Lyra ouvia os gritos das sacerdotisas ao redor. Corria em direção ao nada, como se seus pés estivessem presos na terra. Não conseguia enxergar Amélia, não conseguia enxergar a Mãe e as outras garotas. O fogo tomava tudo, a fumaça cobria seu rosto, seus pulmões, fazendo-a tossir sem parar.
— Amélia! — gritou em meio à cacofonia de ecos e vozes, de homens que corriam para lá e para cá. O medo pesava em seu peito, fazendo-a não se afastar um passo.
As cabanas, que antes eram o orgulho da Mãe, estavam pegando fogo. Labaredas lambiam cada parte da madeira e deixavam um rastro que afundava em seu coração.
Lyra viu as lágrimas tomarem seus olhos e o ódio crescer em seu coração. Os jardins antes floridos agora eram algo morto, sem vida, seco. Ela engoliu em seco duas, três vezes, tentando afastar o choro que preenchia seu peito e sua garganta. Os gritos ao redor pareciam longe demais, enquanto suas mãos tremiam, todo o seu corpo tremia. Ela não viu quando um homem se aproximou e a agarrou por trás.
— Alexander vai gostar desta aqui — a voz dele causava asco em seu estômago. Lyra se virou para trás e o arranhou com todas as forças no rosto, fazendo com que o homem a soltasse, soltando palavrões.
Ela correu e viu seu captor correr atrás. Munindo-se de qualquer coisa que estivesse à sua frente, tinha agora nas mãos um galho seco e quebradiço, que não conseguiria protegê-la.
— Venha cá, sua vadiazinha.
O homem disse, passando a mão pelos arranhões que Lyra havia feito. Ela cuspiu em seu rosto e tentou correr outra vez, mas o homem acertou-lhe as costas, fazendo com que ela caísse no chão, encolhida. O chute veio em suas costelas, deixando-a sem ar. O barulho ao redor morreu, todo o seu corpo se dobrou em um espasmo à procura de ar, à procura de qualquer coisa para sorver. Parecia estar se afogando em si. Quando o segundo chute veio, o grito de alguém fez com que o homem parasse.
— Não a machuque!
Era a Mãe.
Lyra se encolheu, rolando na terra fria e úmida, mesmo que o fogo deixasse todo o ambiente quente. Ela se encolheu e olhou em direção à Mãe com uma tristeza profunda.
“Por favor, vá embora”, Lyra queria dizer, mas não encontrava ar suficiente nos pulmões para exprimir qualquer palavra. Não queria vê-la morrer por sua causa, não como em seus sonhos.
Quando o homem se ajoelhou e puxou Lyra pelos cabelos, fazendo-a se ajoelhar, o choro contido transbordou.
— Solte-a — implorou a Mãe.
— Essa vadia me machucou.
— Ela não fará mais nada, por favor, solte-a — pediu a Mãe novamente, e Lyra se debateu, impotente, sob as mãos daquele homem imundo.
— E o que vai me dar em troca, sacerdotisa velha?
Lyra queria esfolá-lo vivo. Como ele ousava desdenhar da anciã de seu clã? Ela se debateu inutilmente e levou um safanão no rosto, sentindo o sangue na boca pela pancada.
Mas foi a voz áspera de alguém que fez Lyra olhar na direção oposta, na direção do fogo que queimava as cabanas.
— Grande anciã, é uma honra que nos receba em sua casa.
Lyra não o reconhecia, mas podia ver o desdém em suas palavras, assim como no homem que a segurava. Ele tinha os cabelos negros curtos e arrepiados, a barba cobria seu rosto e o deixava com um aspecto de velho, mas ele não era tão mais velho assim do que o homem que a segurava; parecia estar na casa dos trinta.
— Alexander — a Mãe meneou a cabeça e fez um gesto indicando Lyra. — Peça a seu homem para soltar minha sacerdotisa…
— Ah! — Alexander a interrompeu, pensativo. — Essa sacerdotisa machucou um de meus homens, e a honra no meu clã é maior do que qualquer vida.
A Mãe se encolheu e então Lyra a viu se ajoelhar no chão sujo de cinzas, as mãos juntas em rendição.
— Por favor, Grande Alfa, não a machuque.
Lyra nunca havia visto a Mãe implorar. Ela se debateu com mais violência, sendo atirada no chão. Lyra se viu rastejando em direção à mãe, mas o homem apenas brincava com ela, puxando-a pelos cabelos de volta e mantendo-a no lugar.
— Não vou machucá-la, se você resolver cooperar — disse Alexander com um sorriso. — Onde está a loba?
Lyra estremeceu quando entendeu sobre o que Alexander estava perguntando. Ele estava procurando por ela, assim como todos os outros homens. Lyra era a culpada de o clã de sacerdotisas ter sido invadido, assim como era culpada pela morte de seus pais. Ela gritou, abriu a boca para tentar falar, mas a voz severa da Mãe a calou.
— Não há nenhuma tocada pela Deusa na geração de minhas sacerdotisas, Alfa.
Alexander então sorriu largo demais, mas não era genuíno. Lyra entendeu suas emoções, porque as vira diversas vezes em seus sonhos distorcidos. Aquele momento a sufocava em seus sonhos, e ali parecia que seu mundo oscilava devagar, torturando-a minuto a minuto pelo que seguiria.
No momento em que Alexander se aproximou da Grande Mãe, Lyra não gritou. Parecia que não havia mais nada em seu corpo, pois os gritos todos aconteceram depois de seus sonhos.
— Então, seu clã não tem serventia nenhuma para mim — Alexander disse, agarrando o rosto da Grande Mãe ajoelhada a seus pés, e a faca se cravou em seu peito, tingindo suas roupas imaculadas de um vermelho carmim pungente.
Lyra se sentia entorpecida. O sorriso da Grande Mãe foi a última coisa que viu quando o grito irrompeu de sua garganta, enquanto ela se arrastava, sentindo seu couro cabeludo doer pela força com que o homem ainda a segurava. Viu suas unhas quebrarem, seus joelhos se ralarem, mas não sentia nada. Seu coração estava vazio.
— Queimem tudo! — Alexander ordenou e então se virou para Lyra. Ela entendia suas palavras como um eco vindo de muito longe. — Transformem as sacerdotisas em escravas. E então parou bem ao lado de Lyra, e sua voz era escorregadia em seus ouvidos. — Enterrem-na viva por desafiar um de meus homens.
O fogo parecia engolir tudo enquanto Caelan andava no meio dos destroços daquele clã. Alexander havia cumprido a promessa de que invadiria o clã sagrado das sacerdotisas. Seu irmão não se importava com a lei de Seraphire, não se importava com nada além de si.Caelan inspirou, ignorando a raiva que borbulhava em seu corpo, que crescia a cada passo que dava ao ver a destruição que seu irmão havia causado, por pura demonstração de poder. O pior eram as mulheres feridas ao seu redor e seus homens, que não se importavam com nada, um reflexo de seu líder.Dylan e Alina vinham atrás, não havia nada em seus rostos que demonstrasse o que sentiam, apenas Caelan tentava controlar suas emoções, pois sabia que seu rosto era um espelho do que sentia.Alexander estava sentado como um rei no meio daquele fogo que consumia tudo. O s
A morte da Mãe se repetia diversas vezes em sua visão. A impotência de alcançá-la, de conseguir tirar a faca das mãos daquele macho. Lyra sentia seu estômago se embolar, o gosto de sangue e fumaça em sua boca faziam-na arfar enquanto era empurrada à frente por um dos homens de Alexander.Cada passo era dado com esforço, e seu coração estava em pedaços. Não conseguiu salvá-la, assim como em seus sonhos. A Mãe havia dito para não temê-los, mas Lyra continuava acreditando que era uma desgraça a cada um que cruzava o caminho, inclusive sua família.Todos mortos, todos, menos o seu lobo.O pensamento morreu quando o homem que a segurava a empurrou em uma cova no meio da Floresta de Espinhos. Lyra caiu com um baque surdo, o joelho batendo na terra, fazendo seus ossos reverberarem e a dor povoar sua mente.Seus dentes trincaram. Não havia mais gritos em sua garganta, apenas o pesar e o vazio do luto. Era tudo o que restava.Ela se aninhou no próprio corpo, abraçando as próprias pernas enquan
No momento em que Caelan olhou nos olhos de sua loba, ele sabia que não conseguiria matá-la. Sabia que precisava encontrar uma saída para o que quer que fosse fazer. Ainda queria proteger sua irmã, mas também precisava protegê-la.Ela era sua.Diante de Alexander, dizer aquelas palavras, oferecê-la a seu irmão havia doído em todo o seu corpo.— Torne-a sua parceira — Caelan disse.Seu lobo rosnou e mordeu as entranhas de seu corpo por aquelas palavras. Caelan queria arrebentar a garganta de Alexander, matá-lo por sequer pensar que ela poderia ser dele.Ela era sua.
Deixar seu lar, tudo o que conhecia para trás, pesava em seu coração. Lyra não reconhecia aquela floresta como sua; sentia falta da clareira, do vento sob o rosto quando tinha a lua às suas costas.Caelan havia desaparecido quando a levou para o harém de seu irmão. Alexander não tinha apenas uma parceira, como ela havia descoberto quando chegou ao pátio cheio de mulheres, mas um harém ao qual ele havia subjugado.As mulheres de seu clã se tornaram suas. A raiva ainda borbulhava no estômago vazio de Lyra. Como aquele macho ousava torná-las suas daquela forma?Lyra foi lavada, cuidada e tratada como um troféu para ser exibido naquele pátio junto de outras mulheres. Ela se sentia exposta; a pele branca, em meio àquele vestido simples de um tom azul opaco em seu corpo, fazia seu estômago se revirar. Seus cabelos foram trançados com flores, criando a ilusão de que ela era bem-vinda ali, de que tinha escolhas. As mulheres ao redor conversavam, divertiam-se em meio ao pátio, como se ignorass
Na noite em que seu pai morreu, Caelan pensou que o mundo havia ficado cinza diante de seus olhos. Malthus era o alfa dos Fúrias, o clã de lobos do Oeste e, quando partiu, todo o seu clã chorou pelo líder que perderam. Agora, diante do túmulo de seu pai, no alto do sopé daquele morro, ele só conseguia pensar que a clareira de flores ao redor era tão cinza quanto seu coração.— Não tenho boas notícias.Foi a voz de Dylan que cortou seus pensamentos e o fez rosnar em sua direção. Não queria ser interrompido, não daquela forma, quando estava diante do túmulo de seu pai.— Caelan, não há tempo. Alexander está planejando invadir o Clã da Lua Negra e tomar a loba sacerdotisa como esposa.Os dentes de Caelan trincaram, e ele acompanhou a silhueta de Dylan sair de sua frente quando começou a caminhar de volta para o pátio central, onde ficava o clã.Alexander era o alfa dos Fúrias agora, mas antes… Antes deveria ter sido Caelan. Quando seu pai morreu e Alexander foi quem ficou ao seu lado nos
Alexander riu e então apoiou a mão sobre o ombro de Caelan, empurrando-o para trás.— Não seja idiota. Malthus estava morrendo; eu só adiantei isso. Precisava que ele escolhesse o filho certo.— Você o matou — Caelan repetiu, sentindo o gosto amargo em sua boca, os lábios se repuxando em um rosnado.Ele partiu para cima de Alexander, que o empurrou para trás sem resistência. Caelan não conseguia manter o corpo ereto e se equilibrou outra vez na poltrona da cabana.— Precisava que ele estivesse alucinando quando dissesse meu nome para se tornar o alfa do clã.Alexander deu de ombros.— Mais cedo ou mais tarde, sabia que você descobriria isso, por isso considerei que seria melhor que você também morresse se dissesse que não ficaria ao meu lado.— Alexander... — Caelan sibilou e reuniu toda a raiva em seu corpo.Todo seu corpo tremia por aquelas palavras:— Você matou nosso pai?— Eu o desafiei como seu filho para liderar este clã.— Ele estava morrendo.— E foi por isso que eu ganhei.C
Lyra acordou tremendo, o suor ensopava suas roupas no colchão em que estava deitada. Seus olhos vasculharam ao redor, como se estivesse procurando aqueles mesmos olhos de seus sonhos. Todas as noites de lua cheia, ela sonhava com um lobo, e, em todas as noites, ele trazia a escuridão ao seu lar. Amélia se revirou na cama ao lado e, quando viu que Lyra estava acordada, espreguiçou-se com um sorriso. — Pesadelos novamente? Lyra anuiu, ainda sentia o corpo todo tremer das cenas que permeavam sua mente como um lembrete do que poderia acontecer com seu clã. Com o clã que a havia acolhido depois da morte de sua família. Lyra não havia nascido sacerdotisa, foi acolhida pela Mãe daquele clã. Mesmo que todas as noites ainda se sentisse uma forasteira, seu coração se enchia de alegria por ter um lar. Amélia levantou-se da cama e estendeu a mão para Lyra, espantando um bocejo. — Vem, vamos caminhar. A lua está bonita hoje. Lyra sorriu; a amiga sempre conseguia tirar os pesadelos de sua me
O mundo parecia vago diante de seus olhos. Seus sentidos iam e voltavam, como se Caelan estivesse em um limbo. Quando Alexander virou as costas e o deixou sangrando no meio do clã, Caelan foi interceptado por seus homens e levado para um quarto escuro. Quando acordou, estava em movimento pela Floresta de Espinhos.Sua respiração estava espaçada e, mesmo nos períodos de lucidez, a dor em seu abdômen o deixava zonzo. Movimentar-se doía, respirar doía, qualquer movimento fazia seu corpo responder à dor.Havia um curativo ao redor do local onde Alexander havia enfiado a adaga, mas o sangue já encharcava as gazes brancas ao redor das costelas. Não sabia quanto tempo havia passado, se é que havia se passado algum tempo. Caelan apenas observava alguém carregá-lo, sentindo a dor em seus pulmões tornar-se mais frequente. Era difícil respirar.Quando acordou novamente, seus olhos focaram no céu distante do anoitecer. Parecia que haviam se passado eras enquanto ele estava ali, sozinho no meio da