Lyra sonhava, em todas as noites de sangue, com um lobo negro.
No momento em que a lua se tornava vermelha sobre o céu, o lobo negro vinha. Cada sonho era diferente, mas, em todos eles, Lyra se lembrava da maneira como ele a tocava, de suas mãos marcando seu corpo, dela pertencendo a ele.Mas também era nas noites de sangue que ela acordava tremendo, o corpo suado, os gritos e o fogo ainda tumultuando sua mente, seus sentidos. Era como uma bênção e uma maldição.
— Lyra — chamara a grande Mãe uma vez, depois do primeiro sonho que tivera — O que você viu?
“Você, morta”, ela queria dizer, mas a Mãe apenas assentiu, como se soubesse o que Lyra havia sonhado. Quando a trouxe para mais perto, em um abraço, Lyra não recuou e se reconfortou no colo daquela mulher.
— Seus sonhos mostram o futuro. Mas não tenha medo deles.
O lobo viria, ela sabia.
Mas também o fogo.Então, quando se viu diante do lobo negro, no meio da Floresta de Espinhos, Lyra já sabia quem ele era.
— Quem é você? — Ele rosnou, e Lyra sentiu seu âmago se contorcer com as lembranças dos sonhos.
Ela se abaixou até sua altura e tocou seu rosto.
O lobo negro desapareceu.
E, no lugar dele, estava um homem.
O coração de Lyra parecia bater tão rápido quanto o de um beija-flor.
Os olhos dele tiravam o ar de seus pulmões, deixando-a trôpega e sem fôlego. Mas foi a sensação de suas mãos, quando ele a puxou para si, que a fez arfar.
Ele tinha os cabelos negros caídos sobre os ombros. O queixo angular e selvagem, assim como os lábios cerrados em uma expressão severa. Para Lyra, era como se estivesse sendo caçada a cada movimento que fazia — e, lá dentro, ela queria ser presa.
Seraphire, a deusa dos lobos, havia abençoado, mas também amaldiçoado Lyra. Ela era a tocada pela deusa, aquela que escolheria o líder das alcateias, aquele que seria o rei.
Lyra não sabia se aquele homem, se o lobo negro, seria seu rei. Mas, naquele momento, queria que ele fosse o rei de seu mundo.
Suas mãos tremiam enquanto percorriam o ferimento em um ponto abaixo das costelas do homem. O sangue manchou seus dedos, e o arfar dele, ao toque, indicava que não restava muito tempo.
Era aquela escolha de que seus sonhos sempre falavam?
“Você não precisa ter medo de seus sonhos, Lyra”, dissera a grande Mãe.
Mas Lyra não compreendia suas próprias escolhas. Quando sua família morreu, não teve alternativa senão seguir para o clã das sacerdotisas. Quando a deusa a tocou, não lhe restou opção senão aprender sobre seu dom. Mas ali, por uma fração de segundo, viu-se diante da necessidade de decidir.
Lyra tocou seu rosto outra vez, e o homem apenas inspirou fundo, como se o toque dela o queimasse. Sentou-se sobre o colo dele e, entre suas pernas, sentiu a rigidez do membro — como o lobo negro em seus sonhos.
Arfou, deslizando os dedos sobre os próprios pontos de estímulo, aqueles que a faziam ansiar por mais.
Queria tê-lo por completo dentro de si.
Lyra o queria.
E o lobo negro respondeu ao seu chamado.
Tocou-a primeiro sem permissão, mas, depois, já não havia mais o que permitir, porque ele sabia que ela lhe pertencia.
Lyra o viu se inclinar, tocar os lábios em seu pescoço e mordê-la.
O roçar de seus lábios era suave, mas a mordida, selvagem, cruel, primitiva. Aquilo trouxe lembranças de seus sonhos, da dor que a despertava, da ardência em seu baixo ventre.
Ela gritou, a dor preenchendo seu corpo, deixando-a zonza, deixando-a sedenta. Queria mais.
— Você é minha.
Ele rosnou em seu ouvido, e ela assentiu.
— Sou sua — disse, entre arfadas, sentindo a pressão dos dentes dele ainda cravados em seu pescoço.
O lobo negro a marcara. Como sua.
Lyra sonhava todas as noites de sangue com ele.
Com seu lobo negro.“Você é minha”, ele dizia, e Lyra concordava.
Ela era dele, nos sonhos.
Agora, de frente para aqueles olhos azuis selvagens, Lyra era dele de todas as formas.
Mas ela sabia: depois do lobo negro, sempre vinha o fogo.
E quando Amelia gritou, Lyra se desvencilhou dele e correu em direção à mata, ao encontro das chamas que subiam em círculos para o céu, ocultando a própria lua.
— Caelan?Alguém muito distante chamava seu nome.Era aquele então seu nome, ele se lembrava.Quando seu pai disse o que significava seu nome, Caelan nunca esqueceu. “Guardião”, na língua dos lobos.Cada vez que o escutava, se lembrava do porquê havia sido escolhido, do porquê seu pai agora estava morto.— Caelan! Tornaram a chamar, e ele rosnou em resposta, mas, quando sacudiram seu ombro, entendeu onde estava.Na Floresta de Espinhos.Dylan o olhava assustado, o peito subindo e descendo como se tivesse se esforçado para acordá-lo. Seus olhos castanhos o circundavam, procurando algo em seu corpo. Os cabelos loiros estavam caídos na face, embolados, como se Dylan tivesse corrido o caminho todo até o encontrar. Caelan o encarava ainda absorto nas próprias sensações, sem conseguir discernir se aquele era outro sonho ou realidade.— Caelan, por favor. Dylan implorou e foi a primeira vez que viu seu melhor amigo implorar.Eles haviam se conhecido na primeira brincadeira de batalha em q
Lyra ouvia os gritos das sacerdotisas ao redor. Corria em direção ao nada, como se seus pés estivessem presos na terra. Não conseguia enxergar Amélia, não conseguia enxergar a Mãe e as outras garotas. O fogo tomava tudo, a fumaça cobria seu rosto, seus pulmões, fazendo-a tossir sem parar.— Amélia! — gritou em meio à cacofonia de ecos e vozes, de homens que corriam para lá e para cá. O medo pesava em seu peito, fazendo-a não se afastar um passo.As cabanas, que antes eram o orgulho da Mãe, estavam pegando fogo. Labaredas lambiam cada parte da madeira e deixavam um rastro que afundava em seu coração.Lyra viu as lágrimas tomarem seus olhos e o ódio crescer em seu coração. Os jardins antes floridos agora eram algo morto, sem vida, seco. Ela engoliu em seco duas, três vezes, tentando afastar o choro que preenchia seu peito e sua garganta. Os gritos ao redor pareciam longe demais, enquanto suas mãos tremiam, todo o seu corpo tremia. Ela não viu quando um homem se aproximou e a agarrou por
O fogo parecia engolir tudo enquanto Caelan andava no meio dos destroços daquele clã. Alexander havia cumprido a promessa de que invadiria o clã sagrado das sacerdotisas. Seu irmão não se importava com a lei de Seraphire, não se importava com nada além de si.Caelan inspirou, ignorando a raiva que borbulhava em seu corpo, que crescia a cada passo que dava ao ver a destruição que seu irmão havia causado, por pura demonstração de poder. O pior eram as mulheres feridas ao seu redor e seus homens, que não se importavam com nada, um reflexo de seu líder.Dylan e Alina vinham atrás, não havia nada em seus rostos que demonstrasse o que sentiam, apenas Caelan tentava controlar suas emoções, pois sabia que seu rosto era um espelho do que sentia.Alexander estava sentado como um rei no meio daquele fogo que consumia tudo. O s
A morte da Mãe se repetia diversas vezes em sua visão. A impotência de alcançá-la, de conseguir tirar a faca das mãos daquele macho. Lyra sentia seu estômago se embolar, o gosto de sangue e fumaça em sua boca faziam-na arfar enquanto era empurrada à frente por um dos homens de Alexander.Cada passo era dado com esforço, e seu coração estava em pedaços. Não conseguiu salvá-la, assim como em seus sonhos. A Mãe havia dito para não temê-los, mas Lyra continuava acreditando que era uma desgraça a cada um que cruzava o caminho, inclusive sua família.Todos mortos, todos, menos o seu lobo.O pensamento morreu quando o homem que a segurava a empurrou em uma cova no meio da Floresta de Espinhos. Lyra caiu com um baque surdo, o joelho batendo na terra, fazendo seus ossos reverberarem e a dor povoar sua mente.Seus dentes trincaram. Não havia mais gritos em sua garganta, apenas o pesar e o vazio do luto. Era tudo o que restava.Ela se aninhou no próprio corpo, abraçando as próprias pernas enquan
No momento em que Caelan olhou nos olhos de sua loba, ele sabia que não conseguiria matá-la. Sabia que precisava encontrar uma saída para o que quer que fosse fazer. Ainda queria proteger sua irmã, mas também precisava protegê-la.Ela era sua.Diante de Alexander, dizer aquelas palavras, oferecê-la a seu irmão havia doído em todo o seu corpo.— Torne-a sua parceira — Caelan disse.Seu lobo rosnou e mordeu as entranhas de seu corpo por aquelas palavras. Caelan queria arrebentar a garganta de Alexander, matá-lo por sequer pensar que ela poderia ser dele.Ela era sua.
Deixar seu lar, tudo o que conhecia para trás, pesava em seu coração. Lyra não reconhecia aquela floresta como sua; sentia falta da clareira, do vento sob o rosto quando tinha a lua às suas costas.Caelan havia desaparecido quando a levou para o harém de seu irmão. Alexander não tinha apenas uma parceira, como ela havia descoberto quando chegou ao pátio cheio de mulheres, mas um harém ao qual ele havia subjugado.As mulheres de seu clã se tornaram suas. A raiva ainda borbulhava no estômago vazio de Lyra. Como aquele macho ousava torná-las suas daquela forma?Lyra foi lavada, cuidada e tratada como um troféu para ser exibido naquele pátio junto de outras mulheres. Ela se sentia exposta; a pele branca, em meio àquele vestido simples de um tom azul opaco em seu corpo, fazia seu estômago se revirar. Seus cabelos foram trançados com flores, criando a ilusão de que ela era bem-vinda ali, de que tinha escolhas. As mulheres ao redor conversavam, divertiam-se em meio ao pátio, como se ignorass
Na noite em que seu pai morreu, Caelan pensou que o mundo havia ficado cinza diante de seus olhos. Malthus era o alfa dos Fúrias, o clã de lobos do Oeste e, quando partiu, todo o seu clã chorou pelo líder que perderam. Agora, diante do túmulo de seu pai, no alto do sopé daquele morro, ele só conseguia pensar que a clareira de flores ao redor era tão cinza quanto seu coração.— Não tenho boas notícias.Foi a voz de Dylan que cortou seus pensamentos e o fez rosnar em sua direção. Não queria ser interrompido, não daquela forma, quando estava diante do túmulo de seu pai.— Caelan, não há tempo. Alexander está planejando invadir o Clã da Lua Negra e tomar a loba sacerdotisa como esposa.Os dentes de Caelan trincaram, e ele acompanhou a silhueta de Dylan sair de sua frente quando começou a caminhar de volta para o pátio central, onde ficava o clã.Alexander era o alfa dos Fúrias agora, mas antes… Antes deveria ter sido Caelan. Quando seu pai morreu e Alexander foi quem ficou ao seu lado nos
Alexander riu e então apoiou a mão sobre o ombro de Caelan, empurrando-o para trás.— Não seja idiota. Malthus estava morrendo; eu só adiantei isso. Precisava que ele escolhesse o filho certo.— Você o matou — Caelan repetiu, sentindo o gosto amargo em sua boca, os lábios se repuxando em um rosnado.Ele partiu para cima de Alexander, que o empurrou para trás sem resistência. Caelan não conseguia manter o corpo ereto e se equilibrou outra vez na poltrona da cabana.— Precisava que ele estivesse alucinando quando dissesse meu nome para se tornar o alfa do clã.Alexander deu de ombros.— Mais cedo ou mais tarde, sabia que você descobriria isso, por isso considerei que seria melhor que você também morresse se dissesse que não ficaria ao meu lado.— Alexander... — Caelan sibilou e reuniu toda a raiva em seu corpo.Todo seu corpo tremia por aquelas palavras:— Você matou nosso pai?— Eu o desafiei como seu filho para liderar este clã.— Ele estava morrendo.— E foi por isso que eu ganhei.C