Assim que ficamos seguros dentro da casa, ajudo o feérico a se apoiar no balcão ilha e corro para o escritório de Victor. Depois que ele morreu, suas coisas continuaram intactas, pois, não consigo arrumar uma razão para mexer em suas gavetas cheias de históricos de pacientes antigos, ou, nas cristaleiras com seus instrumentos e remédios. Para que me livrar se algum dia essas coisas serão úteis?
São úteis agora. Penso evitando respirar muito profundamente e inalar o forte cheiro de sangue grudado em minha camiseta pijama. Tal pensamento me leva a concluir que eu estou um tanto indecente para receber visitas, ainda mais inesperadas. Ignoro minha consciência e vergonha, já que se fosse eu quem estivesse sangrando, com certeza, deixaria passar batido o fato de ter pernas demais a mostra.
Pego gaze e alguns objetos de uma sutura que Victor me ensinou a usar em uma chuvosa tarde de sábado quando abri um corte na cabeça ao bater em uma das pedras no lago. Na teoria
A irmã traidora de Duvessa. Engulo o bolo na garganta ao saber como sou conhecida agora e que todos sabem sobre mim, sabem que sobrevivi a queda do penhasco e sabem que estou viva no mundo mortal. Prefiro nem saber o que mais sabem sobre mim em Illinea. — Como descobriram que sobrevivi? – Tento controlar a tremedeira que retorna aos dedos e aumentam a pressão com que espalho a pasta na pele inflamada. — Por que estão me procurando? — Digamos que o reino sofreu mudanças drásticas. – Terence suspira e saio detrás dele, abandonando o recipiente no balcão. Agarro uma das faixas de ataduras e a desenrolo pela metade, já a enrolando no corpo dele, sobre o machucado. — Sua irmã se revelou uma traidora. Pisco perplexa com a revelação e arqueio as sobrancelhas. Encaro as irizes douradas congelando a última volta da bandagem ao redor das costelas. Percebo que ele se esquiva da pergunta, mas minha curiosidade é maior ainda em relação a Duvessa. — O que
O peso das revelações me puxa para baixo como uma âncora amarrada em meu pescoço. Não consigo acreditar que minha irmã está causando todas essas mortes por uma causa egoísta e extremamente perigosa. Acordar Runa e libertá-la trará mais do que o caos em si, trará o fim das fadas, do reino e do mundo mortal. A rainha maligna que foi trancafiada a sete chaves por conta do ódio e do desejo e atração pela magia das trevas. Quatro chaves. As mesmas que Duvessa quer. Quando somos pequenos feéricos recém vindos ao mundo, nos é contado uma história que passa longe de ser um belo e feliz conto de fadas. A história de como Runa, a primeira rainha das fadas, encontrou a predicação em sua própria ambição e obsessão pelo pleno poder. Ela queria tudo e sacrificaria o que fosse para isso. E sacrificou. Criou a arte mais profana e perversa de todos os tempos, fez nascer o que conhecemos como magia negra e usou contra todos aqueles que não concordavam ou aderiram a tal prática. Os sé
— É apenas chá. — Qualquer comida desse mundo é um veneno para nós. Nós. Ele usa essa palavra como se eu ainda fosse como ele. E mais uma vez, me esqueço que comidas, bebidas, alimentos em geral vindos do mundo mortal são tóxicos para os feéricos. Até mesmo um simples chá de canela e gengibre. Até a água. Sequer importa se alguns dos elementos também crescem em Illinea, a diferença é que a terra onde são semeados é pobre em magia, as mãos que os colhem e preparam, são vazias e cheias ao mesmo tempo. Vazias de amor e cuidado e boas intenções e cheias de amargura e tristeza e egoísmo. Por outro lado, tudo o que vem do reino é tóxico aos humanos, deixando-os encantados, enfeitiçados, doentes e por fim, mortos. Bebo mais um gole da bebida quente a reconfortante, os dedos sujos de sangue e pomada de ervas manchando a porcelana branca impecável. Pouso a xícara no balcão, as mãos a envolvendo e subo os olhos para os de Terence. — Então, Duvessa quer
Como eu imaginei, pregar os olhos foi um desafio. Começar a segunda feira com sono picado está fora de ser o início de uma boa semana, porque sei que não será uma boa semana. Tenho um feérico no andar debaixo, uma cozinha imunda e sacolas para guardar. Além, de ser procurada pelos rebeldes de Duvessa e de uma possível queda de Illinea se Runa despertar. Meu reflexo no espelho do banheiro me encara por mais minutos do que posso contar e Pandora pula para o balcão, sentando-se sobre as patas traseiras e dobrando as orelhas para mim, preocupada com sua dona que passou metade da madrugada acordando com os próprios gritos – cortesia dos pesadelos terríveis – e socando os travesseiros. — Nem todos os dias são bons, pequena. – Acaricio o focinho da raposa e ela se aninha na palma da minha mão em forma de conforto. Os cortes pequenos feitos pelos cacos da xícara estão rosados e com casca, quase fechados. Tiro o roupão branco e macio – com o qual adorme
Terence espera que eu diga algo, mas meus lábios entreabertos se fecham e engulo em seco o pudor e o desejo. Umedeço a boca e desconto o pingo de irritação que surge mordendo o lábio inferior, enquanto entro e abotoo o sinto de segurança. Ele fecha a porta e dou a partida sentindo o motor ranger debaixo de mim. Faço a volta e o vejo desaparecer pelo retrovisor conforme a estrada surge adiante. Como é segunda-feira, o centro de Nova Orleans está um caos. Carros para todos os lados, pedestres apressados com suas pastas e ternos e saltos altos – alguns deles com cafés, celulares e outras centenas de coisas nas mãos. Precisamos de mais que duas ultimamente. Sigo para a praça Lafayette e logo depois para a floricultura, estaciono do outro lado da rua. A loja está aberta e Dáhlia está regando os vasinhos de suculentas em uma das prateleiras de acrílico. — Bom dia! – Passo pela senhorinha com um sorriso e ela ergue os olhos do regador para devolver a gentileza, as ruguinhas
— Não. – Noah fala dando de ombros. Contenho a vontade de pegá-lo na mentira com a língua no céu da boca e as mãos no quadril. — Isso não ajuda. – Prossigo indo para o centro da loja. Estamos rodeados por flores de diversas cores e tipos e os aromas se mesclam tornando o local agradável e natural, como se estivéssemos em meio as árvores da floresta, o que remete minha memória á Illinea e como um espinho enfiado no dedo, incomoda até a alma se não for arrancado. E eu nunca o arranquei. Diferente do mundo mortal, o reino não muda com os meses, pois, cada região mantém sua estação principal desde o início dos tempos. — Esperava que você me ajudasse. – Ele passa a observar as flores e pega um dos vasinhos de suculentas. — Acho que tem um palpite mais confiável do que o meu. – Seus dedos tocam as pétalas da planta e devolvem o vaso no lugar, depois se escondem nos bolsos novamente. — Quais são as suas favoritas? — Pode parecer clichê, mas
Freya e eu ficamos conversando durante uma hora do meu expediente – curiosamente ninguém mais decidiu comprar flores depois de Noah. O entregador chegou para levar os pedidos as 16 horas. Então, quando o relógio bateu 17 horas verifiquei tudo, fechei o caixa e me despedi de Dáhlia, que me deu mais biscoitos para a viagem. Estou na calçada e o céu de Nova Orleans é uma obra prima de aquarelas escuras. No horizonte dos prédios, o sol com seus raios finais despedindo-se do dia em amarelo e laranja mesclando-se ao roxo e azul escuro da noite que chega sobre a cidade. A lua está entre as estrelas, quase cheia para o dia das bruxas e uma fina linha de brilho avermelhado já a contorna, sutil e misteriosa e energética. Posso sentir a magia a minha volta, emanando de todos os lugares – é impossível saber a fonte quando o poder flui de todos os cantos. Tranco a floricultura e suspiro antes de entrar no carro e voltar para casa e para a minha mais nova realida
A voz de Terence vem debaixo do arco entre a cozinha e a sala de jantar. Olho para lá e espero tudo, menos um feérico somente de toalha no quadril apoiado contra o batente. De braços cruzados ressaltando a beleza fria das fadas. Pisco antes que ele note meus olhos arregalados e bebo mais um pouco da taça para disfarçar o rubor nas bochechas. — São dez da noite em algum lugar no mundo. – Respondo dando de ombros e mexo o caldo na panela. O aroma sobe e a fome toma conta de mim. — Será que pode me emprestar mais algumas roupas? – Ele pergunta sem tirar o olhar de mim, o que só faz aumentar o calor nas veias. — Toalha não é a melhor opção par ficar andando pela casa. — Certamente, não! – Concordo e contorno o balcão. Tenho que passar por ele para chegar as escadas e ao segundo andar para assaltar o guarda-roupas de Victor e dar a ele alguma peça que mantenha o corpo escondido do monstro sedento dentro de mim. Subo as escadas consciente dele às costas. Pe