02

Repreendo a mim mesma e simplesmente ignoro o fato de ter pensado nas luas de Illinea. As entidades mágicas, pilares de um reino que já não faço parte. Deveria ter parado de fazer preces a elas há seis anos.

A carruagem. A torre. A morte. Um carro guiado por cavalos carregando seu soberano, uma torre única de pedras desmoronando e levando junto os moradores e um ser cadavérico ceifando com sua foice afiada a vida dos que o cercam.

— Três dos arcanos maiores que representam uma mudança drástica. – A mulher suspira de pesar. — Detesto a torre.

A lembrança do calabouço do castelo, da cela pequena, escura e suja em que fiquei presa por dois séculos, antes da rainha decidir me levar a julgamento arrepia todos os pelinhos presentes em meu corpo, gelando a alma e somando mais duzentos anos aos meus quatrocentos. Foi nessa época que parei de contar, mas os anos passaram igual. Abaixo os olhos para o baralho revelado. Péssimo!

— Você amava o seu lar, mas foi obrigada a deixa-lo como consequência dos atos imprudentes e precipitados. Os sentimentos a controlando desde sempre, verdade? Ilusões e mais ilusões e então, a queda brusca. – Sou tomada pelas palavras da cartomante, dolorosas e frias, chegam a ser cruéis em certo ponto, um ponto que ela não tem o dever de saber que é o meu limite. Permito que prossiga me olhando, enquanto fala o meu destino desastroso: — A carta da morte te aconselha a superar o passado e aceitar as mudanças, se abrir para o novo horizonte que está diante de você, mesmo que doa. Quando nos permitimos queimar pelos nossos pecados é preciso renascer das cinzas.

— Ninguém aprecia sair da sua zona de conforto. – Forço um sorriso e praguejo pelos cantos dos lábios que estremecem, demonstrando o quanto estou nervosa e ansiosa com tudo aquilo. Deveria ter ido embora, deveria estar em casa, confortável e cega sobre o que me espera. Mas, por que não cutucar o futuro e fazê-lo se revelar para atormentar meus pesadelos? Genial, Amara!

O olhar vago da cartomante – longe e perdido, onde quer que esteja – ganha foco e ela sorri de volta. Um lampejo triste banha as pupilas negras dilatadas e profundas. As pálpebras úmidas e acumulando gotinhas salgadas, uma delas escorre pelas maçãs do rosto e aquelas pupilas agarram as minhas com uma força sobrenatural, invisível e intensa. Aquilo é magia, magia de verdade, do tipo que eu não vejo há anos, desde que perdi a minha.

Desde que a arrancaram de mim. Seus olhos pairam de novo sobre o pingente em meu pescoço e sobem aos meus.

— Sinto muito pela sua perda, Amara.

Engulo a pena dela e o bolo arranha a garganta, batendo fundo no estômago. É o suficiente. Aquela frase desperta cada nervo sob a pele e uma corrente elétrica os percorre, sendo incômoda nas costas, ardendo nas cicatrizes como um leve formigamento. Desencosto da cadeira e os músculos reclamam os movimentos. Um lembrete da dor e do sofrimento do dia em que cortaram minhas asas e roubaram minha magia. Minha essência feérica se fora há anos e ainda dói. Dói não, lateja nas finas linhas entre as omoplatas.

Sinto o sangue gelar e a sensação de que algo está errado nos arredores inunda meu cérebro, ativando um tipo de alerta que ecoa cada vez mais alto e somente eu posso escutá-lo. Como uma esponja, meu interior suga a energia negativa fluindo de uma das ruas ao redor da praça, afogando cada gota de positividade e calma.

— Não me lembro de ter mencionado meu nome. – Digo e a bruxa seca a lágrima solitária rapidamente, mandando o resto delas embora. Mais um sorriso.

— O que você chama de intuição, alguns chamam de magia. – Ela arruma as cartas em um monte só e as deixa ao lado da vela branca queimando.

Insuportável. A dor nas cicatrizes feito pontadas de facas as abrindo novamente.

— E do que você chama? – Pergunto correndo os olhos pela praça, a procura do que desencadeou as dores, a aflição e a negatividade.

— Trabalho. – A resposta soa divertida, mesmo por cima da minha desconfiança momentânea e dos últimos minutos constrangedores. A cartomante vira mais do meu passado que eu pretendia, mais do que ela mesma achava necessário para esclarecer o futuro e interpretar o tarô. Ela sabia que pessoas importantes morreram, que eu fui responsável pela morte delas e por isso sentira muito. Minha mão é pega pelos dedos dela e eles começam a passear pelas linhas da palma.

Avisto o motivo das energias ruins que me atingem, perseguindo um garoto desatento e perdido no próprio mundo com seus fones de ouvidos e moletom. Por um instante, imagino se aquelas roupas são adequadas para um fim de tarde quente, mas logo retomo ao ponto principal. Ele é seguido por uma coisa má. Muito ruim.

Volto-me para a cartomante e sorrio puxando a mão sem parecer rude.

— Desculpe, preciso ir. – Falo procurando algumas notas dentro da bolsa que pagariam o serviço dela. As entrego e recebo um gesto de negação.

— Não precisa. Considere como um presente, por ter me ajudado antes. – Ela dá a volta na mesa e estica a mão para mim. — A propósito, sou Freya.

— Obrigada, Freya. – Agradeço a gentileza ao apertar sua mão calejada.

— Até breve, Amara.

Dou as costas e contenho a pressa em correr até estar longe o bastante para me embrenhar na multidão longe das mesinhas. Acelero os passos para atravessar a rua e os toldos cobrem a luz do sol nas calçadas estreitas dos bares que começam a encher como início da noite. Mantenho os olhos no garoto e na mulher que o persegue, alta e loira dentro de um vestido de paetê dourado e curto demais. As botas pretas e altas dela sobem contornando as penas torneadas deixando-a mais alta do que realmente é.

Ele é conduzido para um beco um pouco distante de onde eu estava três minutos atrás, mal iluminado e úmido com algumas latas de lixo na porta dos fundos de algum bar. O cheiro de bebida velha, restos de comida, cigarro e urina me atingem e franzo o nariz repudiando o odor horrível. Apoiada contra a parede, espio a situação para entender do que se trata. As pontadas e o formigamento ainda fortes me dizem que estou no lugar certo, mas que nada de bom sairá dali se não a impedir.

A garota tem um rosto bonito e sexy o suficiente para encantá-lo. Jovem demais para uma mulher adulta e experiente demais para uma adolescente rebelde qualquer. Ela o apoia nas lixeiras e meu estômago enjoa com a sequência de beijos quentes e mãos bobas.

Eu ainda tento entender o porquê das malditas pontadas quando aquilo se parece mais como dois adolescentes se pegando em um beco qualquer depois de encherem a cara de bebida barata e outros narcóticos. Até que vejo. Vejo os dentes afiados como presas saírem das gengivas quando a garota aproxima o pulso dele dos lábios, camuflando sua verdadeira intenção com os beijos sedutores e lotados do veneno que atordoa a mente humana e amortece o tecido nervoso para que suas vítimas não sintam a dor da mordida e do sangue deixando as veias.

— Eu não faria isso se fosse você. – Interfiro à vista deles com passos cautelosos. Ela é uma vampira e eu uma fada sem magia.

Estúpida ou estúpida por enfrentar um ser como ela sem ter meios de defesa?

A vampira apenas me encara por alguns segundos antes de enfiar as presas no pulso do garoto anestesiado. Seus olhos presos em mim, desafiadores e inconsequentes. Ela solta o braço dele depois de beber o que julgou necessário para me afrontar e se coloca a frente dele.

— Ops! Eu já fiz. – Desdenha mostrando os dentes avermelhados. O liquido espesso e escarlate escorre do queixo e pinga no chão. — E agora vou fazer com você.

Em uma rajada de vento e perfume doce, a loira fica a menos de dois centímetros de distância e sua respiração aquece o espaço entre minha clavícula e orelha. Meus músculos se tencionam e praguejo por meu coração acelerar para atiçar mais a vampira a me morder como fez com o garoto inocente. Ela me fareja, franze o nariz e se afasta.

— Você não é humana. – Constata passando os olhos sobre mim com certa repulsa. Permaneço com a cabeça erguida, um pouco arrogante demais para aquele momento, talvez, eu deva ser mais cautelosa e menos imprudente. Mais uma farejada e em outra rajada de vento ela corre para longe de mim e do mortal ainda hipnotizado pelo veneno. Em posição de alerta, ela conclui: — Feérica. Não preciso atrair problemas para o meu clã, principalmente com o seu povo!

— Então sugiro que pare de fazer deles sua geladeira ambulante. – Retruco ficando entre ela e o garoto preparada para qualquer reviravolta que ocorra caso essa conversa civilizada evolua para uma briga feia e sangrenta, na qual eu perderia por motivos óbvios. Mas, a vampira não precisa saber que sua oponente é uma fada que deveria estar morta e sem poderes e que a rainha mal sabe – ou sequer se importa – que sobrevivera.

— Porque vocês feéricos são sempre tão arrogantes com suas leis ridículas e as asinhas sem graça? – A loira resmunga com as mãos na cintura fina. O cabelo longo e liso tocando os dedos. — Elas realmente existem? Nunca vi nenhuma fada voando por aí. Por que vocês não ficam no seu reino, ao invés de virem bisbilhotar aqui?

— Asas são delicadas demais para serem expostas aos olhos alheios.

Como se eu ainda possuísse as minhas!

— É por isso que todos preferem as bruxas! – Ela revira os olhos e sorri sadicamente para a segunda pergunta dela que ignorei. — Elas não se acham superiores e cá entre nós, são bem mais divertidas.

Quando pisco, a vampira some junto com os últimos raios de sol daquele dia. Respiro fundo e noto que sequer respirei antes de ela ter partido. Minha tensão diminui e consigo mover minhas pernas em direção ao garoto. Os joelhos dele cedem e o seguro antes que ele caia como um saco de carne e ossos moles.

Seus dedos se fecham em meus braços, conseguindo o apoio que precisa para se manter em pé e encontro as grandes e brilhantes esmeraldas que são seus olhos. A luz do único poste ali pende sobre nossas cabeças reluzindo os fios dourados do cabelo bagunçado dele e sangue escorre da mordida no pulso, respingando em meus braços e sapatos.

Droga! Meus saltos favoritos!

— Você vai ficar bem. – Tento tranquilizá-lo. Seguro seu rosto com uma das mãos e o faço continuar me olhando. Tudo o que eu não preciso é que esse garoto desmaie bem aqui e agora. Preciso leva-lo para um lugar seguro antes que mais um vampiro apareça e decida acabar com ambos.

Nova Orleans é mais que uma cidade turística tomada pelo Jazz. É também o berço de muitas criaturas como eu. Banidas de suas casas ou não. Criaturas da noite que trazem o caos e o mal por onde passam e criaturas do dia, o que não exclui a possibilidade de serem somente dotadas de boas intenções como Freya. O mal está em todos os lugares e às vezes, se disfarça para conseguir o que quer e causar destruição.

— Temos que te tirar daqui. – O tom emergencial em minha voz o ajuda a se orientar novamente. Mas, para onde? Minha casa? Muito longe e ele precisa de cuidados agora. Um hospital? Não, teríamos que dar explicações que jamais convenceriam os médicos. Minha bolsa pende em meu braço e lembro das chaves da floricultura. — Consegue andar?

Um aceno de cabeça em concordância é tudo o que obtenho. Então, passo o braço dele por cima dos ombros e o meu ao redor dele. A loja fica a algumas quadras e estou torcendo para que ele aguente até lá.

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