Deslocada

Ao chegar na aldeia, Antony tratou de se enturmar, eu, já me senti deslocada, não me encaixava ali. Havia uma grande casa feita de galhos de árvores e palha que minha avó disse que se chamava oca.

- E então querida? O que acha?

Eu nunca havia entendido como minha avó podia morar no meio do nada. Eu nunca havia ido até uma aldeia até esse dia.

-Eu achei que estariam todos...Nus?

- Ja me viu nua menina?

- Ah...Não? É que... Eu...Não. 

-Já entendi, a gente não vive mais nu há muitas gerações e além disso...

Nesse momento parei de ouvir o que minha avó dizia, ele passou, com seus cabelos cor de carvão, sua pele ambar, seus olhos tão negros quanto seus cabelos. Seu corpo esguio. Ele pegava algo nas mãos, um saco talvez, vovó estava na frente e quando ele forçava para cima para colocar sobre os ombros largos e entregar ao outro, os músculos de seus braços e costas oscilavam. Ele vestia apenas uma bermuda e quando ele abaixou para pegar outro saco que estava no chão, seu olhar encontrou o meu e ele permaneceu assim me olhando durante um tempo até que eu desviei o olhar e disfarcei. 

- Marina?

- Ah... Oi...

- Não tá me ouvindo?

- Ah... Eu me...

- Sei, sei, vamos você precisa arrumar suas coisas.

A oca grande que vi quando cheguei era onde todos viviam, havia algumas outras menores, mas ficaríamos na grande.

-Vivem todos juntos aqui? Na mesma oca?

-Sim. Aquela é sua rede e essa aqui é a do Antony. 

Eu queria gritar, queria fugir dali a todo custo, como eu viveria num lugar assim?

- Ai meu Deus! - Soltei mais alto do que deveria e algumas pessoas olharam para nós. 

-Marina se acostuma.

Revirei os olhos e sai em direção à porta, já que eu viveria ali, tinha que saber onde estava me metendo. Passei por um grupo de mulheres que conversavam em uma língua indecifrável pra mim. Muitas delas caregavam bebês em um apetrecho que se parece com uma daquelas coisas que as mulheres usam para carregar os bebês sem usar as mãos, o qual não me lembro o nome, só que esse coloca-se no ombro na transversal e e feito de um tecido que se parece com aquele tipo de tricô que se faz em tear, só que parece ser um pouco mais resistente. Outras traziam eles em cestos que prendiam à testa enquanto debulhavam alguma coisa... Acho que feijão. Poucas traziam as crianças no colo e as que traziam, tinham uma destreza incrível para realizar o trabalho e segurar a criança ao mesmo tempo. Algumas aparentavam ser bem mais novas que eu, o que me leva a crer que aqui as mulhetes se casam cedo. Mas haviam algumas que não pareciam ser casadas mesmo tendo mais idade e a pintura no rosto e enfeites era diferente . Após uma semana que eu estava lá, não havia me acostumado com nada, vivia sendo repreendida por minha avó que dizia que algo não podia ser feito, o maior motivo para broncas era quando eu falava de minha família morta, ela dizia que era desrespeitoso que se falasse do finado. Mas como eu conseguiria ficar sem falar neles? Depois de muitas broncas por esse motivo, me limitei a chorar a morte deles sozinha, encontrei um lugar onde eu podia ficar sozinha sem ser incomodada. E era nesse lugar que eu estava agora, era uma queda d'agua que vinha de dentro das rochas e desembocava para cair no rio bem abaixo de mim, eu estava sentada exatamente atrás dela e quem passasse não me veria a menos que soubesse onde eu estava. Era uma cavidade na pedra que possibilitava umas quatro pessoas sentarem confortavelmente. O colar que minha mãe havia me dado estava nas minhas mãos. Ele era feito de ouro branco e tinha um medalhão, também no mesmo material, quando se abria o medalhão de um lado estava uma foto nossa, toda a familia feliz e do outro se lia:

"Familia feliz".

- É lindo!

Me assustei e coloquei num impulso o medalhão dentro da blusa, agora só se podia ver o cordão prateado que pendia no meu pescoço. 

- Calma eu não mordo, não. 

-Quem é você? 

-Irai, quer dizer rio de mel.

- Legal, sou Marina. 

- Eu sei, todos sabem quem você é. 

-E por que ninguém falou comigo?

- Aqui nos respeitamos as pessoas, não sabemos se você quer conversar. A sua perda é muito grande e muito recente, temos de respeitar o seu luto.

- E você, por que veio então? 

- Vi que você fica sempre aqui sozinha e quis saber se queria companhia.

Eu sorri e ela também.

- Gosto daqui.

- Eu também, é sossegado.

- Você vem pensar nele?

- Em quem?

- Kaue.

- Como?...

- Eu vi como olhou pra ele.

- Então o nome dele é Kaue? E um nome bem comum para um índio. 

- Mas é de origem tupi, quer dizer Gavião. 

- Sério? 

- Sério, minha mãe falava sempre os significados dos nossos nomes.

-Sua mãe? 

- Sim.

- O Kaue é seu irmão? 

- Ah...Sim eu não te disse?

- Agora disse. - Nós duas rimos.

- Você é maneira.

- Como?

- Maneira, legal sabe?

- A tá. 

- Que língua é aquela que as mulheres estavam falando? 

- É tupi. 

- Legal.

- Gostaria de aprender?

- Deve ser difícil. Eu já estou velha pra isso.

-É nada, a gente só aprende a falar português aos quatorze anos. 

- Ah é? Nossa você fala tão bem.

- Eu ja tenho dezessete.

- As mulheres aqui casam cedo, né? 

-Algumas.

- Mas são os pais que arranjam os casamentos?

- Na maioria, mas se a garota não quiser não casa, mas é raro uma que não queira. Só se já gostar de alguém.

- Seu irmão... Ele é casado?

- Ah...Não o Kaue, não, ele disse que só se casaria quando o amor dele chegasse.

- E isso não aconteceu ainda?

-Acho que já. 

- E quando vai ser o casamento?

- Quando ele tomar coragem de falar com a garota.

-E quem é? Bom eu acho que não tem como eu saber. 

- É...

- IRAI...IRAI...Nós duas levantamos ao mesmo tempo.

-Você vem? Meu irmão tá me chamando.

- Vou.

Nós andamos pela mata juntos até chegar a uma bifurcação, onde um tronco atrapalhava a passagem, Kaue e Irai passaram com muita facilidade, eu quase não consegui e quando pulei do outro lado cai de cara no chão. 

Ele olhou para trás e começou a rir. Mas seu sorriso morreu quando ele notou que minha perna sangrava muito. Eu fui tentar me levantar, mas não consegui.

- Aaaaiiiii!

-Não levanta, vem eu te levo.

- Não, eu consigo. Aaaaaaiiii.

- Tá vendo, não seja teimosa.

- Ele te leva, Marina. Se você ficar botando o pé no chão pode ser pior.

- Tá bom Irai. Eu aceito.

Quando chegamos na oca, todos nos olharam e um homem velho veio na nossa direção aflito.

-O que houve?

- Ela caiu e acho que quebrou o pé. 

- Coloque ela na esteira, ali perto do fogo.

Kaue foi me descendo devagar do seu colo. Quando coloquei os pés no chão senti uma dor lancinante nas costas e eu não vi mais nada.


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