Domingo são dias esquisitamente lentos para mim. Talvez, por que não trabalhe ou sequer saia de casa para alguma coisa. Na verdade, sequer saio da cama para qualquer coisa, apenas para comer e ir ao banheiro quando meu estômago ameaça me trucidar de fome ou minha bexiga ameaça estourar.
Essa manhã não foi diferente. Acordo com Pandora enroscada no espaço entre a cintura e o braço, um ninho perfeito nos lençóis cheirando a amaciante. Ela ainda dorme e ronca baixinho pelo focinho quadrado, uma bolinha de água se forma em um dos orifícios e sorrio com o feito.
São 12:30 segundo os ponteiros do relógio na cabeceira. Praguejo levando um dos travesseiros ao rosto e afundo nas plumas macias em um suspiro. Lembranças da noite barra madrugada retornam à mente e repasso o que restou – as partes que o álcool permitiu que ficassem – as têmporas latejam. Lembro-me de dançar até quase cair, de flertar com o barmen de pele bronzeada e olhos amendoados. Ta
— Confesso que achei... Curiosa sua escolha de lugar quando vi a mensagem. – Paro na plataforma, um pequeno espaço quadrado na troca de lances da escada, mas só porque ele para também, o que me força a estacar ali. Noah me encara com diversão no olhar e o sol se esconde detrás das nuvens, levando a luz que ilumina o verde das irizeis e o calor que aquece nossa pele. Dou de ombros. — O que? — Curiosa é sinônimo de esquisita — Não é não. – Retruco. — Nesse caso é. Ele volta a subir os degraus para o segundo andar do prédio e abre uma das janelas como se soubesse que está aberta. Sigo seu olhar, uma ordem para que eu passe pela abertura e franzo a testa ao hesitar. — Pedir que eu use a janela, ao invés da porta – Troco o peso de uma perna para a outra cruzando os braços. — Isso, é esquisito. — Tenho cara de psicopata? — Psicopatas não tem cara de psicopatas e eu mal conheço você. – Argumento. Analiso o ro
Desço os lances de escada, atravesso a rua para o carro e realmente faço compras de halloween. Compro abóboras para entalhar, chocolates, balas, caramelos e pirulitos, guirlandas de folhas de outono para as portas e luzes pisca-pisca em roxo e laranja com mini morcegos pendurados para os arbustos na entrada da casa. Paro para comer um pretzel no meio da tarde junto a um chocolate quente. Também compro outros mantimentos no mercado para repor nos armários da dispensa e são quase oito da noite quando desligo o motor no meu gramado. Pandora pula em mim ao abrir a porta e quase que as sacolas vão ao chão. Recobro o equilíbrio e despejo tudo no balcão ilha da cozinha. Agacho-me e pego a raposa no colo, acariciando entre as orelhas. — Está acordada, pequena? – Ela pisca e vejo o potinho de comida vazio. — Está com fome, certo? Com Pandora ainda nos braços, sirvo frutas vermelhas com certa dificuldade em fazer com que elas caiam dentro do porte e então, a d
Assim que ficamos seguros dentro da casa, ajudo o feérico a se apoiar no balcão ilha e corro para o escritório de Victor. Depois que ele morreu, suas coisas continuaram intactas, pois, não consigo arrumar uma razão para mexer em suas gavetas cheias de históricos de pacientes antigos, ou, nas cristaleiras com seus instrumentos e remédios. Para que me livrar se algum dia essas coisas serão úteis? São úteis agora. Penso evitando respirar muito profundamente e inalar o forte cheiro de sangue grudado em minha camiseta pijama. Tal pensamento me leva a concluir que eu estou um tanto indecente para receber visitas, ainda mais inesperadas. Ignoro minha consciência e vergonha, já que se fosse eu quem estivesse sangrando, com certeza, deixaria passar batido o fato de ter pernas demais a mostra. Pego gaze e alguns objetos de uma sutura que Victor me ensinou a usar em uma chuvosa tarde de sábado quando abri um corte na cabeça ao bater em uma das pedras no lago. Na teoria
A irmã traidora de Duvessa. Engulo o bolo na garganta ao saber como sou conhecida agora e que todos sabem sobre mim, sabem que sobrevivi a queda do penhasco e sabem que estou viva no mundo mortal. Prefiro nem saber o que mais sabem sobre mim em Illinea. — Como descobriram que sobrevivi? – Tento controlar a tremedeira que retorna aos dedos e aumentam a pressão com que espalho a pasta na pele inflamada. — Por que estão me procurando? — Digamos que o reino sofreu mudanças drásticas. – Terence suspira e saio detrás dele, abandonando o recipiente no balcão. Agarro uma das faixas de ataduras e a desenrolo pela metade, já a enrolando no corpo dele, sobre o machucado. — Sua irmã se revelou uma traidora. Pisco perplexa com a revelação e arqueio as sobrancelhas. Encaro as irizes douradas congelando a última volta da bandagem ao redor das costelas. Percebo que ele se esquiva da pergunta, mas minha curiosidade é maior ainda em relação a Duvessa. — O que
O peso das revelações me puxa para baixo como uma âncora amarrada em meu pescoço. Não consigo acreditar que minha irmã está causando todas essas mortes por uma causa egoísta e extremamente perigosa. Acordar Runa e libertá-la trará mais do que o caos em si, trará o fim das fadas, do reino e do mundo mortal. A rainha maligna que foi trancafiada a sete chaves por conta do ódio e do desejo e atração pela magia das trevas. Quatro chaves. As mesmas que Duvessa quer. Quando somos pequenos feéricos recém vindos ao mundo, nos é contado uma história que passa longe de ser um belo e feliz conto de fadas. A história de como Runa, a primeira rainha das fadas, encontrou a predicação em sua própria ambição e obsessão pelo pleno poder. Ela queria tudo e sacrificaria o que fosse para isso. E sacrificou. Criou a arte mais profana e perversa de todos os tempos, fez nascer o que conhecemos como magia negra e usou contra todos aqueles que não concordavam ou aderiram a tal prática. Os sé
— É apenas chá. — Qualquer comida desse mundo é um veneno para nós. Nós. Ele usa essa palavra como se eu ainda fosse como ele. E mais uma vez, me esqueço que comidas, bebidas, alimentos em geral vindos do mundo mortal são tóxicos para os feéricos. Até mesmo um simples chá de canela e gengibre. Até a água. Sequer importa se alguns dos elementos também crescem em Illinea, a diferença é que a terra onde são semeados é pobre em magia, as mãos que os colhem e preparam, são vazias e cheias ao mesmo tempo. Vazias de amor e cuidado e boas intenções e cheias de amargura e tristeza e egoísmo. Por outro lado, tudo o que vem do reino é tóxico aos humanos, deixando-os encantados, enfeitiçados, doentes e por fim, mortos. Bebo mais um gole da bebida quente a reconfortante, os dedos sujos de sangue e pomada de ervas manchando a porcelana branca impecável. Pouso a xícara no balcão, as mãos a envolvendo e subo os olhos para os de Terence. — Então, Duvessa quer
Como eu imaginei, pregar os olhos foi um desafio. Começar a segunda feira com sono picado está fora de ser o início de uma boa semana, porque sei que não será uma boa semana. Tenho um feérico no andar debaixo, uma cozinha imunda e sacolas para guardar. Além, de ser procurada pelos rebeldes de Duvessa e de uma possível queda de Illinea se Runa despertar. Meu reflexo no espelho do banheiro me encara por mais minutos do que posso contar e Pandora pula para o balcão, sentando-se sobre as patas traseiras e dobrando as orelhas para mim, preocupada com sua dona que passou metade da madrugada acordando com os próprios gritos – cortesia dos pesadelos terríveis – e socando os travesseiros. — Nem todos os dias são bons, pequena. – Acaricio o focinho da raposa e ela se aninha na palma da minha mão em forma de conforto. Os cortes pequenos feitos pelos cacos da xícara estão rosados e com casca, quase fechados. Tiro o roupão branco e macio – com o qual adorme
Terence espera que eu diga algo, mas meus lábios entreabertos se fecham e engulo em seco o pudor e o desejo. Umedeço a boca e desconto o pingo de irritação que surge mordendo o lábio inferior, enquanto entro e abotoo o sinto de segurança. Ele fecha a porta e dou a partida sentindo o motor ranger debaixo de mim. Faço a volta e o vejo desaparecer pelo retrovisor conforme a estrada surge adiante. Como é segunda-feira, o centro de Nova Orleans está um caos. Carros para todos os lados, pedestres apressados com suas pastas e ternos e saltos altos – alguns deles com cafés, celulares e outras centenas de coisas nas mãos. Precisamos de mais que duas ultimamente. Sigo para a praça Lafayette e logo depois para a floricultura, estaciono do outro lado da rua. A loja está aberta e Dáhlia está regando os vasinhos de suculentas em uma das prateleiras de acrílico. — Bom dia! – Passo pela senhorinha com um sorriso e ela ergue os olhos do regador para devolver a gentileza, as ruguinhas