Ameaça

Quando acordei avistei Irai e Kaue ao meu lado, minha avó não apareceu. Antony também não estava lá.

- O que houve?

- Você teve uma torção no pé e uma luxação nas costas.

- Quanto tempo eu dormi?

- Mais ou menos quatro horas, já é noite.- Disse Kaue, que parecia não ter saido do meu lado.

Eu tentei me levantar, mas fui impedida por Irai.

- Você deve descansar, vai estar melhor em alguns dias.

Eu olhei na direção da minha perna e notei que ela havia sido imobilizada com uma espécie de torniquete, mas a dor já havia cedido.

Eu nunca fui muito fã de celular e tecnologia, sempre gostei mais de um bom livro, mas ali naquele lugar, sem energia elétrica, sem nada, vi como essas coisas me faziam falta, ainda mais sem poder me mexer. Estava quase morrendo de tédio. A falta que não senti da minha família, nas últimas semanas passei a sentir, queria que Isa estivesse aqui pra me zoar dizendo que ela podia sair e eu não, queria que mamãe estivesse aqui para me dar bronca, porque eu não havia tomado cuidado e papai me defendendo das duas. Já ouvi falar de aldeias indígenas que possuem luz elétrica e casas de alvenaria, aqui eles são muito tradicionais, do mundo dos "brancos"como dizem, só a roupa, que aliás é bem pouca. Kaue só usa bermuda, nada de camiseta, o que particularmente me deixa desconfortável. O menino é perfeito, tipo aqueles guerreiros indigenas dos Contos . É de tirar o fôlego, sua pele mais escura um pouco que a minha, os músculos de seu abdômen definido, seus cabelos cor de carvão, que tem um brilho inexplicável. Fora o cavalheirismo que eu não imaginei encontrar em um índio. Mas eu não posso pensar nele assim, logo eu irei embora e tanto ele quanto eu sofreremos.

Alguns dias depois, assim como Irai me advertiu, minha perna estava boa e eu pude me locomover sozinha, ainda que com um pouco de dificuldade. Decidi que iria até a queda d'agua, onde eu gostavava de ir para ficar sozinha. Levei comigo o meu livro favorito para ver se espantava o tédio.

- Pensei que ficaria com medo de vir aqui de novo, já que se machucou.

- Eu queria ficar sozinha, mas vejo que é impossível.

- Tudo bem, vou embora então. - Disse virando as costas.

- NÃO!

Eu disse mais alto do que esperava, não sei ao certo o motivo, mas não queria que ele saisse dali, o que não faz sentido já que eu não posso ter nada com ele, não é?

-Como?

- Eu...Não quero...Você sabe...fique...

- Se a companhia não for ruim.

-Não, não é, a companhia e ótima. Eu é que...

- Que?

- Deixa gelado.

- Como?-  Perguntou confuso.

- Er...deixa pra lá.

- Ah, entendi.

Revirei os olhos.

- Você lê?

- Tento. Na verdade esse é meu livro favorito, é um romance maneiro.

- Ma-nei-ro?

- Sim, quer dizer que é muito bom.

-Entendi. Deixa eu ver.

Entreguei o livro a ele.

- Um Casamento Quase Real. Interessante.

- Você sabe...

- Sim eu sei ler, os índios não são burros como vocês brancos pensam.

-Vocês brancos? Eu sou uma de vocês.

- Não, não é. Você vê acha que porque vivemos em aldeias somos sem cultura, a nossa cultura é rica. E o que me diz da sua?

- Eu...

Lágrimas corriam pela minha face, eu sabia que eu o havia magoado, mas a verdade que ele me disse me magoou ainda mais. Eu realmente não fazia parte daquele mundo. E agora nem do meu.

- Ei...Não precisa chorar, eu não quis magoar você, só que...

- Não é nada.

- Desculpe, eu exagerei.

- Você está certo, eu não faço parte desse mundo, são mundos diferentes, mas o que mais me dói e que também não faço mais parte do meu.

Kaue se aproximou de mim, nossos rostos há uma proximidade mínima, eu não vi mais nada, só conseguia enxergar aqueles lábios grossos me chamando para mergulhar neles.

Ai Deus como uma mulher resiste a isso? Eu não consigo.

E não consegui, mergulhei naqueles lábios, foi uma explosão de sentimentos que eu nunca saberei explicar, era um beijo terno da minha parte, mas para ele parecia que havia esperado por anos aquele beijo.

Foi então que ouvimos o barulho. Pec.Pec.Pec.

- O que foi isso?

- Parece...

- Lenhadores...

- Como?

- Eles foram lá na aldeia tentar fazer o chefe  compactuar com isso.

- E por que ele faria isso?

- Alguns líderes indígenas fazem, ficam deslumbrados pelo dinheiro, ou até mesmo são coagidos a fazer.

- Vamos ver...

- Tá maluca? E se eles nos pegam?

- Não vão pegar. Vamos.

Chegamos de fininho e demos a volta em uma dezena de árvores cortadas, chegamos próximo a uma tenda, estavamos há uns quatro metros de distância, mas podíamos ouvir a discussão claramente.

- Não temos tempo a perder, aquele bulgre imundo está atrapalhando. Como vamos cumprir os prazos cortando árvores com machado?

- E melhor assim, para não arrumar problema.

-Mete um bala na cabeça dele e tá acabado o problema.

- E e a FUNAI?  Acha que vai ser simples assim?

- O que é bulgre? Perguntou Kaue receoso.

- Até onde eu sei é uma maneira que os portugueses chamavam os índios logo após o descobrimento, é estranho alguém usando essas palavras hoje em dia. Eu pelo menos nunca ouvi. A cor se esvaiu do rosto de Kaue.

- O bulgre que ele está falando é o chefe da aldeia.

- Temos que contar pra ele.

- Você tem razão, venha.

Quando chegamos na aldeia, fomos diretamente ao chefe.

- Pai. A floresta corre perigo.

- Pai?

Kaue fez sinal para que eu esperasse, realmente aquilo era mais importante, mas como assim o cacique é pai dele?

- O que há?

- Os lenhadores, eles não foram embora como disseram, as madeireiras estão querendo cortar as árvores.

- Um dos caras disse pra meter uma bala na cabeça do senhor...

- Marina!

-O que foi...

- Ah deixa pra lá. Como ela disse pai, os homens estavam discutindo se o matavam ou não. O cacique riu.

- Não tem graça, o senhor corre perigo. O que vamos fazer?

- Nada menina. Se eles entrarem aqui, é outra coisa.

- Não podemos deixar que eles acabem com a floresta, Kaue. - Disse quando estavamos saindo, porque o chefe praticamente nos expulsou.

- Também penso assim, mas não tenho idéia do que fazer...

- Do que fazer pra que? - Perguntou Irai, que surgiu sabe-se lá de onde.

- Para deter os lenhadores que estão cortando árvores na encosta da colina.

- Eu com certeza vou pensar em alguma coisa.

- Claro, como eu não pensei nisso antes.- Disse Kaue ironizando.

Os dias se passaram sem maiores problemas, os madeireiros haviam evaporado, mas algo me dizia que eles iriam voltar. E não deu outra, eles chegaram e com a corda toda, tinha caminhões e tratores, serras elétricas e serras circulares.Tinhamos que colocar nosso plano em ação.

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