A irmã traidora de Duvessa. Engulo o bolo na garganta ao saber como sou conhecida agora e que todos sabem sobre mim, sabem que sobrevivi a queda do penhasco e sabem que estou viva no mundo mortal. Prefiro nem saber o que mais sabem sobre mim em Illinea.
— Como descobriram que sobrevivi? – Tento controlar a tremedeira que retorna aos dedos e aumentam a pressão com que espalho a pasta na pele inflamada. — Por que estão me procurando?
— Digamos que o reino sofreu mudanças drásticas. – Terence suspira e saio detrás dele, abandonando o recipiente no balcão. Agarro uma das faixas de ataduras e a desenrolo pela metade, já a enrolando no corpo dele, sobre o machucado. — Sua irmã se revelou uma traidora.
Pisco perplexa com a revelação e arqueio as sobrancelhas. Encaro as irizes douradas congelando a última volta da bandagem ao redor das costelas. Percebo que ele se esquiva da pergunta, mas minha curiosidade é maior ainda em relação a Duvessa.
— O que
O peso das revelações me puxa para baixo como uma âncora amarrada em meu pescoço. Não consigo acreditar que minha irmã está causando todas essas mortes por uma causa egoísta e extremamente perigosa. Acordar Runa e libertá-la trará mais do que o caos em si, trará o fim das fadas, do reino e do mundo mortal. A rainha maligna que foi trancafiada a sete chaves por conta do ódio e do desejo e atração pela magia das trevas. Quatro chaves. As mesmas que Duvessa quer. Quando somos pequenos feéricos recém vindos ao mundo, nos é contado uma história que passa longe de ser um belo e feliz conto de fadas. A história de como Runa, a primeira rainha das fadas, encontrou a predicação em sua própria ambição e obsessão pelo pleno poder. Ela queria tudo e sacrificaria o que fosse para isso. E sacrificou. Criou a arte mais profana e perversa de todos os tempos, fez nascer o que conhecemos como magia negra e usou contra todos aqueles que não concordavam ou aderiram a tal prática. Os sé
— É apenas chá. — Qualquer comida desse mundo é um veneno para nós. Nós. Ele usa essa palavra como se eu ainda fosse como ele. E mais uma vez, me esqueço que comidas, bebidas, alimentos em geral vindos do mundo mortal são tóxicos para os feéricos. Até mesmo um simples chá de canela e gengibre. Até a água. Sequer importa se alguns dos elementos também crescem em Illinea, a diferença é que a terra onde são semeados é pobre em magia, as mãos que os colhem e preparam, são vazias e cheias ao mesmo tempo. Vazias de amor e cuidado e boas intenções e cheias de amargura e tristeza e egoísmo. Por outro lado, tudo o que vem do reino é tóxico aos humanos, deixando-os encantados, enfeitiçados, doentes e por fim, mortos. Bebo mais um gole da bebida quente a reconfortante, os dedos sujos de sangue e pomada de ervas manchando a porcelana branca impecável. Pouso a xícara no balcão, as mãos a envolvendo e subo os olhos para os de Terence. — Então, Duvessa quer
Como eu imaginei, pregar os olhos foi um desafio. Começar a segunda feira com sono picado está fora de ser o início de uma boa semana, porque sei que não será uma boa semana. Tenho um feérico no andar debaixo, uma cozinha imunda e sacolas para guardar. Além, de ser procurada pelos rebeldes de Duvessa e de uma possível queda de Illinea se Runa despertar. Meu reflexo no espelho do banheiro me encara por mais minutos do que posso contar e Pandora pula para o balcão, sentando-se sobre as patas traseiras e dobrando as orelhas para mim, preocupada com sua dona que passou metade da madrugada acordando com os próprios gritos – cortesia dos pesadelos terríveis – e socando os travesseiros. — Nem todos os dias são bons, pequena. – Acaricio o focinho da raposa e ela se aninha na palma da minha mão em forma de conforto. Os cortes pequenos feitos pelos cacos da xícara estão rosados e com casca, quase fechados. Tiro o roupão branco e macio – com o qual adorme
Terence espera que eu diga algo, mas meus lábios entreabertos se fecham e engulo em seco o pudor e o desejo. Umedeço a boca e desconto o pingo de irritação que surge mordendo o lábio inferior, enquanto entro e abotoo o sinto de segurança. Ele fecha a porta e dou a partida sentindo o motor ranger debaixo de mim. Faço a volta e o vejo desaparecer pelo retrovisor conforme a estrada surge adiante. Como é segunda-feira, o centro de Nova Orleans está um caos. Carros para todos os lados, pedestres apressados com suas pastas e ternos e saltos altos – alguns deles com cafés, celulares e outras centenas de coisas nas mãos. Precisamos de mais que duas ultimamente. Sigo para a praça Lafayette e logo depois para a floricultura, estaciono do outro lado da rua. A loja está aberta e Dáhlia está regando os vasinhos de suculentas em uma das prateleiras de acrílico. — Bom dia! – Passo pela senhorinha com um sorriso e ela ergue os olhos do regador para devolver a gentileza, as ruguinhas
— Não. – Noah fala dando de ombros. Contenho a vontade de pegá-lo na mentira com a língua no céu da boca e as mãos no quadril. — Isso não ajuda. – Prossigo indo para o centro da loja. Estamos rodeados por flores de diversas cores e tipos e os aromas se mesclam tornando o local agradável e natural, como se estivéssemos em meio as árvores da floresta, o que remete minha memória á Illinea e como um espinho enfiado no dedo, incomoda até a alma se não for arrancado. E eu nunca o arranquei. Diferente do mundo mortal, o reino não muda com os meses, pois, cada região mantém sua estação principal desde o início dos tempos. — Esperava que você me ajudasse. – Ele passa a observar as flores e pega um dos vasinhos de suculentas. — Acho que tem um palpite mais confiável do que o meu. – Seus dedos tocam as pétalas da planta e devolvem o vaso no lugar, depois se escondem nos bolsos novamente. — Quais são as suas favoritas? — Pode parecer clichê, mas
Freya e eu ficamos conversando durante uma hora do meu expediente – curiosamente ninguém mais decidiu comprar flores depois de Noah. O entregador chegou para levar os pedidos as 16 horas. Então, quando o relógio bateu 17 horas verifiquei tudo, fechei o caixa e me despedi de Dáhlia, que me deu mais biscoitos para a viagem. Estou na calçada e o céu de Nova Orleans é uma obra prima de aquarelas escuras. No horizonte dos prédios, o sol com seus raios finais despedindo-se do dia em amarelo e laranja mesclando-se ao roxo e azul escuro da noite que chega sobre a cidade. A lua está entre as estrelas, quase cheia para o dia das bruxas e uma fina linha de brilho avermelhado já a contorna, sutil e misteriosa e energética. Posso sentir a magia a minha volta, emanando de todos os lugares – é impossível saber a fonte quando o poder flui de todos os cantos. Tranco a floricultura e suspiro antes de entrar no carro e voltar para casa e para a minha mais nova realida
A voz de Terence vem debaixo do arco entre a cozinha e a sala de jantar. Olho para lá e espero tudo, menos um feérico somente de toalha no quadril apoiado contra o batente. De braços cruzados ressaltando a beleza fria das fadas. Pisco antes que ele note meus olhos arregalados e bebo mais um pouco da taça para disfarçar o rubor nas bochechas. — São dez da noite em algum lugar no mundo. – Respondo dando de ombros e mexo o caldo na panela. O aroma sobe e a fome toma conta de mim. — Será que pode me emprestar mais algumas roupas? – Ele pergunta sem tirar o olhar de mim, o que só faz aumentar o calor nas veias. — Toalha não é a melhor opção par ficar andando pela casa. — Certamente, não! – Concordo e contorno o balcão. Tenho que passar por ele para chegar as escadas e ao segundo andar para assaltar o guarda-roupas de Victor e dar a ele alguma peça que mantenha o corpo escondido do monstro sedento dentro de mim. Subo as escadas consciente dele às costas. Pe
— Sua história é ridícula. Impossível. É a primeira coisa que vem a mente depois que Terence para de falar. O que era para ser uma história esperançosa, se tornou a teoria dele – interessante, confesso, porém ridícula – sobre uma fada sem asas que ainda possuía magia. Ele pisca os olhos cor de ouro para mim e a pupila negra dilata refletindo as chamas da lareira. A pizza chegara meia hora depois que nos acomodamos no sofá e comemos a maior parte dela, sobrando duas fatias na caixa sobre a mesinha de centro ao lado da garrafa de vinho vazia. O calor do fogo me faz suar e arregaço as mangas do vestido até os cotovelos. A tempestade despenca dos céus escuros. — Nunca, jamais, nenhuma fada recuperou sua magia. A lenda de Lydia é uma cantiga de ninar que nossos pais cantavam para nos fazer dormir. – Tomo o último gole da taça e o álcool corre pelas veias, adormecendo os nervos sonolentos. — Você apenas a transformou em uma história. Pouso