Devolvo ambos os copos de cristal onde estavam antes, vou para as gavetas da mesa novamente tiro de lá um isqueiro. Abro a cristaleira para tirar de dentro um dos incensos de alecrim e arruda, o apoio no incensário estreito de madeira com pequenos sóis pintados em amarelo e o acendo. Assopro a singela chama na ponta do palito, ciente de que o mortal me observa. O aroma começa a purificar o ar quando guardo o isqueiro na gaveta. Antigamente, o acenderia com apenas um desejo de acendê-lo, um olhar, um pensamento e agora preciso de fogo de verdade, algo que crie as chamas para mim.
— Eu senti você. – Apoio as mãos na mesa, inclinando o corpo um pouco para frente. — Na praça. Em um minuto tudo estava limpo e eufórico, mas para uma sexta a tarde é normal. No minuto seguinte foi como se todas as energias boas fossem sugadas de dentro de mim, uma esponja. Soube que havia algo errado quando vi uma vadia loira conduzindo um pobre garoto para um beco nojento o bastante para ninguém se aventurar por ele. O lugar ideal para uma refeição deliciosa.
O loiro fica em pé, perambula pela sala até o aparador com as bebidas e passeia os dedos pelo móvel.
— É uma bruxa ou algo do tipo? – Ele franze a testa ao virar a cabeça por cima do ombro. — Quer dizer, as cartomantes do centro são uma atração turística ótima para a cidade, mas ninguém acredita muito nelas, não que são mágicas ou sabem mesmo ler o futuro. A maioria é uma farsa. – Fico em silêncio e o falatório segue. — Confesso que depois de hoje, acho que devo ser menos cético. – Um sorriso breve e irônico surge nos lábios e ele se vira, encostando as costas no aparador. — Primeiro me salva, porque sabia que algo ruim me seguia e depois faz – Um desvio de olhar para a mistura seca no antebraço. — Seja lá o que for isso.
Tento conter o sorriso, falhando miseravelmente. Mortais não são criativos.
— Todas as mulheres são bruxas para vocês? – Questiono o estereótipo que humanos tem sobre magia e o pego desprevenido, calando-o por instantes banhados em alecrim, arruda e o cheiro metálico de ferro do sangue. — Quem me dera! – Lamento contornando a mesa e sentando na quina, uma das pernas balançando no ar e a outra apoiada no chão. Há gotinhas vermelhas nos saltos bege envernizados. — Sou viajada, só isso. Sei sobre assuntos que muitos fazem questão de esquecer.
Posso entrar em detalhes sobre como as bruxas e a magia foram esquecidas após a caça às bruxas e a instituição da fé cristã e demais outras que condenaram um povo a morte e ao esquecimento, mas não entro.
Pela primeira vez, o observo na tentativa de desvendar mais sobre o garoto que eu salvei sem ter que questioná-lo sobre coisas que ele provavelmente não quer falar. Jovem, talvez uns vinte anos – dezenove? Introvertido pelos fones de ouvido pendurados no pescoço ocultando o mundo a sua volta – eles o teriam matado por terem desviado a atenção ao redor – Se estivesse sem eles, teria notado a mulher alta e bonita e nada suspeita o perseguindo e haveria uma chance de não estarmos aqui e agora. Roupas de moletom, quentes demais para uma tarde ensolarada, apesar de estarmos no quase outono. Além, de parecer mais intrigado com meus conhecimentos medicinais do que com a própria quase morte por um ser sobrenatural.
Jovem, bonito e avoado. Bela combinação desastrosa.
Percebo que estamos há dois minutos nos encarando e tentando ler o que pensamos. Pisco quebrando a ligação e pulo da mesa.
— Sinto muito, mas não pode ficar aqui. – Apago o incenso e começo a juntar os papéis espalhados pelo chão. — Precisa ir.
— E se aquela coisa voltar? – O mortal recolhe as folhas que faltam e me estende elas.
— Vampiros não costumam voltar para uma presa de quem já beberam, então ela não vai aparecer de novo. Você vai sobreviver. – Junto o monte de papel desordenado perto das canetas e guardo as mesmas no pote delas, segurando uma. Puxo a mão dele e anoto meu telefone na palma. — Vai precisar trocar o curativo durante três dias, mas meu estoque das ervas que eu usei acabou. Volte amanhã cedo e te trago um pouco mais. Se precisar de ajuda, e por favor não precise, me avise. – Devolvo a caneta com as outras e o olho para confirmar se ele entendeu. Acho que sim, mesmo enquanto tenta absorver tudo o que eu disse.
— As pessoas costumam me dizer o nome delas antes de flertar comigo. – Ele repuxa o canto do lábio direito exibindo uma dobrinha fofa na bochecha.
— Eu não flerto com ninguém. – Respondo devolvendo a caneta no porta canetas.
— Duvido. – Meu olhar é preso pelo dele e sorrio com desdém para a sobrancelha arqueada e loira. — Nunca?
— Você quer que eu te deixe em algum lugar ou pode voltar sozinho para casa sem virar drink de vampiro? – Coço as têmporas e elas latejam seguidas das costas. Tem algo errado com as cicatrizes e mal posso esperar para me olhar no espelho e descobrir. Por mais que eu deteste a ideia de descobrir esse tipo de coisa. Suspiro arrependida pela brincadeira de mal gosto. Muito cedo, Amara. — Foi mal.
— Não se incomode, acho que consigo chegar até lá sem ser atacado por uma daquelas coisas de novo. – O humano sorri dando de ombros. Fico surpresa com as palavras dele, mas não demonstro. Quem faria uma piada depois de ter passado por tudo isso?
Passamos pela cortina de miçangas e o garoto – que eu ainda sequer sabia o nome e talvez não quisesse saber, quanto menos soubesse sobre ele melhor – olha ao redor. Flores, velas e bichos de pelúcia. Nada a mal para uma floricultura bem frequentada no centro de Nova Orleans. Sou hipócrita se disser que deixaria exatamente a mesma decoração se o lugar fosse meu.
— Me trouxe para uma floricultura? – O loiro desdenha tocando as rosas vermelhas em um vaso alto e redondo no chão.
— Cuidado geladeira humana, eu trabalho aqui. – Pego a bolsa sobre o balcão e as chaves jogadas ao lado dessa. Meu tom de alerta informa que as brincadeiras dele sobre a loja de Dáhlia me incomodam. Ela é uma senhora amável que me deu uma oportunidade e defenderia esse lugar com unhas e dentes se fosse preciso. — Foi o único lugar mais próximo e seguro que pensei, não me julgue!
A ironia em geladeira humana o faz rir e aceito como um elogio. Minhas piadas são péssimas e quase nunca consigo arrancar um sorriso mínimo de alguém. O mortal se volta para mim com as mãos nos bolsos da calça do moletom cinza. Os fones pendem para fora de um deles e me pergunto em qual momento ele os tirou do pescoço e os guardou. Algum pensamento o faz sorrir outra vez e morder o lábio inferior, contendo-o.
— O que? – Quero saber cruzando os braços e trocando o peso para a perna esquerda.
— Geladeira humana é engraçado, mas acho que prefiro que me chame de Noah. — Seu sorriso se sustenta esperando que eu de qualquer sinal de que o charme dele está me conquistando. Deve funcionar com as garotas humanas.
— Certo. Noah então. – Concordo ajeitando a bolsa na dobra do braço. Prendo as chaves nos dedos e destranco a porta, pedindo as quatros luas que seja a última vez até amanhã de manhã. Aguardo Noah entender que precisa sair primeiro e demora dois segundos para que o loiro passe por mim e ao passar, me olha de soslaio com um sorriso retraído no canto da boca. — Pare de flertar comigo!
— Me deu seu número. – Argumenta.
— Não é um convite! – Retruco um tanto irritada e praguejo por ter dado esse prazer a ele. Reviro os olhos tentando chegar ao fundo da origem do meu stress. Será a dor incômoda nas cicatrizes ou o mortal a minha frente que está me tirando fora do sério?
— Vejo você amanhã, bruxa dos cabelos azuis. – Noah diz com certa decepção e chuta uma pedrinha solta na calçada.
— Não sou bruxa. – Brinco com o chaveiro da chave, três correntinhas com pedrinhas brutas e polidas de ametista intercaladas. Francamente, pouco me importa se soo convincente. Sua respiração quente sopra de leve os fios azuis de meu cabelo presos nas bochechas e faz cócegas em meu nariz. Perto demais. O alerta soa dentro de mim e dou um passo atrás desviando os olhos para a ponta dos meus saltos finos, quebrando qualquer ligação que possa estar existindo ali.
— Então quem é você? – Noah parece triste, mas permanece calado e esperando uma resposta conforme dou as costas já seguindo para virar a esquina, ciente do olhar dele firme em meus ombros.
— Sou Amara.
Viro à direita e avisto a Range Rover branca estacionada em frente a uma loja de doces. Vasculho a bolsa a procura da chave do carro, desativo o alarme, entro e puxo o sinto de segurança. Agarro o volante e respiro fundo enxergando vagamente a frente. As finas linhas entre as omoplatas doem e a cabeça ferve com os acontecimentos recentes, meu corpo se recusando a digerir a cartomante, a vampira e o mortal. Todos em um só dia em um curto período de horas. Dou a partida e o motor range debaixo de mim.
Que sexta-feira de merda.
Jogo as chaves sobre o aparador assim que entro em casa. É estranho como qualquer lugar pode vir a ser o seu lar dependendo da situação em que nos encontramos. Seis anos atrás eu despenquei do reino das fadas e, supostamente, deveria ter morrido afogada. Por alguma razão desconhecida, eu sobrevivi e um homem de quase setenta anos, médico e gentil me encontrou flutuando dentro do lado em seu quintal. Ele decidiu que não me deixaria morrer ali. Os meses voaram desde então, imperceptíveis, anos vivendo e confiando em um mortal que, de certa forma, me tratava como um membro da família que não possuía. Sem esposa, sem filhos, sem parentes vivos para lhe fazer companhia, apenas a mim, a jovem estranha com cicatrizes nas costas e cabelo azul que nunca respondeu nenhuma das perguntas pessoais vindas dele. Encaro o quadro pregado na parede de pedras rústicas acima da lareira. A moldura de madeira marrom escura e grossa entorno da foto de um senhor sorridente de feições serena
Acordo incomodada. A raposa me observa sentada em minha barriga e me cutuca com a pata fofa entre os seios. Acorde! Parece dizer. Ela pisca os olhinhos marrons fixos aos meus e inclina levemente a cabecinha para o lado. Pisco para ela também, desnorteada com o despertar e ainda me sinto cansada, como se não tivesse dormido uma hora sequer essa noite. Talvez, não tenha dormido. Cortesia do pesadelo horrível que venho tendo há algumas noites. Jogo as cobertas de lado e coço entre as orelhas de Pandora, que acata o carinho abanando a ponta do rabo foto. Meus pés tocam o chão e mesmo por cima do tapete felpudo o frio irradia pelos dedos. Abro uma pequena fresta da cortina e está escuro lá fora. A floresta dorme profundamente e as nuvens pesadas ameaçam uma tempestade a qualquer minuto. Faço uma careta para o sol que se recusa a esquentar a terra e pela ideia de que preciso sair para trabalhar. Gosto do que faço, mas ninguém merece ter que sair da cama com esse tempo ins
— De jeito nenhum! – Ryan nega balançando a cabeça e a puxa pelo pulso para longe do enfeite. — Por favor, Ryan! Tem um ursinho! A mamãe adora ursinhos! – Ela implora e ele persiste na decisão lançando a ela um olhar amedrontador para uma criança tão pequena e inocente. — Não, Chloe. Você adora ursinhos. As lagrimas brotam nos cílios loiros dela e tenho vontade de abraça-la e confortá-la, de dizer que o irmão dela é um babaca de merda que não sabe como cuidar de uma criança. Porém, por outro lado, ele não tem o dever de saber como cuidar de uma criança se ele não é o pai dela. E, por um terceiro lado, talvez, ele seja obrigado a tomar conta da irmã, porque os próprios pais lavaram as mãos. Fico imaginando cenários para a vida deles e nenhum deles é bom. Ryan percebe que estou presa em pensamentos enquanto os encaro e engole em seco coçando a garganta em voz alta. — Quanto custa? – Pergunta desviando os olhos para qualquer lugar exceto os meus
Deslumbrante. Fico deslumbrante dentro do vestido de franjas finas e douradas, esvoaçantes até metade das minhas coxas. É quase obsceno e curto demais se o tema da festa não fosse os sete pecados capitais escondidos por trás das máscaras. Uma simulação da realidade na Terra, sinceramente. Afinal, todos temos dentro de nós, ao menos um desses pecados, se não mais de um. Sendo franca com meu reflexo no espelho, a luxúria me cai bem. Ajeito as alças finas acima das clavículas graciosamente ressaltadas e iluminadas com o brilho suave de um pó luminoso que passei nos ombros e colo. Meus olhos estão opacos em sombra dourada suave, enquanto o batom marrom queimado chama toda a atenção para meus lábios cheios e contornados. O rosado demarca as bochechas coradas e os cílios alongados as sombreiam, junto a algumas mechas do cabelo, que caem em ondas naturais nas têmporas e nas laterais para esconder as pontas das orelhas. O restante delas estão presas no topo
Mesmo com os pés reclamando dentro do salto alto, começo a caminhas sobre as estrelas que ainda permanecem no céu, em direção à praça Jackson, na esperança de ter algum táxi passando por lá a essa hora. São seis quadras, virando a segunda à direita e depois reto até o fim. A cidade dorme e as ruas estão solitárias, apenas um ou dois carros nos semáforos. Um terceiro parece diminuir a velocidade ao se aproximar e acompanhar meus passos. O vidro do Sedan preto se abaixa revelando a inveja. Ele sorri abaixando a visão para conseguir me ver. — Quer carona? – Pergunta e sigo andando. Sorrio negando com a cabeça, surpresa pela abordagem, mas não tanto assim. — Sabe, é perigoso para uma dama indefesa andar sozinha por essas bandas a essa hora. — Quem te disse que sou uma dama indefesa? – Retruco olhando para o horizonte, para o meu destino final e para a lua que paira nas nuvens entre a arquitetura velha e francesa dos cortiços. — O carro não é bom o bastan
Domingo são dias esquisitamente lentos para mim. Talvez, por que não trabalhe ou sequer saia de casa para alguma coisa. Na verdade, sequer saio da cama para qualquer coisa, apenas para comer e ir ao banheiro quando meu estômago ameaça me trucidar de fome ou minha bexiga ameaça estourar. Essa manhã não foi diferente. Acordo com Pandora enroscada no espaço entre a cintura e o braço, um ninho perfeito nos lençóis cheirando a amaciante. Ela ainda dorme e ronca baixinho pelo focinho quadrado, uma bolinha de água se forma em um dos orifícios e sorrio com o feito. São 12:30 segundo os ponteiros do relógio na cabeceira. Praguejo levando um dos travesseiros ao rosto e afundo nas plumas macias em um suspiro. Lembranças da noite barra madrugada retornam à mente e repasso o que restou – as partes que o álcool permitiu que ficassem – as têmporas latejam. Lembro-me de dançar até quase cair, de flertar com o barmen de pele bronzeada e olhos amendoados. Ta
— Confesso que achei... Curiosa sua escolha de lugar quando vi a mensagem. – Paro na plataforma, um pequeno espaço quadrado na troca de lances da escada, mas só porque ele para também, o que me força a estacar ali. Noah me encara com diversão no olhar e o sol se esconde detrás das nuvens, levando a luz que ilumina o verde das irizeis e o calor que aquece nossa pele. Dou de ombros. — O que? — Curiosa é sinônimo de esquisita — Não é não. – Retruco. — Nesse caso é. Ele volta a subir os degraus para o segundo andar do prédio e abre uma das janelas como se soubesse que está aberta. Sigo seu olhar, uma ordem para que eu passe pela abertura e franzo a testa ao hesitar. — Pedir que eu use a janela, ao invés da porta – Troco o peso de uma perna para a outra cruzando os braços. — Isso, é esquisito. — Tenho cara de psicopata? — Psicopatas não tem cara de psicopatas e eu mal conheço você. – Argumento. Analiso o ro
Desço os lances de escada, atravesso a rua para o carro e realmente faço compras de halloween. Compro abóboras para entalhar, chocolates, balas, caramelos e pirulitos, guirlandas de folhas de outono para as portas e luzes pisca-pisca em roxo e laranja com mini morcegos pendurados para os arbustos na entrada da casa. Paro para comer um pretzel no meio da tarde junto a um chocolate quente. Também compro outros mantimentos no mercado para repor nos armários da dispensa e são quase oito da noite quando desligo o motor no meu gramado. Pandora pula em mim ao abrir a porta e quase que as sacolas vão ao chão. Recobro o equilíbrio e despejo tudo no balcão ilha da cozinha. Agacho-me e pego a raposa no colo, acariciando entre as orelhas. — Está acordada, pequena? – Ela pisca e vejo o potinho de comida vazio. — Está com fome, certo? Com Pandora ainda nos braços, sirvo frutas vermelhas com certa dificuldade em fazer com que elas caiam dentro do porte e então, a d