Enquanto me vestia, fiquei pensando que seria tolice permanecer ali. Nem tinham se passado algumas horas e eu já estava com dor de cabeça. Aquela ajuda não estava me dando paz. O certo seria partir dali.
O telefone tocou, interrompendo meus pensamentos. — Desça aqui, minha sobrinha. — Claro, tio. Aconteceu algo? — Não, apenas quero vê-la. Saber como está. — Ah, sim. Um instante e já estou aí. Tio Nestor compreenderia meus motivos para ir embora. Eu não queria ser um peso naquela casa, nem motivo de conflito entre ele e José Eduardo. Levei algum tempo para encontrar o escritório. A casa era grande demais. Quando finalmente encontrei a porta certa, senti alívio. Estava com medo de esbarrar com meu primo. — Pois não, tio? Ele estava sentado atrás de sua mesa de madeira. Tudo ali dentro era suntuoso, com uma grande biblioteca atrás de si e até uma lareira. Havia um cheiro bom no ar, algo entre madeira e fumaça leve, defumado talvez. — Ah, você aí! — sorriu ele, tirando os olhos dos papéis. — Venha cá. Sente-se. Fiz o que ele pediu. — Então, tio… eu acredito que precisarei mesmo ir. — Escuta, filha, não ligue para o José Eduardo. Ele tem o gênio forte, mas tem um bom coração também. Logo essa tensão vai passar. — Eu entendo. Mas não creio que valha a pena causar desconforto aqui. Manterei contato, mas talvez o melhor seja eu voltar pra casa. — Pois saiba que ficarei muito chateado se você for embora. Você representa os anos perdidos que o destino me roubou com Eugênia! Nesse momento, ele repousou a mão sobre a minha, quase como uma súplica. — Eu sinto muito, tio… Mas, de todo modo, o senhor nem sabe se eu sou quem digo ser. — Eu não preciso de provas, Catarina. Eu sinto aqui no meu coração. Além disso, você é parecida com a minha irmã. E mais: se quisesse provar — o que acho uma besteira — bastaria mostrar sua certidão de nascimento. — Sim, sim… isso é fácil. Mas acredito que José Eduardo vai contestar, vai dizer que eu fraudei. Só vai me causar mais dor de cabeça. — José Eduardo não sabe de nada. Vá por mim, fique. O olhar dele era de cortar o coração. — Eu não sei… — Confia no seu tio. Não vá para aquele lugar ficar sozinha. Eu pensava. — Tá bom, eu fico. — Ah, que maravilha, meu doce! Não sabe o quanto me deixa feliz. — Mas por um tempo… até fazermos o teste de DNA. — Não precisa de DNA, Catarina. — Mas eu quero, tio. Vai evitar dores de cabeça. — Ainda acho bobagem. Mas, se quiser… por mim, tudo bem. — Eu prefiro. E obrigada, tio. Obrigada mesmo. Tenho muita sorte de ter te encontrado. Ele sorriu de forma fraternal. — Eu tenho mais sorte, minha sobrinha. Não sabe o quanto estou contente. Apesar de ter perdido Eugênia antes, e agora de forma definitiva, eu sinto que Deus me trouxe você como um consolo para esses anos de perdas. As palavras dele eram bonitas e acolhedoras. Certamente, permanecer um tempo perto dele me ajudaria a superar o luto pela perda da mamãe. — Agora vá se arrumar, minha filha… — Arrumar? — Sim, se arrumar. Convidei alguns amigos para comemorar. — Não entendi, tio… — Comemorar a sua chegada, ué! Isso é motivo para festejar. — Tio… eu não tenho nem roupa pra isso! — Vai ser algo mais íntimo. Fique calma. Vista-se da forma que se sentir mais confortável. — Eu… — Só vá e se arrume. Quero mostrar ao mundo a minha sobrinha. Tio Nestor parecia tão contente que eu fiquei quieta, apesar de sentir o estômago se retorcer de ansiedade. Eu não esperava uma recepção com pessoas do círculo do meu tio… provavelmente ricas, polidas, e acostumadas com um mundo que eu não conhecia. Eu era só uma pobretona sem modos. — Ok, vou me arrumar então. Que horas, tio? — Às oito. Em ponto. — Certo. Até lá. * POV JOSÉ EDUARDO Eu voltava para o meu quarto quando escutei o burburinho vindo do escritório do meu pai. Ele falava com a vigarista que se dizia minha prima. Organizavam um coquetel de boas-vindas pra ela. Um absurdo sem fim. A tal da Catarina não ia mesmo embora. — Hum… coquetel simplesinho. Vai ser bom pra essa garota entender onde se meteu. Eu comecei a bolar um plano. Peguei o celular e mandei uma mensagem no grupo dos primos e amigos: “Escuta, galera, vai ter um jantar importante aqui em casa hoje. Vistam as melhores roupas de vocês. Às oito começa. Tô esperando todo mundo. Falou.” — Vamos ver quem manda, priminha.POV CATARINA— Ai, mãe, o que eu vou fazer sem a senhora? — dizia a mim mesma, deitada na cama do meu quarto.Eu olhava uma foto dela na galeria do meu celular. Chorei um pouco — a dor continuava ali. Eu não queria estar vivendo meu luto daquele jeito: sendo acusada de ser uma golpista por José Eduardo. Se havia uma coisa que minha mãe me ensinou, era ser honesta.Peguei no sono, mas durou pouco. Corine veio ao meu quarto perguntar se eu precisava de ajuda para me arrumar.— Posso fazer algum penteado. Não sou das melhores, mas dou um jeito.— Ah, Corine, obrigada. Mas meu tio disse que não vai ser nada muito grandioso. Então acho que só vou passar algum olhinho nas pontas do cabelo e uma maquiagem leve.— Uhum, faz bem então. E olha, fico feliz que tenha decidido ficar. Não sabe o quanto fará bem ao senhor Nestor.— Jura? Por quê?— Nada, menina. Tem coisas que você vai entender ao longo do tempo. Apenas fique mesmo. Você é luz, já deu pra perceber.Parece que foi Deus que mandou Cor
POV CATARINAEu estava sem reação, sentindo meu corpo tremer e uma vontade imensa de fugir dali, sair correndo para um lugar solitário e chorar.Logo percebi que José Eduardo estava por trás daquilo, daquele constrangimento. Beirava a psicopatia, pura maldade. Ele nem me conhecia para chegar ao ponto de armar uma situação dessas só para me humilhar. Por quê?Procurei meu tio pela multidão, mas não o encontrei. Era desesperador.— Oi, mana, eu amei o seu vestidinho. Uma gracinha. Prazer, Natália. — disse a moça que riu de mim lá na rodinha de José Eduardo, agora me encarando de perto.— Oi. — falei, sem graça.— José me disse que você é a prima desaparecida dele. Deve estar feliz.Eu percebi logo de cara que essa menina era má. Devia ser pior que José Eduardo.— Estou. Ele é meu tio.— Hum… deve ser felicidade em dobro. Um tio rico não aparece todos os dias.— Não é por isso. Com licença, vou procurá-lo, inclusive.Antes que eu pudesse me afastar, um dos amigos de José Eduardo obstruiu
POV JOSÉ EDUARDO— Não sei do que tá falando, pai. Inclusive, vou voltar pra minha turminha.— Ah, mas não vai mesmo. Cadê a Cata… — Meu pai parou a frase assim que viu Catarina perto da geladeira, chorando.— Ela tá bem. Já falei com ela — eu disse, tentando minimizar a situação.— O que você fez com ela, José Eduardo? — Meu pai passou por mim e foi até Catarina. — Filha, ele tocou em você?— Pai, que história é essa de tocar nela? Eu não agrido mulheres! Que coisa!— Cale essa matraca, José Eduardo. Eu não te dei esse tipo de educação!Meu pai a abraçou.— Tá tudo bem, tio. Tá tudo bem…— Ah, agora vai se fazer de vítima, a pobre camponesa coitadinha. Vai na onda dela, pai, e a gente vai acabar na sarjeta!— Saia, José Eduardo. Saia antes que eu perca a cabeça.— Pai, eu sou seu filho!— Já disse pra ir, agora! E depois vai me explicar essa história de mandar todo mundo vir com traje a rigor!— Não viaja. E quanto a você, garota, parabéns! Conseguiu colocar meu pai contra mim. Fui!
POV CATARINAEu estava ali, na beira da piscina, refletindo. O acolhimento do tio Nestor me ajudou a colocar a cabeça no lugar. Fora isso, pensava nas vezes em que a minha mãe me acalmou, dizendo para viver um problema de cada vez. Eu deveria seguir os conselhos dela. Um leão por dia.— Obrigada, mãe. Esteja onde estiver — falei, olhando pro céu.— Oi, fofinha. Acho que deixou algo cair na água! — Era a voz de Nathalia.Ela e Leila se aproximaram sem que eu tivesse notado.— Não sei… caiu? — perguntei, olhando pra água azul.Mas tudo que vi foi meu reflexo tremendo nas ondinhas.— Ah, me enganei… mas acho que vai cair.Nisso, Nathalia me empurrou. Ela não teria feito isso se tivesse gente por perto. Além do mais, Leila ficou na frente, tapando a visão de quem pudesse ver de dentro da casa.Dei um leve grito e bati os braços no ar, mas não foi o suficiente para recuperar o equilíbrio. Caí na água, afundando.Eu não sabia nadar.⸻POV JOSÉ EDUARDOEu ainda estava completamente enfurecid
POV JOSÉ EDUARDO— Abram espaço, ela desmaiou! — gritei para a multidão aglomerada ao redor.— Meu Deus, o que houve com ela? — perguntou meu pai, todo afoito.— Caiu na água! Depois a gente conversa sobre isso. Preciso deitá-la em algum lugar.— Vamos levá-la para dentro! — disse Corine, a governanta.— Minha sobrinha, meu Deus! Pobrezinha!— Ai, gente, para que esse escândalo? Ela só desmaiou. Nem se afogou de verdade. Saiu andando e tudo! — disse Nathalia.— Também acho. Daqui a pouco ela acorda! — completou Leila.Eu estava atordoado tentando ajudar Catarina. Fiquei com medo do pior. Então, diante da confusão, peguei Catarina nos braços e a levei para dentro. Eu notei que Nathalia e Leila tentaram entrar na sala também. — Nada disso, vocês duas ficam aí fora! — disse Corine a Leila e Nathalia.— Mas queremos ajudar!— Se precisar, a gente chama, viu, Nathalia? Vai curtir com o pessoal!Eu gostava das duas, mas Corine fez bem em deixá-las de fora. Só gerariam mais tumulto.— Ai,
POV CATARINAAcordei toda úmida depois de ter caído na piscina e desmaiado nos braços de José Eduardo. Não vi como fui parar no sofá da sala — só abri os olhos e me deparei com José Eduardo… me beijando.Corine e tio Nestor se aproximaram depois que esbofeteei meu primo no rosto.Na hora, eu estava com raiva, mas em seguida me arrependi, pensando se não havia exagerado.— Você está bem? Tá sentindo alguma coisa? — perguntou Corine, preocupada.— Não, eu tô melhor — respondi, ainda meio zonza.— Graças a Deus, minha filha! — disse tio Nestor, aliviado.— O que houve? — perguntei, sem graça. Eu ia completar com “… pra José Eduardo me beijar”, mas me calei. Acho que Corine e meu tio subentenderam.— José estava apenas fazendo respiração boca a boca. Nós que pedimos a ele — explicou meu tio.— Sim, ele ficou receoso. Não imaginávamos que você ficaria zangada. O pobre só tentou ajudar! — disse Corine, sorrindo.Fiquei vermelha de vergonha.— Meu Deus, como fui estúpida!— Não foi, menina.
POV CATARINA José Eduardo estava vestindo apenas uma toalha. Os cabelos estavam úmidos e bagunçados e no tórax firme dele escorriam gotas de água. Não tinha se secado direito.Também consegui ver o restante da musculatura do tronco, definida, com veias saltando levemente por baixo da pele. Seu cheiro era de algum sabonete cítrico… ou erva doce. — Que foi? — Disse ele tirando os olhos de mim e olhando pra si mesmo — Tem algo de errado comigo, garota? Fala aí o que você quer!Eu engoli em seco lutando pra tirar os olhos do abdome dele. — É… bem… — Hum… Tô te ouvindo. — Sei lá, eu vim pedir desculpas por ter te dado o tapa. José Eduardo deixou a porta e caminhou pra dentro do quarto. Nesse momento pude ver as costas largas, igualmente definidas. — Entra aí. Travei. Eu não ia entrar no quarto dele. — Não precisa. Só vim te pedir desculpas mesmo. Já vou pra cama. — Larga de ser otaria só uma vez e entra no quarto, caramba! O corredor estava vazio. Após pensar alguns segundos eu
Mudanças — Não vá, mãe. Não me deixe só! — Eu disse debruçado sobre o leito de morte da minha mãe. — Filha, faça o que te disse — A voz era cansada — ligue para o seu tio. Ligue para ele — mamãe tossia — eu sempre vou te amar. Após me olhar com os olhos marejados e acariciar meu rosto, mamãe deu o último suspiro e fechou os olhos. Fiquei apenas eu com aquele corpo frio tomado de silêncio. ~*~Meu nome é Catarina. Depois que meu pai nos abandonou, ficamos apenas mamãe e eu. Nós recuperamos e vivíamos bem, até ela ter uma doença grave e morrer. Eu tinha acabado de completar dezoito anos e planejava entrar pra faculdade muito em breve. Mas após ficar sozinha, talvez esse sonho devesse ser adiado .Após o velório da mame eu cheguei em casa e peguei o pedaço de papel onde ela anotou o número de telefone do meu tio distante. Ela nunca gostava de falar desse meu tio ou dos parentes dela. Eu não os conheci. Parece que mamãe fugiu para casar com meu pai e a família dela era contra. Mas