Na noite em que seu pai morreu, Caelan pensou que o mundo havia ficado cinza diante de seus olhos. Malthus era o alfa dos Fúrias, o clã de lobos do Oeste e, quando partiu, todo o seu clã chorou pelo líder que perderam. Agora, diante do túmulo de seu pai, no alto do sopé daquele morro, ele só conseguia pensar que a clareira de flores ao redor era tão cinza quanto seu coração.
— Não tenho boas notícias.
Foi a voz de Dylan que cortou seus pensamentos e o fez rosnar em sua direção. Não queria ser interrompido, não daquela forma, quando estava diante do túmulo de seu pai.
— Caelan, não há tempo. Alexander está planejando invadir o Clã da Lua Negra e tomar a loba sacerdotisa como esposa.
Os dentes de Caelan trincaram, e ele acompanhou a silhueta de Dylan sair de sua frente quando começou a caminhar de volta para o pátio central, onde ficava o clã.
Alexander era o alfa dos Fúrias agora, mas antes… Antes deveria ter sido Caelan. Quando seu pai morreu e Alexander foi quem ficou ao seu lado nos últimos minutos de sua vida, tudo havia mudado para Caelan.
Seu pai havia escolhido Alexander para ser o líder dos Fúrias e não Caelan, mas aquilo ainda não fazia sentido em sua cabeça. Em sua última conversa, Malthus dissera que Caelan precisaria guiar seu clã e ter cuidado com Alexander, mas agora todo aquele discurso parecia vazio depois de sua morte.
Quando bateu com os nós dos dedos na porta do irmão, Caelan inspirou fundo e deixou que seu cheiro, o luto e toda a raiva se dissipassem. Era a última ordem de seu pai, e ele a honraria em vida, mesmo que não concordasse com as maneiras de Alexander de liderar.
— Estava esperando por você — Alexander disse quando Caelan entrou.
Estava sentado diante da lareira, de costas para Caelan, sem se dar ao trabalho de ir até o irmão. Foi Caelan quem se sentou ao seu lado, na poltrona de seda vazia que estava diante da lareira.
Era ali que costumavam ficar quando Malthus ainda era vivo. Caelan soprou a franja sobre os olhos e espantou as lembranças junto. Ele segurou uma caneca de licor, que parecia estar esperando por ele na mesinha à frente, e bebericou o líquido devagar.
O líquido queimou sua língua e desceu como um fel quente por sua garganta. Quente demais. Mas era bom, era algo que Malthus sempre compartilhava com Caelan quando estavam juntos.
— O Clã da Lua Negra é sagrado, Alexander.
— Sabia que diria isso… — Alexander o interrompeu. — Por que consideramos aquelas mulheres sagradas se apenas podemos tomá-las?
— Porque é o que Seraphire queria.
— Seraphire é uma lenda.
Caelan rosnou e apertou firme os braços da poltrona, mas a única resposta de Alexander foi começar a rir.
— Você sempre foi muito leal à deusa que nos abençoou. Mas ela desapareceu há trezentos anos. Depois disso, foram apenas casamentos abençoados por suas filhas, o Clã da Lua Negra.
Ele suspirou e passou a mão pelos cabelos antes de continuar:
— Precisamos ter controle sobre as profecias. Precisamos ter controle sobre nossos inimigos. Com as profecias, ditamos a ordem.
— Não era isso que nosso pai…
Alexander o interrompeu outra vez:
— Malthus está morto, e sua última vontade era que eu fosse o líder. E eu sou.
A última frase ribombou no espaço, e Alexander se levantou da poltrona. Caelan o seguiu.
— Sabe o que encontrei nos papéis de nosso pai?
Caelan seguiu o olhar para a antiga mesa de Malthus, onde o alfa sempre estava sentado, sem se perturbar com o mundo lá fora. Mas aquilo não existia mais, e, quando Alexander se sentou em sua cadeira, Caelan soltou um ruído com a boca.
— Melissa é uma prisioneira nas terras do Clã das Sombras. Nossa aliança foi desonrada. Melissa, nossa irmã, serve a homens que a desonraram e a tomam como escrava. É isso que quer para o nosso clã?
Aquilo fez o corpo de Caelan se retesar, a fúria subindo por sua garganta com um gosto amargo. O Clã das Sombras sempre fora seu inimigo. Agora, com a morte de Malthus, estavam começando a mostrar as garras novamente.
— Nosso pai era um covarde — Alexander cuspiu as palavras, e Caelan o encarou com a fúria que havia em seu coração.
— Em vez de ir à guerra contra a Sombra, ele preferiu fazer uma aliança.
— Uma aliança que havia sido cumprida...
— Até sua morte — Alexander rebateu com um sorriso. — Eles não querem uma aliança, Caelan, eles querem guerra. E é o que teremos.
— Malthus não queria isso...
— Nosso pai era um covarde, e eu não serei — Alexander aumentou o tom de voz, como se não existisse outra opção. Caelan cerrou os punhos ao redor do corpo, de pé em frente a Alexander.Alexander riu e então apoiou a mão sobre o ombro de Caelan, empurrando-o para trás.— Não seja idiota. Malthus estava morrendo; eu só adiantei isso. Precisava que ele escolhesse o filho certo.— Você o matou — Caelan repetiu, sentindo o gosto amargo em sua boca, os lábios se repuxando em um rosnado.Ele partiu para cima de Alexander, que o empurrou para trás sem resistência. Caelan não conseguia manter o corpo ereto e se equilibrou outra vez na poltrona da cabana.— Precisava que ele estivesse alucinando quando dissesse meu nome para se tornar o alfa do clã.Alexander deu de ombros.— Mais cedo ou mais tarde, sabia que você descobriria isso, por isso considerei que seria melhor que você também morresse se dissesse que não ficaria ao meu lado.— Alexander... — Caelan sibilou e reuniu toda a raiva em seu corpo.Todo seu corpo tremia por aquelas palavras:— Você matou nosso pai?— Eu o desafiei como seu filho para liderar este clã.— Ele estava morrendo.— E foi por isso que eu ganhei.C
Lyra acordou tremendo, o suor ensopava suas roupas no colchão em que estava deitada. Seus olhos vasculharam ao redor, como se estivesse procurando aqueles mesmos olhos de seus sonhos. Todas as noites de lua cheia, ela sonhava com um lobo, e, em todas as noites, ele trazia a escuridão ao seu lar. Amélia se revirou na cama ao lado e, quando viu que Lyra estava acordada, espreguiçou-se com um sorriso. — Pesadelos novamente? Lyra anuiu, ainda sentia o corpo todo tremer das cenas que permeavam sua mente como um lembrete do que poderia acontecer com seu clã. Com o clã que a havia acolhido depois da morte de sua família. Lyra não havia nascido sacerdotisa, foi acolhida pela Mãe daquele clã. Mesmo que todas as noites ainda se sentisse uma forasteira, seu coração se enchia de alegria por ter um lar. Amélia levantou-se da cama e estendeu a mão para Lyra, espantando um bocejo. — Vem, vamos caminhar. A lua está bonita hoje. Lyra sorriu; a amiga sempre conseguia tirar os pesadelos de sua me
O mundo parecia vago diante de seus olhos. Seus sentidos iam e voltavam, como se Caelan estivesse em um limbo. Quando Alexander virou as costas e o deixou sangrando no meio do clã, Caelan foi interceptado por seus homens e levado para um quarto escuro. Quando acordou, estava em movimento pela Floresta de Espinhos.Sua respiração estava espaçada e, mesmo nos períodos de lucidez, a dor em seu abdômen o deixava zonzo. Movimentar-se doía, respirar doía, qualquer movimento fazia seu corpo responder à dor.Havia um curativo ao redor do local onde Alexander havia enfiado a adaga, mas o sangue já encharcava as gazes brancas ao redor das costelas. Não sabia quanto tempo havia passado, se é que havia se passado algum tempo. Caelan apenas observava alguém carregá-lo, sentindo a dor em seus pulmões tornar-se mais frequente. Era difícil respirar.Quando acordou novamente, seus olhos focaram no céu distante do anoitecer. Parecia que haviam se passado eras enquanto ele estava ali, sozinho no meio da
Lyra sonhava, em todas as noites de sangue, com um lobo negro. No momento em que a lua se tornava vermelha sobre o céu, o lobo negro vinha. Cada sonho era diferente, mas, em todos eles, Lyra se lembrava da maneira como ele a tocava, de suas mãos marcando seu corpo, dela pertencendo a ele.Mas também era nas noites de sangue que ela acordava tremendo, o corpo suado, os gritos e o fogo ainda tumultuando sua mente, seus sentidos. Era como uma bênção e uma maldição.— Lyra — chamara a grande Mãe uma vez, depois do primeiro sonho que tivera — O que você viu?“Você, morta”, ela queria dizer, mas a Mãe apenas assentiu, como se soubesse o que Lyra havia sonhado. Quando a trouxe para mais perto, em um abraço, Lyra não recuou e se reconfortou no colo daquela mulher.— Seus sonhos mostram o futuro. Mas não tenha medo deles.O lobo viria, ela sabia. Mas também o fogo.Então, quando se viu diante do lobo negro, no meio da Floresta de Espinhos, Lyra já sabia quem ele era.— Quem é você? — Ele ros
— Caelan?Alguém muito distante chamava seu nome.Era aquele então seu nome, ele se lembrava.Quando seu pai disse o que significava seu nome, Caelan nunca esqueceu. “Guardião”, na língua dos lobos.Cada vez que o escutava, se lembrava do porquê havia sido escolhido, do porquê seu pai agora estava morto.— Caelan! Tornaram a chamar, e ele rosnou em resposta, mas, quando sacudiram seu ombro, entendeu onde estava.Na Floresta de Espinhos.Dylan o olhava assustado, o peito subindo e descendo como se tivesse se esforçado para acordá-lo. Seus olhos castanhos o circundavam, procurando algo em seu corpo. Os cabelos loiros estavam caídos na face, embolados, como se Dylan tivesse corrido o caminho todo até o encontrar. Caelan o encarava ainda absorto nas próprias sensações, sem conseguir discernir se aquele era outro sonho ou realidade.— Caelan, por favor. Dylan implorou e foi a primeira vez que viu seu melhor amigo implorar.Eles haviam se conhecido na primeira brincadeira de batalha em q
Lyra ouvia os gritos das sacerdotisas ao redor. Corria em direção ao nada, como se seus pés estivessem presos na terra. Não conseguia enxergar Amélia, não conseguia enxergar a Mãe e as outras garotas. O fogo tomava tudo, a fumaça cobria seu rosto, seus pulmões, fazendo-a tossir sem parar.— Amélia! — gritou em meio à cacofonia de ecos e vozes, de homens que corriam para lá e para cá. O medo pesava em seu peito, fazendo-a não se afastar um passo.As cabanas, que antes eram o orgulho da Mãe, estavam pegando fogo. Labaredas lambiam cada parte da madeira e deixavam um rastro que afundava em seu coração.Lyra viu as lágrimas tomarem seus olhos e o ódio crescer em seu coração. Os jardins antes floridos agora eram algo morto, sem vida, seco. Ela engoliu em seco duas, três vezes, tentando afastar o choro que preenchia seu peito e sua garganta. Os gritos ao redor pareciam longe demais, enquanto suas mãos tremiam, todo o seu corpo tremia. Ela não viu quando um homem se aproximou e a agarrou por
O fogo parecia engolir tudo enquanto Caelan andava no meio dos destroços daquele clã. Alexander havia cumprido a promessa de que invadiria o clã sagrado das sacerdotisas. Seu irmão não se importava com a lei de Seraphire, não se importava com nada além de si.Caelan inspirou, ignorando a raiva que borbulhava em seu corpo, que crescia a cada passo que dava ao ver a destruição que seu irmão havia causado, por pura demonstração de poder. O pior eram as mulheres feridas ao seu redor e seus homens, que não se importavam com nada, um reflexo de seu líder.Dylan e Alina vinham atrás, não havia nada em seus rostos que demonstrasse o que sentiam, apenas Caelan tentava controlar suas emoções, pois sabia que seu rosto era um espelho do que sentia.Alexander estava sentado como um rei no meio daquele fogo que consumia tudo. O s
A morte da Mãe se repetia diversas vezes em sua visão. A impotência de alcançá-la, de conseguir tirar a faca das mãos daquele macho. Lyra sentia seu estômago se embolar, o gosto de sangue e fumaça em sua boca faziam-na arfar enquanto era empurrada à frente por um dos homens de Alexander.Cada passo era dado com esforço, e seu coração estava em pedaços. Não conseguiu salvá-la, assim como em seus sonhos. A Mãe havia dito para não temê-los, mas Lyra continuava acreditando que era uma desgraça a cada um que cruzava o caminho, inclusive sua família.Todos mortos, todos, menos o seu lobo.O pensamento morreu quando o homem que a segurava a empurrou em uma cova no meio da Floresta de Espinhos. Lyra caiu com um baque surdo, o joelho batendo na terra, fazendo seus ossos reverberarem e a dor povoar sua mente.Seus dentes trincaram. Não havia mais gritos em sua garganta, apenas o pesar e o vazio do luto. Era tudo o que restava.Ela se aninhou no próprio corpo, abraçando as próprias pernas enquan