Mudanças
— Não vá, mãe. Não me deixe só! — Eu disse debruçado sobre o leito de morte da minha mãe. — Filha, faça o que te disse — A voz era cansada — ligue para o seu tio. Ligue para ele — mamãe tossia — eu sempre vou te amar. Após me olhar com os olhos marejados e acariciar meu rosto, mamãe deu o último suspiro e fechou os olhos. Fiquei apenas eu com aquele corpo frio tomado de silêncio. ~*~ Meu nome é Catarina. Depois que meu pai nos abandonou, ficamos apenas mamãe e eu. Nós recuperamos e vivíamos bem, até ela ter uma doença grave e morrer. Eu tinha acabado de completar dezoito anos e planejava entrar pra faculdade muito em breve. Mas após ficar sozinha, talvez esse sonho devesse ser adiado . Após o velório da mame eu cheguei em casa e peguei o pedaço de papel onde ela anotou o número de telefone do meu tio distante. Ela nunca gostava de falar desse meu tio ou dos parentes dela. Eu não os conheci. Parece que mamãe fugiu para casar com meu pai e a família dela era contra. Mas sabendo que eu ficaria sozinha ela decidiu deixar o orgulho de lado. — Nestor, meu irmão, tem um grande coração. Ele vai ajudá-la, filha. — Me disse dias antes de partir. Ainda devastada, eu peguei meu celular e disquei. Chamou algumas vezes e nada de atenderem. Quando eu já pretendia desistir, ouvi uma voz. — Alô? — Oi. — Quem fala? — Perguntou a voz rouca de um homem. — Você é Nestor Dalagnol? — Sou sim. Quem deseja? — Você conhece Eugenia Dalagnol? Um silêncio do outro lado da linha seguido de um suspiro longo. — Minha irmã. Minha querida irmã. Mas ela sumiu há anos. Tem notícias dela? — Tenho. — Me segurei pra não chorar — Ela faleceu, infelizmente. Outro silêncio. — Isso é um trote, menina? — Não! Não é. — Falei. — Quem é você? An? Eu hesitei alguns segundos. — Senhor, eu sou a filha dela. Sou sua sobrinha! ~*~ Após essa conversa, tio Nestor se assegurou de que não era um trote . Ao ter certeza de que era eu mesma sua sobrinha, ele me ordenou que ficasse onde estava e que viria até mim. Eu achei que fosse mentira, que ele não viria. Mas passadas uma hora da ligação, dois carros pretos chiques estacionaram em frente a nossa humilde casa. Dele desceu um homem de óculos de sol, cabelos e barba grisalhos. Era imponente e com cara de bem sucedido . Abri a porta um pouco envergonhada. Mas assim que tio Nestor tirou os óculos eu percebi seu olhar de bondade. Não me disse nada a princípio, apenas me abraçou como se estivesse tirando um peso da alma, matando alguma saudade. — Eu sinto muito, minha filha. — Está tudo bem. Tio Nestor pegou minha mandíbula por entre as mãos e ficou reparando meu rosto. — Se parece tanto com Eugenia. Tão linda quanto. — Obrigada. E desculpe te ligar assim… — Não. Não, que isso, minha sobrinha! Devia ter ligado antes. Você vive aqui sozinha? — perguntou reparando a casa humilde com alguma reprovação. — Vivo agora desde que minha mãe partiu. — Crrto. Certo… junte suas coisas ou venha como está. Vai pra minha fazenda comigo. Eu me assustei. Não queria sair dali. — Não posso. Eu quero ficar. — Não será seguro, Catarina. Vocês — Tio Nestor chamou dois homens que acompanhavam no carro de trás — Ajudem minha sobrinha com as coisas. Eu não tenho tempo. Eu até pensei em contrargumebtar, mas talvez ficar ali sozinha fosse perigoso. Não era o bairro mais seguro. — Escuta, tio Nestor, não quero incomodar… — Não incomoda. Você é sangue do meu sangue. De agora em diante é minha responsabilidade. Agora vá lá e mostre o que vai levar. Vai entender que seu tio é ocupado. Sua ternura era como a de um pai, eu não consegui contraria-lo. Fiz o que mandou. ~*~ Levamos uma hora de carro até a fazenda. O cenário saiu do urbano onde eu vivia para uma área cheia de árvores e clima fresco. Estava caindo a tarde e o crepúsculo laranja tingia o céu. — Vou cuida de você, minha sobrinha. Vai se dar bem com José Eduardo. — Quem é José Eduard0, tio? — Meu filho adotivo. Seu primo. Ele é um pouco mais Velho que você. Será bom pra ele conviver com alguém da mesma idade. Eu senti um arrepio, como se algo fosse dar errado. — Ah, sim. Quero conhecê-lo então. O carro parou em frente a uma casa enorme, digna de novela. Na porta surgiram algumas empregada uniformizadas que se apressaram a ajudar com as coisas. — Quero que mostrem o quarto para Catarina. Deixaram tudo pronto como mandei? — Sim senhor, só falta colocar as flores. — Disse uma empregada. — Como assim? — Tio Nestor chegou o relógio — Tem mais de uma hora que mandei fazerem isso. Liguei pessoalmente. Ficou um silêncio. — Vamos resolver, senhor Nestor. Meu tio ficou em silêncio, mas seu olhar de reprovação dizia muito. — Não se assuste, minha sobrinha, se eu não for enérgico nada funciona. — Tudo bem, tio. Eu entendi. Assim que nós preparávamos para entrar, um barulho alto de motor de carro atraiu nossa atenção. Era um carro esportivo vermelho parecido com uma Ferrari. Ele parou logo atrás do carro do tio Nestor. Do automóvel desceu um homem alto, com cabelo bem penteado, barba levemente crescida. Trajava óculos de sol, vestia camiseta branca e um jeans casual. Ele mascava um chiclete que estranhamente o tornava charmoso. O rapaz deu alguns passos para próximo de nós. — Esse é meu filho, Catarina, José Eduardo. — Ah, seu pai falou de você! — Falei este é o a mão toda sorridente. José Eduardo retirou os óculos e me mediu. Não retribuiu o sorriso. — Pai, podemos conversar no escritório? Eu senti minha barriga doer e minha cara corar. Não precisava ser inteligente pra notar que José Eduardo me reprovou.Sou indesejada — José Eduardo, essa é sua prima, Catarina.— Eu sei, pai. O senhor mandou por mensagem.Eu ainda morria de vergonha. Os dois conversavam como se eu nem estivesse ali.— Então a trate como ela merece.José Eduardo riu.— Tá de brincadeira, pai? A gente nem sabe se essa garota é quem diz ser.— Espera aí, tá achando que eu menti? — falei, levemente contrariada.— Nunca se sabe, garota. Você surgiu do nada. É fácil dizer que é sobrinha de um milionário. Só precisa provar primeiro.— José Eduardo, eu ordeno que pare! — disse meu tio, firme.— Eu paro quando o senhor tiver a razão de pensar antes de trazer uma estranha pra morar dentro de casa. Ela pode ser uma golpista que vai nos roubar!— Escuta aqui! Eu nunca roubei ninguém e nunca vou roubar! Isso é um absurdo! — falei, tentando não chorar.— Não ligue pra isso, Catarina — meu tio me abraçou.— Eu acho que seu filho tem razão… Eu vou voltar pra minha casa.— De jeito nenhum! Não vou permitir!José Eduardo riu.— Essa
— Se veio aqui me destratar, eu já tô indo embora.Sem pedir licença, ele entrou.— Embora? Ah, conta outra, menina. Já está até de roupão, como se sempre tivesse vivido aqui!Me afastei alguns passos quando José Eduardo fechou a porta atrás de si, obstruindo a saída. Ele parecia um armário de tão grande. Eu não conseguiria sair dali tão fácil.— Eu já disse que vou partir ainda hoje.José Eduardo se aproximou e alisou a gola do meu roupão de algodão, quase tocando a minha pele.— Coisa boa. Não deve estar acostumada com algo assim, né?— Não, não estou. Mas de onde eu venho, a honestidade basta. Essas coisas chiques não me compram! — falei com coragem, me afastando dele.— Olha, devo admitir: você é boa. Convincente. Mas vigaristas da sua laia eu conheço de longe.— Ah, José Eduardo… Não te conheço, mas já percebi que é arrogante e se acha muito esperto.Acho que ele não esperava minha ironia. Eu não ia bancar a coitada.— Eu não me acho. Eu sou.— Mas não parece. Agora, se puder sai
Enquanto me vestia, fiquei pensando que seria tolice permanecer ali. Nem tinham se passado algumas horas e eu já estava com dor de cabeça. Aquela ajuda não estava me dando paz. O certo seria partir dali.O telefone tocou, interrompendo meus pensamentos.— Desça aqui, minha sobrinha.— Claro, tio. Aconteceu algo?— Não, apenas quero vê-la. Saber como está.— Ah, sim. Um instante e já estou aí.Tio Nestor compreenderia meus motivos para ir embora. Eu não queria ser um peso naquela casa, nem motivo de conflito entre ele e José Eduardo.Levei algum tempo para encontrar o escritório. A casa era grande demais.Quando finalmente encontrei a porta certa, senti alívio. Estava com medo de esbarrar com meu primo.— Pois não, tio?Ele estava sentado atrás de sua mesa de madeira. Tudo ali dentro era suntuoso, com uma grande biblioteca atrás de si e até uma lareira. Havia um cheiro bom no ar, algo entre madeira e fumaça leve, defumado talvez.— Ah, você aí! — sorriu ele, tirando os olhos dos papéis
POV CATARINA— Ai, mãe, o que eu vou fazer sem a senhora? — dizia a mim mesma, deitada na cama do meu quarto.Eu olhava uma foto dela na galeria do meu celular. Chorei um pouco — a dor continuava ali. Eu não queria estar vivendo meu luto daquele jeito: sendo acusada de ser uma golpista por José Eduardo. Se havia uma coisa que minha mãe me ensinou, era ser honesta.Peguei no sono, mas durou pouco. Corine veio ao meu quarto perguntar se eu precisava de ajuda para me arrumar.— Posso fazer algum penteado. Não sou das melhores, mas dou um jeito.— Ah, Corine, obrigada. Mas meu tio disse que não vai ser nada muito grandioso. Então acho que só vou passar algum olhinho nas pontas do cabelo e uma maquiagem leve.— Uhum, faz bem então. E olha, fico feliz que tenha decidido ficar. Não sabe o quanto fará bem ao senhor Nestor.— Jura? Por quê?— Nada, menina. Tem coisas que você vai entender ao longo do tempo. Apenas fique mesmo. Você é luz, já deu pra perceber.Parece que foi Deus que mandou Cor
POV CATARINAEu estava sem reação, sentindo meu corpo tremer e uma vontade imensa de fugir dali, sair correndo para um lugar solitário e chorar.Logo percebi que José Eduardo estava por trás daquilo, daquele constrangimento. Beirava a psicopatia, pura maldade. Ele nem me conhecia para chegar ao ponto de armar uma situação dessas só para me humilhar. Por quê?Procurei meu tio pela multidão, mas não o encontrei. Era desesperador.— Oi, mana, eu amei o seu vestidinho. Uma gracinha. Prazer, Natália. — disse a moça que riu de mim lá na rodinha de José Eduardo, agora me encarando de perto.— Oi. — falei, sem graça.— José me disse que você é a prima desaparecida dele. Deve estar feliz.Eu percebi logo de cara que essa menina era má. Devia ser pior que José Eduardo.— Estou. Ele é meu tio.— Hum… deve ser felicidade em dobro. Um tio rico não aparece todos os dias.— Não é por isso. Com licença, vou procurá-lo, inclusive.Antes que eu pudesse me afastar, um dos amigos de José Eduardo obstruiu
POV JOSÉ EDUARDO— Não sei do que tá falando, pai. Inclusive, vou voltar pra minha turminha.— Ah, mas não vai mesmo. Cadê a Cata… — Meu pai parou a frase assim que viu Catarina perto da geladeira, chorando.— Ela tá bem. Já falei com ela — eu disse, tentando minimizar a situação.— O que você fez com ela, José Eduardo? — Meu pai passou por mim e foi até Catarina. — Filha, ele tocou em você?— Pai, que história é essa de tocar nela? Eu não agrido mulheres! Que coisa!— Cale essa matraca, José Eduardo. Eu não te dei esse tipo de educação!Meu pai a abraçou.— Tá tudo bem, tio. Tá tudo bem…— Ah, agora vai se fazer de vítima, a pobre camponesa coitadinha. Vai na onda dela, pai, e a gente vai acabar na sarjeta!— Saia, José Eduardo. Saia antes que eu perca a cabeça.— Pai, eu sou seu filho!— Já disse pra ir, agora! E depois vai me explicar essa história de mandar todo mundo vir com traje a rigor!— Não viaja. E quanto a você, garota, parabéns! Conseguiu colocar meu pai contra mim. Fui!
POV CATARINAEu estava ali, na beira da piscina, refletindo. O acolhimento do tio Nestor me ajudou a colocar a cabeça no lugar. Fora isso, pensava nas vezes em que a minha mãe me acalmou, dizendo para viver um problema de cada vez. Eu deveria seguir os conselhos dela. Um leão por dia.— Obrigada, mãe. Esteja onde estiver — falei, olhando pro céu.— Oi, fofinha. Acho que deixou algo cair na água! — Era a voz de Nathalia.Ela e Leila se aproximaram sem que eu tivesse notado.— Não sei… caiu? — perguntei, olhando pra água azul.Mas tudo que vi foi meu reflexo tremendo nas ondinhas.— Ah, me enganei… mas acho que vai cair.Nisso, Nathalia me empurrou. Ela não teria feito isso se tivesse gente por perto. Além do mais, Leila ficou na frente, tapando a visão de quem pudesse ver de dentro da casa.Dei um leve grito e bati os braços no ar, mas não foi o suficiente para recuperar o equilíbrio. Caí na água, afundando.Eu não sabia nadar.⸻POV JOSÉ EDUARDOEu ainda estava completamente enfurecid
POV JOSÉ EDUARDO— Abram espaço, ela desmaiou! — gritei para a multidão aglomerada ao redor.— Meu Deus, o que houve com ela? — perguntou meu pai, todo afoito.— Caiu na água! Depois a gente conversa sobre isso. Preciso deitá-la em algum lugar.— Vamos levá-la para dentro! — disse Corine, a governanta.— Minha sobrinha, meu Deus! Pobrezinha!— Ai, gente, para que esse escândalo? Ela só desmaiou. Nem se afogou de verdade. Saiu andando e tudo! — disse Nathalia.— Também acho. Daqui a pouco ela acorda! — completou Leila.Eu estava atordoado tentando ajudar Catarina. Fiquei com medo do pior. Então, diante da confusão, peguei Catarina nos braços e a levei para dentro. Eu notei que Nathalia e Leila tentaram entrar na sala também. — Nada disso, vocês duas ficam aí fora! — disse Corine a Leila e Nathalia.— Mas queremos ajudar!— Se precisar, a gente chama, viu, Nathalia? Vai curtir com o pessoal!Eu gostava das duas, mas Corine fez bem em deixá-las de fora. Só gerariam mais tumulto.— Ai,