Khadija Aziz
Cemitério de Miami
Bem, a farsa acabou, penso olhando para o verde sombrio repleto de lápides e rodeado por cercas e portões de ferro. O céu está cinza, combinando com este dia tão triste. Uma brisa gelada farfalha pela copa das árvores. Apenas os canteiros de flores vermelhas e amarelas vibrantes quebram o aspecto sombrio do local.
Intranquila eu olho de soslaio para o mais novo Sheik. Rashid Jael Barak. Ele está ali, em silêncio, não olha para mim, apenas encara o caixão do pai sendo baixado, ouvindo o Shaykh dizer algumas palavras de alento.
Pó ao pó... O Sheik Al Jain está morto, penso sendo imergida pelo desânimo, desanimo este que parece me sufocar, me inundar. Eu realmente gostava dele, ele era um homem sábio, pacato e de sorriso fácil.
Uma multidão de pessoas está presente para se despedir, e entre essas pessoas está o Zafir, irmão do Rashid, que segura um grande guarda-chuva preto e está ao lado da esposa com um bebê de um ano no colo.
Rashid conversou muito pouco com o irmão, mas o pouco que conversou, ficou muito fragilizado, e acabou chorando abraçado a ele.
Pelo que pude entender, o Sheik escondeu de todos a sua doença —uma cardiopatia grave —somente o Rashid sabia. Somente nos últimos dias de vida do Sheik isso foi revelado e todos os filhos foram chamados. Mas para a tristeza de todos, Al Jain morreu dois dias depois. Nesses dois dias eu permaneci trancada no quarto. Simulei um grande resfriado.
Qual é o meu papel nessa família?
Esta é uma pergunta que eu sempre me faço.
Por que eu sou a namorada de mentira do Rashid? Até hoje eu me pergunto porque o Rashid é tão fechado. Ele pode ter a garota que quiser, mas escolheu a mim para viver essa farsa.
Duvido que alguém entenda o Rashid. Nem mesmo seus próprios familiares o entendem. Ele é um homem difícil de se decifrar.
Eu o amo desde o início. Um amor intenso e forte, mas infelizmente conheço meu papel nesta história, além disso, eu acredito que ele não me ache digna para ser a sua esposa.
Eu não sou a mulher que Rashid sonhou para estar ao seu lado. Sou apenas uma odalisca que ele conheceu em um bar árabe e que a livrou de uma situação e acabou lhe amparando em um momento difícil.
Nos últimos meses, eu vivi balançada entre o êxtase e o desânimo. O êxtase por me sentir tão bem ao lado dele e o desânimo por tudo não passar de uma grande mentira.
Já estamos há três meses juntos. Eu acho que nem o Rashid esperava que seu pai moribundo vivesse por tanto tempo. Mas agora com a morte do Sheik a farsa acabou, e o pior é que há algum tempo eu me atrevi a sonhar, a ter ideias ridículas sobre a minha relação com o Rashid.
Ele é tão arrogante, penso enquanto o observo passar a mão pelos cabelos despenteados. Mas ao mesmo tempo penso que ele é instigante, charmoso e exala sensualidade e testosterona por todos os poros
Rashid me olha e pega a minha mão, mais uma vez.
—Acabou. Vamos para casa.
Eu assinto sem nada dizer. O que eu posso dizer em uma hora como essa?
Caminhamos até o sedã preto, seus brutamontes sempre na nossa cola.
No caminho eu tropeço. Rashid me segura a tempo de eu não me esborrachar no chão. Ele puxa o meu braço com tanta força, que eu acabo trombando nele.
—Cuidado, Kadija! —Ele fala como se fosse minha culpa, como se eu tivesse feito de propósito.
Eu o encaro indignada, mas ao mesmo tempo inalo o seu cheiro limpo e o seu perfume maravilhoso. Ele é simplesmente inebriante.
Continuamos a caminhar, agora começa a cair uma garoa fina. Seus guarda-costas logo chegam e seguram guarda-chuvas sobre nós conforme nós andamos.
Durante todo este tempo em que estive com ele não consegui decifrá-lo.
Juro que tentei!
Eu o acompanhei em jantares de negócios e em festas, em todos esses lugares. Em todos esses lugares, ele só disse o meu nome. Ele nunca me apresentou como a sua namorada ou a sua noiva.
A nossa farsa parece estar restrita ao interior da casa, apenas para que o seu pai moribundo morresse em paz, para que acreditasse que o seu filho quarentão finalmente sossegou e se acertou com alguém, que está feliz com a mulher que ele escolheu como esposa.
Já dentro do carro eu levanto o meu olhar para encará-lo. Ele está tão perto de mim, gostaria de poder tocá-lo e abraçá-lo, mas eu respeito todas as suas regras, as suas malditas regras. Só ele pode vir até mim, só ele pode me procurar, jamais o contrário.
Seus olhos encontram-se com os meus por algum tempo, mas ele quebra o contato e vira a cabeça para a janela. Eu fungo com uma expressão carrancuda.
O que passa pela sua mente neste momento? O que ele fará comigo agora?
Um homem tão rico e tão solitário. Ele pode estar cercado de gente mas eu sinto a sua solidão, é tão densa que parece que posso tocá-la.
Meus olhos varrem a sua figura, embevecidos. Ele está lindo neste terno negro. Suas mãos descansam sobre o assento do carro. Elas são morenas e enormes, aliás, não são apenas as mãos que são enormes, tudo nele é muito grande.
O vidro a prova de som que nos separa do motorista está erguido, e em um momento de ousadia eu cravo as unhas na palma das mãos e pergunto:
—Rashid, o que você fará agora? Como ficamos?
Ele se vira na minha direção, seus olhos me estudam, e somente depois responde:
—No carro não. —Diz seco.
Claro!
Allah! Que insensível eu sou.
Por estar tão preocupada com a minha condição não pude me conter. Com um suspiro, eu viro a minha cabeça em direção à janela. Sinto uma espécie de agitação misturada com mais alguma coisa: uma angústia sem nome.
Me sinto culpada por sentir essas coisas, nem quando o meu irmão estava no hospital à beira da morte eu me senti beirando o descontrole e a histeria como agora.
Não! Não se culpe, repito isso para mim mesma.
Meu irmão estava sofrendo tanto com o câncer que é natural eu achar que ele descansou com a morte.
O carro embica na frente da propriedade e logo os portões se abrem. O carro desliza pelo caminho feito de paralelepípedos. Quando estaciona, um dos seus homens abre a porta do lado do Rashid. Lá fora o frio é relativo, mas eu reluto em sair, e não é por conta da temperatura. Agora o meu destino será traçado. Meus pensamentos estão desordenados e descontrolados.
Por que eu fui me envolver tanto?
Agora eu percebo que fazê-lo se apaixonar por mim se revelou uma tarefa além das minhas habilidades, e mesmo desesperada, eu tento manter a calma para enfrentar o nosso afastamento e o seu adeus.
Saio do carro e seguro a mão que ele me oferece. Estremeço pelo nervosismo. Rashid percebe e tira o seu sobretudo, colocando-o sobre mim, pensando ser frio o que sinto, mas o meu inverno é na alma.
—Coloque isso.
Esses seus momentos de cuidado comigo e as suas inesperadas demonstrações de ciúmes, me fazem sonhar que ele pode estar mais ligado a mim do que se permite estar.
Subimos os degraus até a varanda e depois entramos no espaçoso hall, por fim chegamos a uma grande sala de estar.
A enorme mansão vazia é deprimente. Rashid finalmente se vira para mim. O vazio no seu olhar é ainda maior do que aquilo que estou sentindo. Fecho mais o seu sobretudo em torno do meu corpo, seu cheiro está impregnado nele. Assim eu espero encontrar algum conforto diante da expectativa pelo que ele está prestes a me dizer.
—Vá para o seu quarto e me espere lá.
Tenho um milhão de perguntas, mas eu engulo todas elas. Minha esperança é que ele queira conversar, mas percebo que a esta altura ele não se importa mais com o que eu prefiro. É visível que ele não está em condições de conversar, e é nítido que eu estou nas suas mãos e não o contrário.
—Rashid, eu imagino a dor que está sentindo. Descanse. Se você quiser não precisamos tratar deste assunto exatamente agora.
—Tudo bem, vá para o seu quarto.
Eu assinto com tristeza. Retiro o sobretudo e o coloco sobre o sofá, me afastando em seguida. Vou até o quarto de hóspedes que temporariamente eu ocupo.
Me encosto na porta e fecho os olhos, me rendo então às lágrimas, fatigada por lutar contra elas.
Entro no banheiro e tranco a porta. Não quero que Rashid me veja chorando. De repente todas as regras que ele ditou antes que tudo acontecesse estão tão vívidas, elas piscam no meu cérebro, como um mantra.
O desespero me levou a entrar nesta situação e agora eu estou pagando caro por isso. O Rashid jamais vai me olhar de igual para igual.
Meus pensamentos me levam a lembrar como tudo começou....
Essa é a nossa história, um amor unilateral. Eu me pego me lembrando em como os nossos caminhos se cruzaram...Três meses atrás...Conheci Rashid em um dia chuvoso, uma época difícil da minha vida. Meu irmão tinha acabado de falecer e eu já morava há dois meses em um albergue para mulheres. Local horrível. Havia um banheiro que eu dividia com mais nove pessoas, mas isso nem era o pior. Como se não bastasse tudo isso, eu ainda tinha uma tremenda dívida com o hospital que tratou do meu irmão.Nesse dia eu dancei como um robô, naquela noite eu fiz o meu papel de odalisca. Diverti os presentes, mas eu não via a hora de sair daquele lugar, queria chorar em algum canto.Quando terminei o meu trabalho me troquei rapidamente. Eu não tinha predileção por roupas caras nem nada disso. Eu nem sabia o que estava na moda, me vestia de forma desleixada. Agora no papel de odalisca eu sempre passei outra imagem, a de uma mulher linda e exuberante, que sempre chamava a atenção do seu público.Neste dia
No dia seguinte eu vou trabalhar. Visto o meu traje para dançar. Um biquíni branco com adereços e véus presos a ele. Maqueio o meu rosto como de costume, reforçando mais a área dos olhos com uma sombra escura, lápis preto, e delineador.Hoje me parece uma daquelas noites em que absolutamente nada fica fora do lugar. Passo os olhos pelas mesas baixas nos clientes sentados em almofadas. Homens sozinhos, famílias inteiras, homens e mulheres acompanhados. Estaco quando eu o reconheço. Na última mesa à direita está sentado o meu salvador, que tem a sua atenção voltada exclusivamente para mim.Os refletores se acendem, me envolvendo, e o palco se enche de suaves nuvens de fumaça. Eu ergo os braços e coloco uma das minhas pernas torneadas para frente, algumas pessoas assobiam com o meu gesto. Assim que a música Laily Lail de Mario Reyes e Carole Samaha se inicia eu começo a dançar, mexo freneticamente as minhas pernas e quadris. Agora eu não sou mais uma mulher comum, eu visto o personagem
Eu toco no meu pescoço e deslizo a mão sobre ele, incapaz de parar o gesto de nervosismo, querendo desesperadamente que ele pare de me olhar desta maneira tão estudada e tão intensa. Seus olhos negros tempestuosos me mantêm cativa.Ele abre a porta do carro e me convida para entrar fazendo um gesto com a sua mão.—Entre.Eu congelo, sem conseguir me mover. Rashid se aproxima e para na minha frente.—Eu não vou te fazer mal, ontem eu te salvei. Acho que comportamentos assim geram segurança, não?Eu estremeço diante do seu olhar quente.—Você não é nenhum mafioso ou coisa do tipo, é?Ele inclina a cabeça para trás e ri, sua garganta bronzeada zombando de mim, quase tanto quanto a sua risada musical. Eu tento lutar contra a chama do desejo que percorre o meu corpo.—Não, não sou. —Ele diz fazendo um esforço supremo para conter a sua risada. —Gosto disso, da sua ingenuidade em relação a quem eu sou. Por favor, entre e ouça a minha proposta.Eu me sinto emocionalmente confusa, me criticand
Ele sorri de forma apreciativa.—Ótimo. Esse cargo que você ocupará não permitirá que você tenha compromissos fora, nem com ninguém.Eu respiro fundo tentando entender aonde ele quer chegar com tudo isso. O que ele vai me propor?—Você tem parentes? —Uma nova pergunta.Com o coração agitado respondo:—Não, sou só eu.Ele me olha pensativamente.—Eu andei te investigando. Descobri que tem uma grande dívida no São Marcos.O quê? Meu coração dá um salto no peito e minhas mãos tremem.Por que me investigar? Por que diabos ele precisava saber disso?—Sei que está confusa, mas tive que entrar na sua vida para saber com quem eu estava lidando.—Então deve saber tudo sobre mim. Por que me perguntou se tenho namorado ou parentes?—Para você entender que se aceitar o que eu vou te propor, sua vida sentimental será zero. Amigos, parentes, tudo deve sumir nesse momento. Você se dedicará exclusivamente ao seu cargo.Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ele está completamente à vontade, enquanto
Eu estremeço.—Entendo.Ele se aproxima de mim, assustada dou um passo para trás. Ele sorri e olha para mim por vários momentos, e eu não consigo ler sua expressão. Fico mais desconfortável a cada segundo que passa. Ele é enorme, agora que percebo como ele é forte e alto.—Khadija. —Ele fala como se tivesse provando meu nome com sua língua. —Você precisa aprender a relaxar comigo. Meu pai é muito perspicaz. Se cada vez que eu me aproximar, você saltar como fez agora, tudo irá por água abaixo.Silencio por um momento. Eu estou muito ofegante, de repente começo a sentir esse prazer inexplicável que corre através de mim, que não é tão invisível quanto eu penso que é. Minhas bochechas aquecem. Meu coração está agitado no peito. Balanço a cabeça apenas concordando, lutando para manter meus olhos fixos nos dele.Seus olhos descem para os meus lábios. Eu estremeço, pois sei o que ele fará. Posso ver seu coração agitado como o meu, ele também está ofegante. Então ele me puxa para os seus braç
No dia seguinte fico em frente ao espelho e dou uma última olhada na minha figura. Meu vestido tubinho preto vai até o joelho. Meus cabelos negros estão soltos, mas devidamente bem penteados, a maquiagem é leve. Não sou eu naquela imagem refletida no espelho, mas sei que de agora em diante eu vou ter que me vestir dessa maneira.Saio do quarto e caminho em direção aos elevadores. Os saltos altos nos meus pés me lembram do quanto eu me sinto desconfortável com eles.A secretária simpática de Rashid me recebe com um sorriso. E como da outra vez, eu entro no escritório do Rashid sem bater.Meu coração acelera como sempre acontece quando eu estou prestes a vê-lo. Não entendo muito o porquê dessa minha reação, mas respirar fica sempre mais difícil quando dou de cara com esses olhos negros.Rashid sorri para mim, um sorriso torto. Imediatamente isso envia ondas de calor pelo meu corpo. Eu sorrio com frieza para ele, pois o que eu menos quero é demonstrar que babo por ele.Posso sentir o rub
Algo que sem dúvida chamou minha atenção – e não era preciso ser muito observadora – foi o quanto essa família parecia gostar de lutas, das batalhas e guerras. Nas salas da seção central da mansão, que são decoradas em madeiras nobres, nos escritórios internos e nas suas bibliotecas, estão dispostas armas antigas. Ali, um arcabuz de algum tempo muito anterior à guerra civil; em outra parede, alabardas e espadas medievais. Ao lado da estante, na biblioteca, armaduras de cota de malha.É nessa mansão que se iniciou a minha história. Na casa antiga que domina uma colina de onde se pode ver o mar logo abaixo, que quebra em uma linda praia particular de areias claras.Depois que Rashid me mostrou a casa, o pai dele surgiu na sala para me conhecer. Rashid nessa hora envolveu minha cintura e com um sorriso me apresentou para ele. Foi neste momento que eu me apaixonei pelo velhinho simpático e de sorriso fácil. Quem olhasse para ele não diria que estava doente ou com problemas sérios de saúde
Eu concordo. Rashid dá um sorriso lento e me puxa de encontro a ele. Tudo isso é uma farsa? Eu me pergunto quando vejo o calor do seu olhar. Com a respiração presa nos meus pulmões, observo a sua boca. Meu corpo inteiro vibra quando ele me puxa ainda mais perto e desce os lábios sobre os meus. Ele deveria ir para o inferno por ser tão sedutor. Sua língua invade a minha boca e se move sobre a minha. Meu coração se agita.Uma mão se enrosca nos meus cabelos e agarra uma mecha deles, de modo que o meu rosto se incline mais para o seu. Ele me beija longamente, e só vai me soltando aos poucos.— Então, vamos recapitular — Ele diz quando se inclina para sussurrar no meu ouvido. —Quando eu estiver em casa nós vamos encenar, debaixo dessas câmeras seremos bem convincentes. O meu pai é muito esperto e com toda certeza ele vai buscar as imagens para saber como está evoluindo o namoro.Logo depois ele me afasta.—De vez em quando vou precisar entrar no seu quarto e ficar algum tempo por lá.Eu e