03

— Mais um pouco, vamos! Estamos quase chegando!

O peso dele sobre meu corpo pequeno está indo além do que posso aguentar por muito tempo. Se demorarmos mais um pouco nós dois desabaremos e então estaremos perdidos e cheios de explicações para dar. Nunca soube mentir, no máximo omitir alguns detalhes da verdade, detalhes como, por exemplo, a mordida humana no pulso de um garoto ter sido causada porque um dos amigos dele surtou e o atacou, após usarem drogas. Sério? É tudo que tem, Amara? Como explicaria aos médicos – ou a qualquer um – a quantidade significativa de sangue faltando no corpo dele?

Quando finalmente chegamos na floricultura, o apoio contra o vidro quadrado da vitrine para procurar as chaves na bolsa, também manchada de vermelho. Eu o tinha limpado naquela manhã e cinco minutos depois já haviam palmas de mãos sujas que indicavam adornos, flores e vasos de clientes interessados. Alguns entraram e outros apenas almejaram receber flores ou poder compra-las. Os tijolinhos brancos estão gastos com a ação dos ventos e chuvas e sol quente e precisam ser pintados de novo, talvez falasse com Dáhlia sobre eles na segunda.

 Não temos tempo para bandagens que conteriam o sangue, ou saíamos daquele beco sujo, ou nada. Tivemos que sair, a única opção. Enfio a chave na fechadura e destranco a porta de vidro e madeira branca pedindo as quatro luas para que a senhora dona da loja dormindo no andar de cima esteja em seu sono mais profundo. Se Dáhlia descer até aqui para verificar os ruídos estranhos e barulhentos, com certeza fará perguntas que eu preferia evitar ter que responder.

O mortal amolece em meus braços quando o empurro para dentro da floricultura, a mão firme nos quadris dele, para apoia-lo e impedir que caia no chão como um saco de areia de setenta e tantos quilos ou mais – não que seja o peso dele, o que não vem ao caso no momento. Passo a tranca na porta e decido que luzes apagadas é a decisão mais sensata.

O ambiente quadrado está levemente escuro, iluminado apenas pelas luzes fracas da rua passando pelo vão da porta e pela vitrine. Uma escuridão clara com cheiro de flor e terra e essências do meu aroma terapia diário. O balcão permanece com a minha bagunça organizada de papéis, tesouras, enfeites e fitas para finalização de embrulhos e buquês. Cruzamos o espaço para além da cortina de miçangas – conchas e cristais alternados caindo do batente ao piso de claro frio – que esconde o cômodo dos fundos, uma sala particular, gentileza de Dáhlia ao descobrir que eu poderia ser mais do que uma simples vendedora de flores e atrair clientes curiosos com os conhecimentos adicionais de ervas medicinais.

No fundo, sei que ela pensou que havia contratado uma bruxa e não serei eu quem contará a verdade a ela, pois se trata de uma verdade controversa e obscura demais para uma velinha dotada de bondade como ela. O que ela acredita é bem melhor do que a decepção que realmente sou. Atiro minha bolsa no balcão junto às chaves.

Ajudo o garoto a se sentar no sofá encostado na parede – o papel de parede azul esverdeado com detalhes em dourado está maravilhoso sem respingos de sangue e espero que continue assim – e corro para a cristaleira amadeirada do outro lado da sala, à procura de bandagens decentes. O móvel que deveria guardar taças e copos caros em alguma sala chique e refinada repleta de luxuosos lustres e divãs, abriga livros, pedras rústicas e cristais polidos, velas e potinhos com ervas diversas. Não sou do tipo que mantém um kit de primeiros socorros por perto, nunca fui desastrada para precisar de um de prontidão caso necessário, por isso, tenho que improvisar algo para esterilizar e acelerar o processo de cura.

Separo uma bandeja – o metal frio aninhado nos braços – o vidrinho com calêndula e outro com camomila, agarro o pilão de pedra cinza lisa, um pedaço de algodão e giro nos calcanhares, abrindo espaço na mesa ao centro com a mão livre. Estou ciente que ele acompanha cada movimento meu e que seus olhos se arregalam a cada ingrediente suspeito que pego. Abro a gaveta da mesa para pegar uma adaga – a deixo ali por precaução, o que considero justo devido ao meu histórico e se ter uma arma afiada por perto me acalma, então que seja – e volto para a parte da frente da loja. Corto uma folha de Aloe vera e retorno.

— Que merda ela é? – A voz dele soa trêmula e fraca, quase rouca ao se direcionar a mim.

Ignoro cortando a babosa na metade e despejando sua substância grudenta no pilão, junto as outras ervas. Amasso elas até formarem uma pasta aromática, porém com uma cor de longe, agradável.

Aquilo era... – O mortal interrompeu a si mesmo, recusando-se a terminar a frase e a concluir a horripilante revelação diante dele. Há um espelho redondo e prateado na parede e abaixo dele um aparador antigo que serve de apoio para uma garrafa de tequila e dois copos arredondados curtos. Envolvo a bebida e a despejo na bandeja sobre a mesa, enxarcando os algodões.

Vou até o sofá, sentando-me ao lado dele e puxo o braço ferido para meu colo. Ele franze o nariz com o odor de álcool forte.

— Espere, isso é...

— Tequila. – Respondo espremendo uma bolinha para tirar o excesso da bebida e a pressiono nos buracos onde as presas da vampira estiveram.

— Ai! – O garoto se contorne e afundo as unhas no antebraço, mantendo firme o algodão para desinfetar a mordida.

— Preciso limpar, ou vai infeccionar! – Digo puxando-o de volta. Percebo que seus olhos se fixam em meu resto por um instante, talvez me odiando, talvez me agradecendo. Talvez os dois. Molho o algodão no liquido outra vez e o volto da ferida, passando-o delicadamente nos furinhos das presas. — Era isso, ou nada e nada não mata bactérias.

Deve arder muito e mesmo assim, ele obedece e fica parado, deixando-me limpar a ferida, aguentando a dor. Quando o efeito do veneno passar, a sensação dolorosa virá em dobro e ninguém desejaria estar na pele dele. Limpo até o sangramento parar e dispenso a bandeja no chão com os algodões ensanguentados e a tequila avermelhada. Pego o pilão com a pasta de ervas, uso os dedos para juntar uma boa quantidade e espalho sobre a mordida, rosada e inchada. O sinto recuar de leve e se obrigar a ficar ali até que eu termine.

— Você é médica? – Ele arqueia uma sobrancelha voltando o olhar para minhas mãos ocupadas e melecadas com a pasta.

— Pareço uma? – Torno a pergunta sentindo a pele quente sob as pontas dos dedos. Febre. Nada bom.

— Não. – O mortal conclui assistindo os movimentos sutis, sua pele latejando ao meu toque. Se eu posso senti-la assim, o quão doloroso deve estar para ele agora?

— Pronto. – O liberto do aperto e da tortura curativa, juntando o que usei na bandeja. — Não toque. Não se mova. A pasta vai secar logo. – Oriento já de pé e indo para a mesa central.

Analiso a bagunça que fiz no desespero e há papéis espalhados pelo tapete persa – relatórios de vendas, encomendas e contatos de vendedores para os quais preciso ligar amanhã de manhã para repor o estoque de coisas que faltam – o porta canetas caído e esparramando elas pela mesa, gotas de tequila na madeira marrom escura, fiapos de algodão e ervas que escaparam dos punhados. Resquícios do que houvera ali. Um ritual de cura arcaico, do tipo realizado por curandeiras nos séculos passados. Não, até mesmo as curandeiras eram mais aparamentadas do que eu em uma sala nos fundos de uma floricultura no centro da cidade.

Deixo a desordem para amanhã cedo e pela primeira vez, desde que chegamos ali, respiro fundo. Aliviada, sinto a corrente de adrenalina diminuir a tremedeira e o suor das mãos. Estou cansada e minhas costas doem e sequer é por tê-lo carregado por mais de cinco quadras até a loja. As cicatrizem voltam a incomodar, ou eu é que volto a senti-las latejando e me lembrando que estão ali, incapazes de serem esquecidas.

Sirvo mais tequila em dois copos agora e caminho até o sofá, há respingos de sangue por todo o chão, bordas do tapete e no próprio estofado roxo. Merda. Mais uma coisa para resolver sem que Dáhlia saiba. Tudo bem, a sala foi dada a mim, mas a ideia de saber estar sentada sobre o sangue de alguém é algo que prefiro repelir. Não há gelo para tornar as bebidas mais suaves, porém sento e estendo uma a ele.

— Pode ajudar com a dor. – O garoto me encara de olhos semicerrados – Desculpe, meu estoque de analgésicos acabou.

Ele pondera a decisão de aceitar a bebida e dou de ombros, virando em um só gole a minha dose alcoólica. O liquido transparente queima e desce quente pela garganta, relaxando todos os músculos tensos. Jogo a cabeça para trás no encosto alto do sofá e fecho os olhos por um instante.

Acabou. Está tudo certo. Então por que o ar ainda parece pesado e as energias conturbadas?

Sinto a atenção do mortal fixa em mim e espero que diga qualquer dar milhares de coisas que deve estar pensado nesse minuto. Para pessoas como eu encontrar seres sobrenaturais por aí é apenas mais um dia comum. Contudo, para ele... Quero avançar para dentro da mente dele, espiar lá dentro e descobrir o que ele pensa sobre a última meia hora e praguejo por dois motivos: Um deles é por simplesmente, estar desejando a magia depois de seis anos sem ela – o que me torna a mesma fada egoísta por cogitar usar a magia, por me sentir superior ao estranho sentado ao lado – e o outro motivo: devo explicações, sem dúvida. Se deixar esse garoto sair dessa sala sem, ao menos, tranquiliza-lo, existe uma grande chance de ele pirar lá fora.

Ainda não acabou. Se acalme, por favor. Se acalme. Imploro.

— Diga qualquer coisa, só tente não surtar. – Murmuro cansada para elevar o tom de voz. Carregá-lo, após enfrentar uma vampira e correr para que ele não sangrasse até a morte me exauriu.

— Pedir para alguém que acabou de ser atacado por uma vampira tentar manter a calma é um tanto sem noção. – Seus dedos da mão esquerda deslizam pelos cabelos loiros bagunçados e suas pálpebras se arregalam demonstrando o início de um surto. — Meu Deus, eu disse isso mesmo?

Suspiro com um pingo de irritação e viro a cabeça o mínimo necessário para olhá-lo. Procuro as palavras certas para explicar que uma vampira sugou o sangue dele, um ser que na concepção dos humanos não deveria existir, existe de fato.

— Resumindo – As esmeraldas das irises dele estão escuras e brilham na meia luz do ambiente. Enxergo medo e choque e angustia nelas. — Vampiros são tão reais quanto eu e você. Sei que parece loucura e difícil de acreditar, mas eles estão por aí e uma delas quase o matou. Se não fosse por mim, estaria apodrecendo naquele fundo de bar sem uma gota de sangue nas veias e cheirando a bebida, então, de nada.

A expressão dele é um misto de terror, medo e confusão. O loiro corre o olhar pelas manchas de sangue no sofá, nas roupas e no chão, para um segundo na pasta em seu braço – endurecendo sobre a pele ferida – e se fixa em mim, analisando cada detalhe que acredito eu, o ajuda a não pirar ou desmaiar ou enlouquecer. Ele vira o copo de tequila de uma só vez e faz uma careta para o gosto forte do álcool. Depois, me entrega o copo.

— Por que me ajudou? – O garoto quer saber e capturo seus olhos semicerrados em desconfiança. Ignoro o rubor nas bochechas e o calor que sobe pelas minhas pernas sem saber de onde e por qual razão eles surgiram. Sim, ele está todo acabado e cheio de sangue pelo corpo, com olheiras de horas de sono privadas e roupas amassadas. Por que isso causaria qualquer reação corporal e carnal em mim? Pisco recusando tal ideia e desvio o olhar, pegando o copo de seus dedos e me levanto, repelindo a sensação quente do toque.

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