirar fundo para tirar todas aquelas tatuagens e a maldita auréola dourada reluzente. Fechei meus olhos, controlando as ondulações que o poder da Morte transbordava e movi todo aquele esplendor para dentro. Assim que abri os olhos, virei os braços para identificar se tinha dado certo e minha pele estava lisa e limpa de qualquer desenho. No entanto, ao olhar para cima, lá estava o elo brilhante como se quisesse debochar da minha cara. 

Eu teria que dar um jeito daquilo sumir. Como poderia andar entre demônios com algo assim? 

Controlei o ir e vir de meu peito, que estava sem fôlego pela corrida aérea. Mantive minha cabeça calma, minha mente vazia - por mais que fosse difícil - e sentindo o poder avassalador daquele elo cintilante, atei seus fios de ouro em uma parte profunda de minha mente, tentando abafar aquilo. Espiei pelos olhos para ver o resultado e lá estava ele novamente. Tão forte e denso como uma alma viva que tremulava acima dos longos fios de meu cabelo. Não teria solução temporária, para tirá-lo do campo de visão, teria que treinar muito. Mais tarde lidaria com isso. Já não ter canções escritas em runas entoando a morte e saudando as almas já era ótimo. 

Pulando, como um macaco-aranha, de galho em galho mais veloz que o vento, avistei longas torres daquela mansão gótica de Lucian. Quando cheguei mais perto, notei que as janelas haviam sido pintadas de azul bebê e tinham roseiras que nasciam logo abaixo por treliças brancas. 

Um forte demoníaco tinha flores?

Segurei a risada. Lucian deveria estar se revirando na cova por esse pensamento. Ele teria rosnado tanto que acordaria o Inferno inteiro. Parei na última árvore antes de se abrir para o muro alto ainda com vários fios de proteção elétricos e algumas câmeras pelo perímetro. Não vi cães de guarda e nem demônios que  faziam a ronda. Olhei ao longo da propriedade e mais flores se espalhavam pelo jardim, agora variadas e coloridas, havia uma piscina, estufa e uma edícula pequena. Parei um segundo para pensar em como entraria, dali de onde estava, era apenas pular. Uma queda de cinco metros fácil. Embora, talvez aquela casa poderia não ser mais usada como um esconderijo.

Mas, eu teria que tentar. Nem que fosse para torturar os moradores para descobrir onde estavam os antigos donos e até qualquer indício que levaria para Handora.

Guardei minhas asas e apenas com o impulso do corpo, me joguei pelo galho e pousei sobre o gramado verde com os pés firmes. Olhei para os lados entre todas aquelas flores irritantes e de repente, ouvi um ruído metálico, me coloquei inclinado, pronto para me transformar na minha pior versão e rosnei. Abruptamente um estalo quebrou o silêncio que havia se seguido e algo esguichou em mim. Mostrei os dentes e virei em direção a qualquer perigo. Fiquei completamente molhado e foi aí que percebi o que eram. 

Sprinklers. 

Olhei aquela maldita coisa regando o jardim e bufei, me endireitando, humilhado por aquela coisa e caminhei, correndo sorrateiramente pelo descampado. Havia acabado de amanhecer e provavelmente quem morava ali, estaria acordando em breve. Alcancei uma das portas laterais de madeira maciça e forcei o trinco, observando para ver se ninguém estaria me ali para impedir. Nem sinal de demônios. 

Abri a porta apenas com a força dos punhos e entrei em um ambiente quente, confortável e com um cheiro misturado estranho. De demônios, humanos e algo que me lembrava fracamente o cheiro como Handora. Ouvi passos no andar de cima e alguém caminhar, abrindo uma porta. Estava em uma sala adjacente, que parecia de estar. Nada comparado aos móveis antigos que Lucian amava como uma antiga masmorra. Sem dúvida, outras pessoas convivem nessa casa. 

Pés descalços ecoaram pela escada e uma sombra alta escureceu o hall. Me esgueirei entre o canto da parede, pronto para me transformar e os pingos de minha roupa encharcada de água soavam no carpete. Para alguém místico, seria perfeitamente audível. Xinguei mentalmente e a figura que deveria ser masculina, segurava algum tipo de arma como uma katana nas mãos em guarda. Ergui as sobrancelhas ao ver o rosto do cara. Não era possível, só se eu estivesse muito bêbado. 

- Eu ouvi você anjo. Se você não tiver uma boa razão para estar aqui, eu vou picá-lo até tirar de petisco. - ele disse. 

Suspirei alto e sai de trás da parede, o elo trazendo uma luz dourada para o ambiente. Tive vontade de revirar os olhos. Zahir, ex-braço direito de Handora e de seus exércitos, me encarou como se visse um fantasma. Ele abriu os lábios e a espada de ouro branco caiu no chão. O material zumbia ao estalar várias vezes sob a parte em que ele estava de granito. Vi algumas rachaduras se abrir onde ela parou de quicar e fiquei olhando-a, jurando ver um brilho estranho acendê-la. 

- Quem você é? - Zahir indagou, tirando minha atenção daquela arma estranha, que desconfiei ter origem angelical e encarei-o. 

Soltei um som de deboche e encostei no portal da sala de estar, ignorando as carícias do elo em meu cabelo, secando a parte de cima. 

- Heron. O mais lindos dos príncipes demoníacos. - indiquei o peitoral fundido em músculos e guerras antigas, mais velhas que ele. 

O maldito demônio negou com a cabeça. 

- Você morreu. Nós queimamos seu corpo. - ele balbuciou.

Handora deveria ter feito uma pira de respeito. Sorri, aquela era minha garota. 

- Por mais que deva ter sido um enterro icônico com muitas lágrimas, mulheres e homens, devo acrescentar, se desesperando pela minha partida… - coloquei a mão no peito como se sofresse por dois segundos. - Estou mais vivo que você, que parece que viu um morto vivo. 

Zahir negou com a cabeça, veemente. 

- Não. Nós queimamos Heron até não sobrar mais que cinzas. Handora fez questão que cuidássemos disso. - ele afirmou, categórico. - Não tem como você estar vivo. E o que Diabos é isso na sua cabeça? - ele aproximou o rosto, para enxergar melhor, como se não entendesse. - E o seu cheiro… Está errado demais para um demônio. 

Olhei dele para mim várias vezes. Inspirei fundo, muito fundo e soltei o ar. Repeti mais três vezes e notei do que ele falava, horas antes não havia percebido o que tinha mudado, mas agora era perceptível algo adocicado e marcante em minha presença, que exalava como um fedor odiosamente doce.

- Mas, que merda! - xinguei e me virei, despercebido e olhei para o céu que clareava lá fora, para Deus. - Que ódio! 

Zahir ainda estava parado atrás de mim, quando alguém desceu as escadas. 

- Amor, o que está acontecendo? Quem é esse? - a voz insuportavelmente gentil me preenche como um delírio. 

Em um piscar de olhos, girei nos calcanhares e abri os lábios em completa surpresa. 

- Kendra! - sussurrei. 

Ela ficou estupefata, usando um robe rosa, os cabelos curtos loiros e enrolados nas pontas. Meu coração se apertou, seu rosto tão delicado lembrava o de Handora. Ela fez menção de correr para meus braços, que de fato, estendi, mas Zahir colocou um braço envolta dela, assim que ela passou do seu lado. 

- Não. Nós não sabemos o que é ele. - aquele demônio chato disse novamente. 

Ela olhou para mim com tanto brilho nos olhos, como uma coisinha fofa e eu a adorava. Sempre adorei. Teria que explicar para aquele macho alfa protetor, pois claramente eles eram alguma coisa. 

- Fui trazido de volta pela Morte e por Lúcifer. Eles entraram em um acordo em comum com o Céu para que eu fosse um anjo da Morte. Um pacto sem o meu consentimento, feito por alguém que me queria vivo. Tudo isso aqui é resultado de algo que não sei o que pode se tornar. - apontei para o cheiro ao meu redor e o elo irritante brilhante. - Mas, creio que estou regredindo aos poucos até voltar à minha forma angelical. 

Zahir soltou Kendra na hora e seus olhos escuros não paravam de olhar de cima para baixo, como se finalmente estivesse caindo a ficha de que eu estava ali. Kendra não ligou para o que eu disse e correu novamente para meus braços. Envolvi seu corpo pequeno, ela sumindo de vista por meu corpo grande sobre o seu. Ergui-a sem esforço e beijei seu rosto várias vezes. 

Ela afundou o rosto em meu pescoço e senti as lágrimas escorrendo por minha pele, que já estava molhada. 

- Eu senti tanto a sua falta. - ela choramingou. 

Assenti com ela em meu colo. 

- Eu também, bonequinha. Mesmo do além. - gargalhei. 

Ela riu ao mesmo tempo em que chorava. Zahir pigarreou e soltei Kendra, provavelmente com o macho alfa ali não gostando do abraço longo. 

- Você sabe como as mulheres reagem a mim. - dei de ombros.

Ele riu e estendeu a mão para a minha, algo mais discreto. Masculinidade frágil. Abri os braços e puxei sua mão de encontro ao meu peito, abraçando-o com carinho. 

- Sentimos sua falta, cara. - ele se afastou rapidamente, desconfortável.

Zahir pegou a espada do chão e uma ligeira pontada martelou no canto de minha cabeça. O elo reluzindo mais intenso. Olhei para aquilo na mão dele e apontei com o queixo. 

- O que é isso? - perguntei. 

Ele girou nas mãos e as pontadas soaram novamente. 

- É uma arma do arsenal particular dos arcanjos. Ganhei de presente em uma batalha antiga. - deu de ombros. - Mata qualquer tipo de criatura. 

Passei a mão nas têmporas. 

- Está me dando dor de cabeça.  - fechei meus olhos e me senti nauseado. 

Kendra colocou as mãos em meus ombros. 

- Será que ela de alguma forma está te chamando? - a voz linda e suave dela ecoou pelo ambiente. - Nunca a vi brilhar como está fazendo agora, amor. 

Abri meus olhos e a espada piscava tão dourada quanto o meu elo, como se fosse irmãos. 

- Você disse, Heron, que a Morte tem um pacto com o Céu. Essa auréola que carrega, veio com você na sua forma que está se transformando em um anjo novamente? - Zahir me perguntou. 

Assenti. 

- Foi um presente de Morte. Como uma foice. Acredito que se eu puxar, ela vira uma arma. Mas, não imaginei que talvez pudesse ter descendência do Céu. - murmurei, pensando no assunto. 

Ele cruzou os braços, segurando a arma que ainda latejava minha cabeça. 

- Pode ser possível. Os Inquisidores do Céu tem o melhor arsenal já visto. E eles cederam a outras criaturas em vários momentos da história. A prova disso está em minhas mãos. Precisamos em uma batalha antiga. Eles podem ter cedido a Morte para esse pacto. Não seria novidade. - ele explicou. - A questão é quem iniciou tudo isso.

Concordei com a cabeça. 

- É por isso que vim até aqui. Para ver se achava algum dos demônios que soubesse de alguma coisa. Qualquer boato ou indício. Não sei. - Kendra ainda passava a mão em minha pele e Zahir olhou discretamente, antes de colocar a espada sob uma mesa de centro e se sentar. 

Caminhei com ele e quando fiz menção de se sentar, Kendra me segurou pelos ombros. 

- Nós temos muito o que conversar, claro. Mas, o que acha de tomar um banho e vestir roupas limpas? Tenho todos os ternos limpissímos de papai e algumas roupas dele. Mesmo depois de tudo, não consegui me livrar de nada. Acredito que nem mesmo Ruanda teve coragem de queimar. Nós voltamos para cá, depois de sua morte. - ela disse. 

Toquei seu rosto e sorri. 

- Seria ótimo. - falei, sem uma nota de meu sarcasmo. 

Zahir nos olhava e se levantou. 

- Eu te levo lá em cima. - ele passou por nós e apontou a escada. 

Tentei não rir de seu ciúmes desnecessário e troquei um olhar rápido com Kendra. 

- Cuidado com o Rick, acredito que ele devia estar dormindo. 

                                              ***

Me sentei sob o escritório de Lucian que provavelmente era um dos poucos cômodos que não havia sido mexido. As poltronas de couro, os livros antigos, a mesa pesada de carvalho, tudo intocado, mas perfeitamente limpo. Ajeitei o terno que havia vestido sob medida em meu corpo grande, depois de meia hora de uma banheira deliciosa com cristais de lavanda. Uma coisa que Kendra havia recomendado e era maravilhoso. Mas, não tirou meu cheiro angelical e a auréola ainda estava lá intocada, nem a água sequer havia penetrado sua aura cor de ouro. Tentei não pensar nisso e seria demais, eu precisava descansar, sentia isso pesando meus ombros, mas não sem antes colocar todos os últimos acontecimentos à par com a minha quase cunhada e seu companheiro ciumento. 

Rick em questão, era o filho deles, adolescente, nerd e humano, adotado aos cinco anos de idade. Estranhei a preferência, mas Zahir negou com a cabeça quando perguntei. Eles provavelmente queriam construir algum tipo de família. O que para mim era desnecessário e desgastante, porém não falei. 

Mesmo após o banho a dor de cabeça continuava e por um momento, poderia pensar que era fome. Quando se ficava dias e dias sem se alimentar, o corpo demoníaco se deteriorava. O sangue era o que enriquecia não só a maldade pronunciada, mas as forças físicas e mentais. Fazia menos de vinte e quatro horas que eu tinha comido. Não era possível que já sentia fome. 

A porta se abriu e Kendra entrou de mãos dadas com Zahir. Eles caminharam até os lugares à minha frente. Zahir se sentando em uma poltrona e Kendra no braço. Senti uma certa tensão entre eles, a expressão de minha quase cunhada, fechada. 

- Bem, você pode ficar um tempo conosco. - ela disse.

Zahir olhou de relance para ela, mas não a contradisse. Entendi seu não, sem ele precisar abrir a boca. 

- Não vou ficar. - olhei para ele, que encontrou meus olhos. - Mas, obrigado pelo convite. E por terem me ajudado. Apenas quero algumas informações. 

Kendra assentiu. 

- Sim? 

Respirei fundo. 

- Quanto tempo faz desde que morri? E o que aconteceu até agora? 

Zahir olhou rapidamente para Kendra e assentiu minimamente. 

- Bem, faz quase vinte e um anos. - ele disse. Arregalei os olhos e minha pele se arrepiou. - Não posso contar tudo que sei dos outros, porque cada um tomou uma direção diferente. Até mesmo nós dois, nos encontramos longos anos depois daquela batalha com Lucian e se deu por causa de ataques de demônios por todo o estado. 

“Entenda que na época o Céu foi misericordioso com todos nós, mas aqueles que não quiseram redenção, em sua maioria soldados de Lucian se viraram contra aqueles que quiseram seguir em frente ao lado do Céu ou de outra forma, como se tivesse traído sua natureza. Um por um foram mortos até a extinção pelos rebeldes e alguns anjos caíram se aliando a esse grupo que se tornou forte, grande e terrível. Montamos uma frente unida de combate e eles foram derrotados. Mas, a guerra foi difícil, perdemos muito. Como nos unimos com os anjos para isso, eles nos deram aquela espada de presente e pediram que cuidássemos como se fosse um tesouro, cedendo apenas para aquela luz brilhante pairasse sobre a cabeça de coisas obscuras e más. E foi assim, conseguimos expulsá-los do país e os anjos prezam a proteção de nosso lar aqui. Fomos um dos poucos a ser deixados em paz. Os que residem fora, contam com a sorte para não serem mortos”. 

Ele me olhou profundamente. 

- A Legião daquele mal ainda está unida e vive se mudando de lugar, causando terror e pânico por onde passam. Nós decidimos nos aposentar para viver uma vida mais tranquila. Deixando nas mãos dos anjos toda essa confusão. - ele admitiu. 

Escutei com atenção e não acreditei em toda essa misericórdia dos anjos, mas não questionei. 

- E onde Handora se colocou entre tudo isso? - era a única coisa que, de fato, queria saber. 

Kendra mordeu os lábios. 

- Ela lutou ao nosso lado bravamente. - sua resposta foi curta. 

Olhei para ambos. 

- Vocês acham que eu posso vê-la? Não vou me intrometer na vida dela. Somente… Só vê-la.

Zahir virou a cabeça para o lado e Kendra fixou seu olhar dourado em mim. Vi dor neles, mas ela assentiu. 

- Vou levá-lo até ela. - aquela coisinha adorável se levantou e caminhou até mim. 

Zahir não disfarçou a cara, que se fechou em ódio. 

- Não. É perigoso. 

Kendra nem olhou para ele. Se colocou de joelhos entre minhas pernas e vi lágrimas em seu rosto. Não entendi porque ela estava chorando, mas seus olhos não saíram dos meus. 

- Vou mostrar onde ela está. Você tem o direito de saber. 

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