POV CATARINA
— Ai, mãe, o que eu vou fazer sem a senhora? — dizia a mim mesma, deitada na cama do meu quarto. Eu olhava uma foto dela na galeria do meu celular. Chorei um pouco — a dor continuava ali. Eu não queria estar vivendo meu luto daquele jeito: sendo acusada de ser uma golpista por José Eduardo. Se havia uma coisa que minha mãe me ensinou, era ser honesta. Peguei no sono, mas durou pouco. Corine veio ao meu quarto perguntar se eu precisava de ajuda para me arrumar. — Posso fazer algum penteado. Não sou das melhores, mas dou um jeito. — Ah, Corine, obrigada. Mas meu tio disse que não vai ser nada muito grandioso. Então acho que só vou passar algum olhinho nas pontas do cabelo e uma maquiagem leve. — Uhum, faz bem então. E olha, fico feliz que tenha decidido ficar. Não sabe o quanto fará bem ao senhor Nestor. — Jura? Por quê? — Nada, menina. Tem coisas que você vai entender ao longo do tempo. Apenas fique mesmo. Você é luz, já deu pra perceber. Parece que foi Deus que mandou Corine ali para me dizer aquelas palavras. Às vezes, quando estamos devastadas por sermos acusadas ou diminuídas, palavras como as dela vêm para nos dar ânimo. — Eu agradeço, flor. Não sabe o quanto é bom ouvir isso. — Não há o que agradecer. Então se arrume. Até mais tarde. — Pode deixar. Até. Abri minha mala simples, e a primeira coisa que vi foi o vestidinho de estampa florida que foi da minha mãe. Lembro que ela ficava linda nele e, desde nova, quis usá-lo. — Quando ficar grande, eu te dou ele. Mas agora não tem nem estrutura, Catarina. Ainda é muito pequena — disse minha mãe certa vez. — Jura juradinho? — Como as estrelas que estão no céu. Eu juro. — Tá bom, mãe. O vestido me evocou essa lembrança, e meu coração se apertou. Eu usaria aquele vestido em homenagem ao grande amor da minha vida: a minha mãe. * Levei pouco tempo na maquiagem. O vestido não tinha muito segredo. Já o cabelo, passei o óleo e prendi uma parte com uma presilha. Ficou casual, mas delicado. Olhei de frente para o espelho de corpo inteiro, dando uma última checada para ver se estava tudo certo. — Me proteja, mãe. De onde a senhora estiver, me mande luz. Vou te amar pra sempre. Suspirei profundamente e fui para o jantar de boas-vindas. Já ia dar quase oito horas. ⸻ POV JOSÉ EDUARDO — Mano, que festa é essa? — disse Pedro, velho amigo de José Eduardo. — Meu tio trouxe uma garota pra cá, dizendo que é sobrinha dele, e vai dar um jantar de recepção. Duas garotas se aproximaram, uma delas era Natália, antigo caso de José. — Eu ouvi direito? Seu tio trouxe uma mulher pra cá? — Sim, Nat. Dá pra acreditar? — Mas que ideia louca. Que sobrinha é essa? — perguntou Pedro. — Longa história. Mas ele sempre falou de uma irmã que sumiu no mundo quando era nova. Aí essa garota ligou dizendo que era filha dessa irmã, sobrinha do meu pai. — E seu pai acreditou? — riu Natália com cinismo. — Feito um patinho. Mas não vou deixar barato. Vou enxotar essa garota da nossa casa. — Por isso mandou todo mundo vir arrumado? — perguntou Leila, a outra garota. — Uhum. Ela acha que vai ser um jantar simples, e geral vai vir elegante. Ela vai se sentir o patinho feio. — Vai ser divertido! — disse Natália. — Essa eu quero ver — falou Pedro. — Eu também mal posso esperar, galera. Tô contando os minutos pra ver a vigarista passar a maior vergonha. Mas não vou deixar ninguém tirar proveito do meu pai e da nossa família. ⸻ POV CATARINA Caminhei pelo corredor e já ouvia o burburinho de conversas vindas da sala. Meu tio disse que seria intimista, por isso estranhei o barulho. Descia as escadas lentamente, receosa, quase fazendo uma prece para que minha mãe me ajudasse mesmo e que nada desse errado. Era um mau pressentimento. Assim que acessei a sala de estar, me deparei com um monte de gente bem trajada, mulheres bem vestidas, homens de terno. O primeiro a me ver foi José Eduardo, que estava em uma roda de amigos com uma taça de champanhe nas mãos. — Ah, se não chegou a nossa homenageada. Olhem, pessoal, a minha querida priminha desaparecida! Ele me apontou e, automaticamente, virei o centro das atenções. Todos — principalmente as mulheres — me repararam dos pés à cabeça e começaram a cochichar. Uma em específico, que estava na rodinha de José Eduardo, cochichou com outra do grupo e começou a rir. Fiquei mais constrangida ainda. — Venha se apresentar, priminha, venha! ⸻ POV JOSÉ EDUARDO — Agora eu quero ver essa vigarista se dar bem — disse José Eduardo para Pedro. — Essa aí é a garota? Sua suposta prima? — É sim. Pedro deu um gole em sua bebida. — Uau. Natália riu sem graça. — Uau, Pedro? Olha pra ela, cafona! — Pode ser, mas ela é bonita pra caramba. José Eduardo, meu amigo, ela é boa. — Cala a boca, Pedro. É uma impostora! — falei. Mas eu não podia negar que Catarina estava bonita naquele vestido, mesmo sendo singelo. E não pude ignorar também seu semblante ingênuo, o medo estampado no rosto como um cervo na savana, prestes a ser devorado por leões. Eu engoli em seco, tento empurrar a saliva espessa com um gole de champanhe, mas desceu rasgando. Por alguns instantes, senti pena e arrependimento por ter planejado aquilo. Mas já era tarde. O circo já estava armado.POV CATARINAEu estava sem reação, sentindo meu corpo tremer e uma vontade imensa de fugir dali, sair correndo para um lugar solitário e chorar.Logo percebi que José Eduardo estava por trás daquilo, daquele constrangimento. Beirava a psicopatia, pura maldade. Ele nem me conhecia para chegar ao ponto de armar uma situação dessas só para me humilhar. Por quê?Procurei meu tio pela multidão, mas não o encontrei. Era desesperador.— Oi, mana, eu amei o seu vestidinho. Uma gracinha. Prazer, Natália. — disse a moça que riu de mim lá na rodinha de José Eduardo, agora me encarando de perto.— Oi. — falei, sem graça.— José me disse que você é a prima desaparecida dele. Deve estar feliz.Eu percebi logo de cara que essa menina era má. Devia ser pior que José Eduardo.— Estou. Ele é meu tio.— Hum… deve ser felicidade em dobro. Um tio rico não aparece todos os dias.— Não é por isso. Com licença, vou procurá-lo, inclusive.Antes que eu pudesse me afastar, um dos amigos de José Eduardo obstruiu
POV JOSÉ EDUARDO— Não sei do que tá falando, pai. Inclusive, vou voltar pra minha turminha.— Ah, mas não vai mesmo. Cadê a Cata… — Meu pai parou a frase assim que viu Catarina perto da geladeira, chorando.— Ela tá bem. Já falei com ela — eu disse, tentando minimizar a situação.— O que você fez com ela, José Eduardo? — Meu pai passou por mim e foi até Catarina. — Filha, ele tocou em você?— Pai, que história é essa de tocar nela? Eu não agrido mulheres! Que coisa!— Cale essa matraca, José Eduardo. Eu não te dei esse tipo de educação!Meu pai a abraçou.— Tá tudo bem, tio. Tá tudo bem…— Ah, agora vai se fazer de vítima, a pobre camponesa coitadinha. Vai na onda dela, pai, e a gente vai acabar na sarjeta!— Saia, José Eduardo. Saia antes que eu perca a cabeça.— Pai, eu sou seu filho!— Já disse pra ir, agora! E depois vai me explicar essa história de mandar todo mundo vir com traje a rigor!— Não viaja. E quanto a você, garota, parabéns! Conseguiu colocar meu pai contra mim. Fui!
POV CATARINAEu estava ali, na beira da piscina, refletindo. O acolhimento do tio Nestor me ajudou a colocar a cabeça no lugar. Fora isso, pensava nas vezes em que a minha mãe me acalmou, dizendo para viver um problema de cada vez. Eu deveria seguir os conselhos dela. Um leão por dia.— Obrigada, mãe. Esteja onde estiver — falei, olhando pro céu.— Oi, fofinha. Acho que deixou algo cair na água! — Era a voz de Nathalia.Ela e Leila se aproximaram sem que eu tivesse notado.— Não sei… caiu? — perguntei, olhando pra água azul.Mas tudo que vi foi meu reflexo tremendo nas ondinhas.— Ah, me enganei… mas acho que vai cair.Nisso, Nathalia me empurrou. Ela não teria feito isso se tivesse gente por perto. Além do mais, Leila ficou na frente, tapando a visão de quem pudesse ver de dentro da casa.Dei um leve grito e bati os braços no ar, mas não foi o suficiente para recuperar o equilíbrio. Caí na água, afundando.Eu não sabia nadar.⸻POV JOSÉ EDUARDOEu ainda estava completamente enfurecid
POV JOSÉ EDUARDO— Abram espaço, ela desmaiou! — gritei para a multidão aglomerada ao redor.— Meu Deus, o que houve com ela? — perguntou meu pai, todo afoito.— Caiu na água! Depois a gente conversa sobre isso. Preciso deitá-la em algum lugar.— Vamos levá-la para dentro! — disse Corine, a governanta.— Minha sobrinha, meu Deus! Pobrezinha!— Ai, gente, para que esse escândalo? Ela só desmaiou. Nem se afogou de verdade. Saiu andando e tudo! — disse Nathalia.— Também acho. Daqui a pouco ela acorda! — completou Leila.Eu estava atordoado tentando ajudar Catarina. Fiquei com medo do pior. Então, diante da confusão, peguei Catarina nos braços e a levei para dentro. Eu notei que Nathalia e Leila tentaram entrar na sala também. — Nada disso, vocês duas ficam aí fora! — disse Corine a Leila e Nathalia.— Mas queremos ajudar!— Se precisar, a gente chama, viu, Nathalia? Vai curtir com o pessoal!Eu gostava das duas, mas Corine fez bem em deixá-las de fora. Só gerariam mais tumulto.— Ai,
POV CATARINAAcordei toda úmida depois de ter caído na piscina e desmaiado nos braços de José Eduardo. Não vi como fui parar no sofá da sala — só abri os olhos e me deparei com José Eduardo… me beijando.Corine e tio Nestor se aproximaram depois que esbofeteei meu primo no rosto.Na hora, eu estava com raiva, mas em seguida me arrependi, pensando se não havia exagerado.— Você está bem? Tá sentindo alguma coisa? — perguntou Corine, preocupada.— Não, eu tô melhor — respondi, ainda meio zonza.— Graças a Deus, minha filha! — disse tio Nestor, aliviado.— O que houve? — perguntei, sem graça. Eu ia completar com “… pra José Eduardo me beijar”, mas me calei. Acho que Corine e meu tio subentenderam.— José estava apenas fazendo respiração boca a boca. Nós que pedimos a ele — explicou meu tio.— Sim, ele ficou receoso. Não imaginávamos que você ficaria zangada. O pobre só tentou ajudar! — disse Corine, sorrindo.Fiquei vermelha de vergonha.— Meu Deus, como fui estúpida!— Não foi, menina.
POV CATARINA José Eduardo estava vestindo apenas uma toalha. Os cabelos estavam úmidos e bagunçados e no tórax firme dele escorriam gotas de água. Não tinha se secado direito.Também consegui ver o restante da musculatura do tronco, definida, com veias saltando levemente por baixo da pele. Seu cheiro era de algum sabonete cítrico… ou erva doce. — Que foi? — Disse ele tirando os olhos de mim e olhando pra si mesmo — Tem algo de errado comigo, garota? Fala aí o que você quer!Eu engoli em seco lutando pra tirar os olhos do abdome dele. — É… bem… — Hum… Tô te ouvindo. — Sei lá, eu vim pedir desculpas por ter te dado o tapa. José Eduardo deixou a porta e caminhou pra dentro do quarto. Nesse momento pude ver as costas largas, igualmente definidas. — Entra aí. Travei. Eu não ia entrar no quarto dele. — Não precisa. Só vim te pedir desculpas mesmo. Já vou pra cama. — Larga de ser otaria só uma vez e entra no quarto, caramba! O corredor estava vazio. Após pensar alguns segundos eu
Mudanças — Não vá, mãe. Não me deixe só! — Eu disse debruçado sobre o leito de morte da minha mãe. — Filha, faça o que te disse — A voz era cansada — ligue para o seu tio. Ligue para ele — mamãe tossia — eu sempre vou te amar. Após me olhar com os olhos marejados e acariciar meu rosto, mamãe deu o último suspiro e fechou os olhos. Fiquei apenas eu com aquele corpo frio tomado de silêncio. ~*~Meu nome é Catarina. Depois que meu pai nos abandonou, ficamos apenas mamãe e eu. Nós recuperamos e vivíamos bem, até ela ter uma doença grave e morrer. Eu tinha acabado de completar dezoito anos e planejava entrar pra faculdade muito em breve. Mas após ficar sozinha, talvez esse sonho devesse ser adiado .Após o velório da mame eu cheguei em casa e peguei o pedaço de papel onde ela anotou o número de telefone do meu tio distante. Ela nunca gostava de falar desse meu tio ou dos parentes dela. Eu não os conheci. Parece que mamãe fugiu para casar com meu pai e a família dela era contra. Mas
Sou indesejada — José Eduardo, essa é sua prima, Catarina.— Eu sei, pai. O senhor mandou por mensagem.Eu ainda morria de vergonha. Os dois conversavam como se eu nem estivesse ali.— Então a trate como ela merece.José Eduardo riu.— Tá de brincadeira, pai? A gente nem sabe se essa garota é quem diz ser.— Espera aí, tá achando que eu menti? — falei, levemente contrariada.— Nunca se sabe, garota. Você surgiu do nada. É fácil dizer que é sobrinha de um milionário. Só precisa provar primeiro.— José Eduardo, eu ordeno que pare! — disse meu tio, firme.— Eu paro quando o senhor tiver a razão de pensar antes de trazer uma estranha pra morar dentro de casa. Ela pode ser uma golpista que vai nos roubar!— Escuta aqui! Eu nunca roubei ninguém e nunca vou roubar! Isso é um absurdo! — falei, tentando não chorar.— Não ligue pra isso, Catarina — meu tio me abraçou.— Eu acho que seu filho tem razão… Eu vou voltar pra minha casa.— De jeito nenhum! Não vou permitir!José Eduardo riu.— Essa