O mundo parecia vago diante de seus olhos. Seus sentidos iam e voltavam, como se Caelan estivesse em um limbo. Quando Alexander virou as costas e o deixou sangrando no meio do clã, Caelan foi interceptado por seus homens e levado para um quarto escuro. Quando acordou, estava em movimento pela Floresta de Espinhos.
Sua respiração estava espaçada e, mesmo nos períodos de lucidez, a dor em seu abdômen o deixava zonzo. Movimentar-se doía, respirar doía, qualquer movimento fazia seu corpo responder à dor.
Havia um curativo ao redor do local onde Alexander havia enfiado a adaga, mas o sangue já encharcava as gazes brancas ao redor das costelas. Não sabia quanto tempo havia passado, se é que havia se passado algum tempo. Caelan apenas observava alguém carregá-lo, sentindo a dor em seus pulmões tornar-se mais frequente. Era difícil respirar.
Quando acordou novamente, seus olhos focaram no céu distante do anoitecer. Parecia que haviam se passado eras enquanto ele estava ali, sozinho no meio daquela Floresta de Espinhos.
A floresta às suas costas lembrava agulhas que oprimiam seu corpo. Caelan estava amarrado a uma árvore de agulhas, na divisa entre a Floresta de Espinhos e o Riacho. Não havia ninguém ali. Mesmo que ele gritasse ou sucumbisse à dor, ninguém viria salvá-lo, não quando Alexander havia se encarregado de deixá-lo ali. Ele havia feito uma escolha quando o desafiou, pelo bem do clã, pelo bem de sua família, mas desafiar as ordens do irmão era uma traição, e agora Caelan pagaria o preço.
A sombra da lua perpassava pelos galhos esqueléticos e compridos, que se agitavam como se quisessem alcançar Caelan, encostado em um tronco.
Alexander era cruel. Na cabana, enquanto esperava por sua sentença, seu irmão havia dado a ele o antídoto para o wolfsbane em seu corpo, mas o corte profundo da adaga permanecia. Ele queria ver Caelan sofrer, morrer lentamente, enquanto o sangue empoçava ao seu redor.O frio começava a penetrar seu corpo. Caelan sentiu os lábios congelarem, sua respiração parecia presa em sua garganta, e respirar tornava-se doloroso. Lutava para manter os olhos abertos, a mente ativa, mas, quanto mais tentava, mais seus olhos teimavam em se fechar.
Seu coração batia rápido. Caelan podia sentir a infecção percorrer suas veias, espalhar-se por cada parte de seu corpo e queimá-lo. Ele estava queimando, por dentro e por fora. A fina camada de neve começava a esconder seu corpo, caindo lentamente, como esconderia os ossos de um lobo morto.
Porque era aquilo que ele seria para seu clã, para seu povo: um lobo morto. Um líder deposto. Um traidor. Aquele que traiu o irmão por uma liderança.Quando a noite se tornou mais clara, Caelan não ouvia mais nada, nem o farfalhar do vento ao seu redor, nem qualquer cantiga de pássaros ou animais. Havia um silêncio que segurava o ar dentro dos pulmões, como se aguardasse alguém, como…
Olhou para o céu, para o contorno negro sobre a lua, sobre a lua vermelha daquela noite. Seus olhos oscilaram, a luz tremeluziu, e ele pensou que já quase não conseguia enxergar o que era lúcido e o que não era.
Caelan fechou os olhos.
O tempo passava tão devagar que ele perdeu as contas das próprias batidas do coração, da contagem do ferimento que ia matá-lo. Arrastava-se como o wolfsbane em suas veias havia feito. Ele inspirou fundo, soltou o ar e sentiu-o gelado, como tudo ao redor.
Seu coração parecia falhar.Mas não era seu coração, era o barulho ao redor.Um galho quebrado.Uma nova batida e o cheiro opressor.Caelan sentiu seu corpo reagir como reagira ao wolfsbane.Ele abriu os olhos e viu uma loba branca à sua frente.Ele a observou se aproximar. Sua respiração estava tão fraca que o rosnado, que saiu como uma proteção, parecia mais uma lamúria.
Seus olhos se encontraram, tão verdes quanto outrora fora o prado em que ficava seu clã.
Seu cheiro era como o gelo ao redor: opressivo, opulento, e o queimava. Caelan não conseguia respirar, não conseguia sequer sorver o ar para dentro de seus pulmões. Ele estava se afogando enquanto olhava a loba à sua frente.
Quando o animal caminhou em sua direção, Caelan sentiu seu coração bater freneticamente, imitando os passos da loba. Quanto mais perto o animal estava, mais ele sentia seu cheiro, e as imagens começaram a tumultuar sua mente.Ela tinha os cabelos tão negros quanto a escuridão ao redor. Seu corpo se inclinou na direção do seu, e Caelan queria trazê-la para mais perto, deitar-se com ela e fazer mais do que apenas olhá-la. O fogo queimava dentro de seu corpo, mas era a mão da mulher em seu abdômen que o excitava.— Quem é você? — Caelan se viu sussurrar quando a loba se ajoelhou aos seus pés e tocou com o focinho exatamente o local onde havia sido perfurado pela adaga.
O ribombar de seu coração era alto em seus ouvidos, e Caelan se encolheu pelo toque, porque a dor não era nada comparada à fome que despertou em seu interior com a aproximação da loba.Caelan inspirou fundo, e o rosnado brotou do fundo de sua garganta. O cheiro dela, como o mar selvagem, como aquela floresta intocada… Ele a queria toda para si. Queria seu próprio cheiro misturado ao dela, sem conseguir distinguir qual era qual. Ele queria possuí-la.
Caelan rosnou e a loba se afastou.A pelagem branca era tão fresca quanto a neve ao redor, e, quando Caelan sentiu-a sobre seu corpo, seu coração se acalmou e deixou que ela deitasse ao seu lado. Que deitasse sobre si.Não sabia se aquele era um chamado de Seraphire ou se era apenas a infecção correndo em seu corpo, mas a desejava. Desejava tanto que ainda sentia queimar, a ânsia em seu corpo de tê-la, de estar dentro dela. Pelos clãs!Quando Caelan puxou-a e a tomou para si em seus braços, ele não sabia se ela era uma mulher ou apenas uma loba. Seus dentes se cravaram em seu pescoço, e ele sentiu a pele ceder pela mordida, o sangue brotar em seus lábios e ele marcá-la. Marcá-la como sua. Ela era sua. — Minha.Ele disse, entre os rosnados, entre como suas mãos caminhavam pelo corpo da loba, pelo corpo da mulher.O lobo em seu interior dominava suas próprias emoções, tornava-o agressivo, deixando que o desejo dominasse todo seu ato.Sua.Disse seu lobo.Minha.Repetiu mentalmente seu lobo. — Minha — disse Caelan, sobre o ouvido daquela mulher.Ela concordou com um arfar. E aquilo foi o impulso de que ele precisava para tomá-la, para torná-la sua.A dor em seu corpo havia se dissipado. Caelan sentia apenas o fogo que queimava em suas vértebras, que invadia seus pulmões e o fazia percorrer com brutalidade o corpo da mulher.
— Quem é você? — Ele rosnou outra vez.Mas não importava mais. Porque ela era sua.E então, simplesmente como havia surgido, a loba desapareceu.Caelan inspirou fundo.Uma.Duas.Três vezes.Quando a infecção tomou conta de seu corpo, ele simplesmente apagou.Lyra sonhava, em todas as noites de sangue, com um lobo negro. No momento em que a lua se tornava vermelha sobre o céu, o lobo negro vinha. Cada sonho era diferente, mas, em todos eles, Lyra se lembrava da maneira como ele a tocava, de suas mãos marcando seu corpo, dela pertencendo a ele.Mas também era nas noites de sangue que ela acordava tremendo, o corpo suado, os gritos e o fogo ainda tumultuando sua mente, seus sentidos. Era como uma bênção e uma maldição.— Lyra — chamara a grande Mãe uma vez, depois do primeiro sonho que tivera — O que você viu?“Você, morta”, ela queria dizer, mas a Mãe apenas assentiu, como se soubesse o que Lyra havia sonhado. Quando a trouxe para mais perto, em um abraço, Lyra não recuou e se reconfortou no colo daquela mulher.— Seus sonhos mostram o futuro. Mas não tenha medo deles.O lobo viria, ela sabia. Mas também o fogo.Então, quando se viu diante do lobo negro, no meio da Floresta de Espinhos, Lyra já sabia quem ele era.— Quem é você? — Ele ros
— Caelan?Alguém muito distante chamava seu nome.Era aquele então seu nome, ele se lembrava.Quando seu pai disse o que significava seu nome, Caelan nunca esqueceu. “Guardião”, na língua dos lobos.Cada vez que o escutava, se lembrava do porquê havia sido escolhido, do porquê seu pai agora estava morto.— Caelan! Tornaram a chamar, e ele rosnou em resposta, mas, quando sacudiram seu ombro, entendeu onde estava.Na Floresta de Espinhos.Dylan o olhava assustado, o peito subindo e descendo como se tivesse se esforçado para acordá-lo. Seus olhos castanhos o circundavam, procurando algo em seu corpo. Os cabelos loiros estavam caídos na face, embolados, como se Dylan tivesse corrido o caminho todo até o encontrar. Caelan o encarava ainda absorto nas próprias sensações, sem conseguir discernir se aquele era outro sonho ou realidade.— Caelan, por favor. Dylan implorou e foi a primeira vez que viu seu melhor amigo implorar.Eles haviam se conhecido na primeira brincadeira de batalha em q
Lyra ouvia os gritos das sacerdotisas ao redor. Corria em direção ao nada, como se seus pés estivessem presos na terra. Não conseguia enxergar Amélia, não conseguia enxergar a Mãe e as outras garotas. O fogo tomava tudo, a fumaça cobria seu rosto, seus pulmões, fazendo-a tossir sem parar.— Amélia! — gritou em meio à cacofonia de ecos e vozes, de homens que corriam para lá e para cá. O medo pesava em seu peito, fazendo-a não se afastar um passo.As cabanas, que antes eram o orgulho da Mãe, estavam pegando fogo. Labaredas lambiam cada parte da madeira e deixavam um rastro que afundava em seu coração.Lyra viu as lágrimas tomarem seus olhos e o ódio crescer em seu coração. Os jardins antes floridos agora eram algo morto, sem vida, seco. Ela engoliu em seco duas, três vezes, tentando afastar o choro que preenchia seu peito e sua garganta. Os gritos ao redor pareciam longe demais, enquanto suas mãos tremiam, todo o seu corpo tremia. Ela não viu quando um homem se aproximou e a agarrou por
O fogo parecia engolir tudo enquanto Caelan andava no meio dos destroços daquele clã. Alexander havia cumprido a promessa de que invadiria o clã sagrado das sacerdotisas. Seu irmão não se importava com a lei de Seraphire, não se importava com nada além de si.Caelan inspirou, ignorando a raiva que borbulhava em seu corpo, que crescia a cada passo que dava ao ver a destruição que seu irmão havia causado, por pura demonstração de poder. O pior eram as mulheres feridas ao seu redor e seus homens, que não se importavam com nada, um reflexo de seu líder.Dylan e Alina vinham atrás, não havia nada em seus rostos que demonstrasse o que sentiam, apenas Caelan tentava controlar suas emoções, pois sabia que seu rosto era um espelho do que sentia.Alexander estava sentado como um rei no meio daquele fogo que consumia tudo. O s
A morte da Mãe se repetia diversas vezes em sua visão. A impotência de alcançá-la, de conseguir tirar a faca das mãos daquele macho. Lyra sentia seu estômago se embolar, o gosto de sangue e fumaça em sua boca faziam-na arfar enquanto era empurrada à frente por um dos homens de Alexander.Cada passo era dado com esforço, e seu coração estava em pedaços. Não conseguiu salvá-la, assim como em seus sonhos. A Mãe havia dito para não temê-los, mas Lyra continuava acreditando que era uma desgraça a cada um que cruzava o caminho, inclusive sua família.Todos mortos, todos, menos o seu lobo.O pensamento morreu quando o homem que a segurava a empurrou em uma cova no meio da Floresta de Espinhos. Lyra caiu com um baque surdo, o joelho batendo na terra, fazendo seus ossos reverberarem e a dor povoar sua mente.Seus dentes trincaram. Não havia mais gritos em sua garganta, apenas o pesar e o vazio do luto. Era tudo o que restava.Ela se aninhou no próprio corpo, abraçando as próprias pernas enquan
No momento em que Caelan olhou nos olhos de sua loba, ele sabia que não conseguiria matá-la. Sabia que precisava encontrar uma saída para o que quer que fosse fazer. Ainda queria proteger sua irmã, mas também precisava protegê-la.Ela era sua.Diante de Alexander, dizer aquelas palavras, oferecê-la a seu irmão havia doído em todo o seu corpo.— Torne-a sua parceira — Caelan disse.Seu lobo rosnou e mordeu as entranhas de seu corpo por aquelas palavras. Caelan queria arrebentar a garganta de Alexander, matá-lo por sequer pensar que ela poderia ser dele.Ela era sua.
Deixar seu lar, tudo o que conhecia para trás, pesava em seu coração. Lyra não reconhecia aquela floresta como sua; sentia falta da clareira, do vento sob o rosto quando tinha a lua às suas costas.Caelan havia desaparecido quando a levou para o harém de seu irmão. Alexander não tinha apenas uma parceira, como ela havia descoberto quando chegou ao pátio cheio de mulheres, mas um harém ao qual ele havia subjugado.As mulheres de seu clã se tornaram suas. A raiva ainda borbulhava no estômago vazio de Lyra. Como aquele macho ousava torná-las suas daquela forma?Lyra foi lavada, cuidada e tratada como um troféu para ser exibido naquele pátio junto de outras mulheres. Ela se sentia exposta; a pele branca, em meio àquele vestido simples de um tom azul opaco em seu corpo, fazia seu estômago se revirar. Seus cabelos foram trançados com flores, criando a ilusão de que ela era bem-vinda ali, de que tinha escolhas. As mulheres ao redor conversavam, divertiam-se em meio ao pátio, como se ignorass
Na noite em que seu pai morreu, Caelan pensou que o mundo havia ficado cinza diante de seus olhos. Malthus era o alfa dos Fúrias, o clã de lobos do Oeste e, quando partiu, todo o seu clã chorou pelo líder que perderam. Agora, diante do túmulo de seu pai, no alto do sopé daquele morro, ele só conseguia pensar que a clareira de flores ao redor era tão cinza quanto seu coração.— Não tenho boas notícias.Foi a voz de Dylan que cortou seus pensamentos e o fez rosnar em sua direção. Não queria ser interrompido, não daquela forma, quando estava diante do túmulo de seu pai.— Caelan, não há tempo. Alexander está planejando invadir o Clã da Lua Negra e tomar a loba sacerdotisa como esposa.Os dentes de Caelan trincaram, e ele acompanhou a silhueta de Dylan sair de sua frente quando começou a caminhar de volta para o pátio central, onde ficava o clã.Alexander era o alfa dos Fúrias agora, mas antes… Antes deveria ter sido Caelan. Quando seu pai morreu e Alexander foi quem ficou ao seu lado nos