— É apenas chá.
— Qualquer comida desse mundo é um veneno para nós.
Nós. Ele usa essa palavra como se eu ainda fosse como ele. E mais uma vez, me esqueço que comidas, bebidas, alimentos em geral vindos do mundo mortal são tóxicos para os feéricos. Até mesmo um simples chá de canela e gengibre. Até a água. Sequer importa se alguns dos elementos também crescem em Illinea, a diferença é que a terra onde são semeados é pobre em magia, as mãos que os colhem e preparam, são vazias e cheias ao mesmo tempo. Vazias de amor e cuidado e boas intenções e cheias de amargura e tristeza e egoísmo. Por outro lado, tudo o que vem do reino é tóxico aos humanos, deixando-os encantados, enfeitiçados, doentes e por fim, mortos.
Bebo mais um gole da bebida quente a reconfortante, os dedos sujos de sangue e pomada de ervas manchando a porcelana branca impecável. Pouso a xícara no balcão, as mãos a envolvendo e subo os olhos para os de Terence.
— Então, Duvessa quer
Como eu imaginei, pregar os olhos foi um desafio. Começar a segunda feira com sono picado está fora de ser o início de uma boa semana, porque sei que não será uma boa semana. Tenho um feérico no andar debaixo, uma cozinha imunda e sacolas para guardar. Além, de ser procurada pelos rebeldes de Duvessa e de uma possível queda de Illinea se Runa despertar. Meu reflexo no espelho do banheiro me encara por mais minutos do que posso contar e Pandora pula para o balcão, sentando-se sobre as patas traseiras e dobrando as orelhas para mim, preocupada com sua dona que passou metade da madrugada acordando com os próprios gritos – cortesia dos pesadelos terríveis – e socando os travesseiros. — Nem todos os dias são bons, pequena. – Acaricio o focinho da raposa e ela se aninha na palma da minha mão em forma de conforto. Os cortes pequenos feitos pelos cacos da xícara estão rosados e com casca, quase fechados. Tiro o roupão branco e macio – com o qual adorme
Terence espera que eu diga algo, mas meus lábios entreabertos se fecham e engulo em seco o pudor e o desejo. Umedeço a boca e desconto o pingo de irritação que surge mordendo o lábio inferior, enquanto entro e abotoo o sinto de segurança. Ele fecha a porta e dou a partida sentindo o motor ranger debaixo de mim. Faço a volta e o vejo desaparecer pelo retrovisor conforme a estrada surge adiante. Como é segunda-feira, o centro de Nova Orleans está um caos. Carros para todos os lados, pedestres apressados com suas pastas e ternos e saltos altos – alguns deles com cafés, celulares e outras centenas de coisas nas mãos. Precisamos de mais que duas ultimamente. Sigo para a praça Lafayette e logo depois para a floricultura, estaciono do outro lado da rua. A loja está aberta e Dáhlia está regando os vasinhos de suculentas em uma das prateleiras de acrílico. — Bom dia! – Passo pela senhorinha com um sorriso e ela ergue os olhos do regador para devolver a gentileza, as ruguinhas
— Não. – Noah fala dando de ombros. Contenho a vontade de pegá-lo na mentira com a língua no céu da boca e as mãos no quadril. — Isso não ajuda. – Prossigo indo para o centro da loja. Estamos rodeados por flores de diversas cores e tipos e os aromas se mesclam tornando o local agradável e natural, como se estivéssemos em meio as árvores da floresta, o que remete minha memória á Illinea e como um espinho enfiado no dedo, incomoda até a alma se não for arrancado. E eu nunca o arranquei. Diferente do mundo mortal, o reino não muda com os meses, pois, cada região mantém sua estação principal desde o início dos tempos. — Esperava que você me ajudasse. – Ele passa a observar as flores e pega um dos vasinhos de suculentas. — Acho que tem um palpite mais confiável do que o meu. – Seus dedos tocam as pétalas da planta e devolvem o vaso no lugar, depois se escondem nos bolsos novamente. — Quais são as suas favoritas? — Pode parecer clichê, mas
Freya e eu ficamos conversando durante uma hora do meu expediente – curiosamente ninguém mais decidiu comprar flores depois de Noah. O entregador chegou para levar os pedidos as 16 horas. Então, quando o relógio bateu 17 horas verifiquei tudo, fechei o caixa e me despedi de Dáhlia, que me deu mais biscoitos para a viagem. Estou na calçada e o céu de Nova Orleans é uma obra prima de aquarelas escuras. No horizonte dos prédios, o sol com seus raios finais despedindo-se do dia em amarelo e laranja mesclando-se ao roxo e azul escuro da noite que chega sobre a cidade. A lua está entre as estrelas, quase cheia para o dia das bruxas e uma fina linha de brilho avermelhado já a contorna, sutil e misteriosa e energética. Posso sentir a magia a minha volta, emanando de todos os lugares – é impossível saber a fonte quando o poder flui de todos os cantos. Tranco a floricultura e suspiro antes de entrar no carro e voltar para casa e para a minha mais nova realida
A voz de Terence vem debaixo do arco entre a cozinha e a sala de jantar. Olho para lá e espero tudo, menos um feérico somente de toalha no quadril apoiado contra o batente. De braços cruzados ressaltando a beleza fria das fadas. Pisco antes que ele note meus olhos arregalados e bebo mais um pouco da taça para disfarçar o rubor nas bochechas. — São dez da noite em algum lugar no mundo. – Respondo dando de ombros e mexo o caldo na panela. O aroma sobe e a fome toma conta de mim. — Será que pode me emprestar mais algumas roupas? – Ele pergunta sem tirar o olhar de mim, o que só faz aumentar o calor nas veias. — Toalha não é a melhor opção par ficar andando pela casa. — Certamente, não! – Concordo e contorno o balcão. Tenho que passar por ele para chegar as escadas e ao segundo andar para assaltar o guarda-roupas de Victor e dar a ele alguma peça que mantenha o corpo escondido do monstro sedento dentro de mim. Subo as escadas consciente dele às costas. Pe
— Sua história é ridícula. Impossível. É a primeira coisa que vem a mente depois que Terence para de falar. O que era para ser uma história esperançosa, se tornou a teoria dele – interessante, confesso, porém ridícula – sobre uma fada sem asas que ainda possuía magia. Ele pisca os olhos cor de ouro para mim e a pupila negra dilata refletindo as chamas da lareira. A pizza chegara meia hora depois que nos acomodamos no sofá e comemos a maior parte dela, sobrando duas fatias na caixa sobre a mesinha de centro ao lado da garrafa de vinho vazia. O calor do fogo me faz suar e arregaço as mangas do vestido até os cotovelos. A tempestade despenca dos céus escuros. — Nunca, jamais, nenhuma fada recuperou sua magia. A lenda de Lydia é uma cantiga de ninar que nossos pais cantavam para nos fazer dormir. – Tomo o último gole da taça e o álcool corre pelas veias, adormecendo os nervos sonolentos. — Você apenas a transformou em uma história. Pouso
A luta só acaba quando a luz deixa o olhar e se escuta a última respiração. Minha mãe disse uma vez, enquanto me ensinava golpes com espadas afiadas e leves de cristais de gelo. Obviamente, não lutaremos até a morte, apesar de eu saber que nenhum de nós se renderá tão fácil. Fadas são orgulhosas demais para admitir quando perdem. Terence cede ao golpe e cai de bruços ao meu lado, se apoia nos cotovelos com uma careta de dor, o que me da tempo para me jogar sobre ele e prender meus joelhos em ambos os lados de seu corpo e segurar suas mãos perto da cabeça. — Acho que deve rever seus conceitos sobre mim. – Meus cabelos caem sobre meus ombros e ele os sopra para longe dos próprios olhos para enxergar meu sorriso convencido. O sinto respirar debaixo das minhas pernas e tomo ciência do quão firme estou sobre seu quadril. Do nada, aquela posição de luta se torna íntima demais e o vejo sorrir de canto de lábio, pervertido e levemente excitado dentro da calça. Rubor
Merda. Mil vezes. Pisco e resolvo que é melhor conter a língua do que tentar dar qualquer explicação sem sentido e mentirosa. Noah está na porta da minha casa me encarando como se eu tivesse sofrido um acidente, ou algo do tipo. Afinal, posso sentir uma solitária gota de sangue escorrer pelo pescoço e se encaixar no espaço da clavícula. — O que faz aqui? – Pergunto franzindo as sobrancelhas sem direito algum de tal gesto. Não sou eu quem deve questionar. Ele me percorre de novo com os olhos profundos e sérios e os fixa em meu roto. Dessa vez, Noah finge pisca como eu e repuxa o canto da boca revelando as covinhas fofas. — Você recebeu o cartão, certo? Eu disse oito horas. – O loiro responde e tenta espiar além de mim pela fresta que mantenho aberta, para dentro da minha sala bagunçada numa recente cena de luta. Me coloco a sua frente de modo a impedir seu campo de visão do interior da casa e forço um sorrio. — Sim. A propósito, você não preci