Endlessland: Rainha das Cinzas
Endlessland: Rainha das Cinzas
Por: vic
Prólogo

Dedicatória

Para todos aqueles que, assim como eu,

não sabem por onde começar,

apenas comecem.

6 anos antes...

— Amara Fleurwind, seus crimes serão punidos como manda a lei de Illinea!

A rainha das fadas grita, a voz carregada pelo vento chega aos ouvidos de todos, exceto aos meus. Talvez, lá no fundo eu estivesse ouvindo algo que se assemelhasse a palavras engolidas pela água, mas eu sequer consigo distinguir o tom feroz e sádico dela dos vários em minha própria cabeça. Vozes agressivas e depois suaves, vorazes e suplicantes que vão e vem junto a cada passo que me obrigam a caminhar.

— Que sua sentença sane o senso de justiça requisitado por todos. – A coroa dourada reluziu sob a luz do sol poente. Os cabelos negros como as trevas barram qualquer faísca solar que tenta penetrá-los e o escarlate do vestido fere a vista, impedindo que qualquer um a olhe por muito tempo. O trono fora trazido para fora do Salão Dourado e agora descansa sobre a grama entre duas amoreiras floridas, ouro frio e flores e vinhas se embrenhando nos adornos. O gracioso corpo de Endaria acomodado e os cotovelos delicados e finos apoiados, tediosos, nos braços da cadeira real. — Que a luas guiem sua alma e que a natureza a perdoe!

Ao lado do trono está sua guardiã. Ruiva, inquebrável, letal. A princesa de ferro de Endaria. Muitos se deixam enganar por sua beleza e juventude cometendo o erro grave de subestima-la. Ela não seria a guardiã de uma rainha se não fosse a melhor. E Afaya Rivalv é a melhor, a mais rápida, a mais esperta e a mais bonita que qualquer soldado dourado das terras ao sul de Illinea. Dona da ironia de um título, uma vez que, ferro é mortal para as fadas e uma guerreira de tal metal, se faz invencível. Contudo, Afaya jamais será princesa. Não tem sangue real e não pode usar a coroa. Princesa apenas por ser o braço direito de Endaria, nas más línguas, sua vadia.

Nossos rostos se cruzam por um instante. Inabalável. Nada, nem um piscar dos cílios acobreados sombreando as bochechas delicadas e marcadas. Gelo e fúria e poder. Uma fortaleza impenetrável, talvez, feita de ferro como todos acreditam. Afaya é diferente das demais feéricas. Ela nasceu sem poder voar, as asas defeituosas e frágeis demais para aguentar vento e chuva e calor e geadas. Há desprezo nos olhos dela, mas também há certo respeito. Sinto-a se forçar para dentro de minha mente, ultrapassar meu escudo despedaçado como alguém atravessa a fina película entre o ar e a água para mergulhar o dedo.

Eu escolheria o mesmo destino. Diz ela, a voz destoando daquelas ecoando na imaginação. A morte é justa. Melhor morrer a ser uma covarde exilada. Então, Afaya pisca, engole e empina o queixo fingindo arrogância. A conversa acabou.

Não sei o que é real e o que é apenas memória. Memória recente e afiada colmo uma adaga de ferro que fere minha alma sem um pingo de clemência. Alguns chamam de arrependimento, mas eu chamo de culpa. A diferença é que a culpa te consome e te destrói, reduzindo sua segurança, sua força e sua vontade de lutar em medo, covardia e fraqueza. O que posso fazer quando se é verdade, quando eu mereci tudo o que está acontecendo comigo agora mesmo? Sou culpada pela morte dos meus pais, pelo banho de sangue que tirou a vida de centenas de feéricos, por deixar minha irmã sozinha... Por amar. Eu não segurei o ferro que os matou, eu não tinha um exército ambicioso e cruel... Como se houvesse diferença. Posso não ter matado, mas os entreguei para a morte, para meu assassino. Como se houvesse diferença.

As pedras ásperas machucam meus pés descalços e o vento cortante arranha minha pele exposta e embala meu corpo para frente, para meu destino final. Inclino a cabeça para trás, absorvendo cada detalhe de Illinea, quando sei que nunca a verei de novo. Os tons de azul escuro se mesclando ao rosa, laranja e amarelo do pôr do sol, se fundindo, contornando as quatro grandes luas e estrelas acima das terras do reino – grandes esferas, outras pela metade, flutuando em todo seu esplendor. Volto a visão para a cadeia de montanhas irregulares e altas que nos cerca, os picos tocando as nuvens brancas e suaves, desaparecendo em certa altura.

O aroma doce e fresco do ar se expande em meus pulmões e aproveito a sensação da última vez de senti-lo. Por fim, olho para frente. O precipício e as águas salgadas do oceano escuro que, ao horizonte parece tocar o céu e se tornar um único e profundo infinito azul. As estrelas sumiram e as luas serão as testemunhas de que a lei funciona no reino das fadas. Quando se ama um mortal, você morre. Simples assim.

Mãos firmes em meus ombros me empurram para frente e as correntes de ferro ferem meus pulsos, queimando-os e criando círculos rosados, dolorosos há horas, mas que já não me incomodam mais. A dor torna meus nervos dormentes e desejo poder senti-la a cada segundo, pois, ela me faz esquecer do que fiz e cala as vozes mentais, apagando as expressões amedrontadas de meus pais e a falsa ternura do homem que jurou meu amava e manter meu segredo. Eu o deixei entrar. Confiei em um humano, um mortal qualquer. Fui tola e mereço isso.

Mereci ter minhas assas arrancadas e mereço as cicatrizes latejantes em minhas costas. Sou culpada e gostaria de ter mais que um trapo de seda corroída e esvoaçante – um dia fora um belo vestido branco perolado – cobrindo meu corpo para esconder a vergonha, o medo e os olhares críticos e opressores que recebo de todos os lados. Minha consciência diz que a rainha mantém os olhos ávidos – grandes esferas negras envoltas por um anel de ouro liquido – grudados em mim e nos guardas de armadura dourada que com certeza sorriem ao ver a punição sendo aplicada como deve. As fadas evitam cometer crimes e são quase nulos os julgamentos no reino. Sem muita emoção para os soldados sedentos, não resta muita escolha para Endaria sem ser fazer de cada raro criminoso um evento.

Por isso todos os feéricos estão reunidos hoje, estão aqui para me ver. Porém, nenhum deles parece feliz ou ansioso como deveriam ao ver alguém sofrer e implorar pela própria morte como é da natureza das fadas. Algumas faces tristes por terem perdido um ente querido, outras, enraivecidas e uma única inexpressiva assistia ao longe.

Duvessa me encara e seu olhar envia arrepios por toda minha espinha. Quero poder dizer que sinto muito, quero poder voltar e consertar o que quebrei. Quero poder fazê-la me perdoar. Minha irmã não é do tipo que se deixa saber o que passa por sua mente. A expressão inerte, os olhos misteriosos – azuis como os meus, quase violetas de dia e completamente roxos em noites de muita magia – os lábios imóveis e as bochechas ressaltadas como as de mamãe. Fria e indiferente.

Frente a frente, os guardas que me arrastam deixam que eu pare por meros segundos, o suficiente para olhar para minha irmã uma última vez. As palavras ficam presas na garganta, atrás de um bolo de lágrimas e uma ou duas escorrem por minhas bochechas. Fecho os lábios entreabertos que sequer dizem algo e permito que meus olhos falem, embaçados pelas gotas salgadas. A postura invejável e a beleza fria e feérica de Duvessa intimida qualquer um, mortal ou não. Aquela não é Duvessa, só está machucada e quebrada em mil pedacinhos. Pedacinhos que eu estraçalhei.

Eu sinto muito.

Ela estica a mão e toca meu cabelo naturalmente azulado, claro e macio e longo, desliza os dedos por todo seu cumprimento até os pulsos e as algemas. Livra-se das pontas enroladas e segura minha mão. Acompanho seu movimento até que minha irmã segura meu olhar com tanta força que posso sentir as pequenas agulhas de ódio perfurando minha alma. E mais ninguém vê o que eu vejo ali, nenhuma fada enxerga por trás do muro que Duvessa ergue ao seu redor. Ela nunca fora doce ou gentil, mas também jamais fora má ou cruel para além dos padrões feéricos.

— Azul sempre foi sua cor. – Sua voz congelou meus ossos e suas unhas cravaram em meu pulso perto dos círculos causados pelas algemas e pelo ferro. A dor me atinge de novo, mas aguento. Tento soltar seus dedos de minha pele com a mão livre e falho miseravelmente, conseguindo apenas agarrar firme o veludo das mangas do vestido longo, justo e negro dela.

Antes os murmúrios me cercavam, agora, o silêncio mortal paira e todos assistem a cena ansiosos para o fim, mesmo que seja previsível. O vento diminui e um raio ilumina o céu, seguido de um trovão ressoante. Lá embaixo, posso ouvir as ondas quebrando nas pedras da encosta com toda a força e a agressividade que o oceano esconde por trás da calmaria. Duvessa ainda me perfura com o olhar quando entreabre os lábios esperando um segundo antes de disparar palavras dolorosas e cheias de rancor.

— Agora vai se afundar nele.

Ela sorri brevemente e me empurra para a beirada do precipício. Minhas forças não bastam para me manter em pé e os joelhos falham. Solto o vestido dela e agarro o colar de nossa mãe em seu pescoço longo e fino, que arrebenta quando meus pés deixam a superfície, eliminando qualquer chance de me segurar em alguma coisa que impeça minha queda.

O grito que escapa de minha boca é embalado pelo mesmo vento que me puxa para baixo, para as pedras e para a água escura. O oceano me acolhe e inunda meus pulmões. A escuridão azul e gélida me leva tão brevemente quanto um coração leva para se apaixonar, quanto um coração leva para parar de bater.

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