Quem diria há alguns anos, que o que aconteceu me traria aqui, para viver em um lugar que eu jamais viveria? Foi tudo tão rápido que eu sequer consigo explicar com detalhes.
Eu arrumava a minha mala e Antony entra no meu quarto com tudo.
- Ai garoto, que susto.- Mamãe disse que já vamos, desça logo.- Disse pulando de um pé só.Esse garoto parece ligado no 220, não para quieto.
- Já estou indo, e pare de pular, se você se esborrachar no chão eu vou rir muito.- Chata!-Disse me dando língua. - Vai, garoto saia daqui.Antony é meu irmão caçula, ele tem sete anos, mas é muito inteligente, somos em três irmãos, tem também Isadora que tem vinte e um, ela vai se casar em três meses, essa será a nossa última viagem juntas, e é claro tem eu que tenho dezessete anos.
Eu me dou melhor com Isadora do que com Antony, ele é uma pimentinha, mas as vezes ele é muito carinhoso.
Desci as escadas me esforçando com a mala, papai pegou-a e levou para o carro.Todos nós os seguimos e cada um se sentou em seu lugar. Papai fazia questão que sempre nos sentassemos no mesmo lugar. Eu sempre me sentava na janela, atrás do motorista, Antony na outra e Isadora no meio de nós dois. Olhei pela janela e visualizei a fachada de nossa casa, estava com o coração apertado, essa eram as férias que planejamos durante dois anos. Iriamos para Maceió, dizem que as praias de lá são lindíssimas, mas esse aperto não me deixa. Deve ser ansiedade por conta da viagem tão esperada. Nossa casa fica no jardim Analia Franco em São Paulo, papai preferiu ir dirigindo, ele e mamãe revezaram no volante, ele alegou que a viagem será mais aproveitada se pegarmos a estrada ao invés de voar. Nós chegamos a BR 101 e papai trocou com a mamãe , pois estava cansado e ele queria que ela continuasse de dia para que ele dirigisse a noite. Tudo correu bem até a noite, papai dirigiu até umas onze da noite e paramos em uma pousada. Logo cedo acordamos e quem dirigiu desta vez foi papai. Por volta de meio dia eu estava entediada e comecei a brincar com Antony e Isadora de jogo da forca.- Agora é minha vez. Eu disse- Com cinco letras é um time.-Paulista ou carioca?- Perguntou Isadora. - Não vale, é só uma dica.-Disse Antony. - Verdade.- B.Disse Isadora.- Errado.- C.-Disse Antôny.- Aqui, penúltima letra.- Já sei, já sei.- Então fala Antony. - É Vas...Foi nessa hora que ouvi o grito de mamãe. Quando olhei só deu para ver um caminhão vindo na nossa direção, papai desviou, mas perdeu o controle e tudo o que me lembro é que o carro capotou umas quatro vezes. Eu ouvia ao longe o choro de Antony e o desespero de mamãe, de repente todos se calaram e a escuridão me engoliu.Acordei em uma maca com uma dor lacinante na perna e na clavícula.
- Cade mamãe? E papai? Cadê o Antony e a Isadora?
-Calma Marina, Antony está bem ali. - Disse e apontou para uma cama ao meu lado.Eu não consegui focalizar seu rosto, minha visão estava turva.- E...os...outros.-Estão em coma.- COMA?Eu quero vê-los!- Você não pode.- São minha família!-Mas...- Por favor.-Disse com os olhos marejados. O médico respirou fundo e cedeu. - Está bem. Vou pedir a enfermeira para levá-la.O médico se dirigiu a enfermeira e eu juro que eu ouvi ele sussurrar para ela que talvez aquela pudesse ser a minha última chance de vê-los. Mas por que? Quando cheguei na UTI, svistei primeiro a Isadora, seu noivo estava ao seu lado e segurava sua mão, eu ouvia o bipe incessante dos munitores cardíacos, na sala só estavam os três, fora eu e Luan. E uma infinidade de enfermeiros. De repente dois dos monitores começaram a apitar e eu entrei em pânico, entraram uns quatro médicos correndo e tentaram reanimar papai e Isadora, o terror estava estampado no rosto de Luan e tenho certeza que no meu também. Os médicos não tiveram sucesso e papai e Isadora morreram minutos depois, mas eu me apeguei ao fato de que eu e meu irmão pelo menos teriamos mamãe para cuidar de nós, como fui tola a pensar que teria ao menos essa recompensa depois de presenciar a morte de minha irmã e meu pai ao mesmo tempo, fui para meu quarto e chorei até não poder mais, chorei durante horas e quando achei que minhas lágrimas haviam secado, recebi a notícia de que haviamos perdido a única pessoa que ainda nos restava, mamãe teve uma parada cardiorespiratoria e morreu, os médicos fizeram tudo o que podiam mas não teve jeito.Os velórios não poderiam ter sido mais tristes, três caixões alinhados enquanto o pastor falava algumas palavras que eu não houvia, só fui capaz de houvir quando ele disse algo que me fez surtar.-...por que não somos capazes de aceitar a morte? Simplesmente, irmãos porque não fomos feitos para morrer...- Porque não fomos feitos para morrer? - perguntei sarcástica .- Então por que diabos meus pais e minha irmã estão aqui deitados nesses malditos caixões?- Foi a vontade de Deus minha filha.
- Que vontade de Deus o que, acha que Deus queria isso? Duas crianças órfãs e um noivo sem noiva?-Eu disse gesticulando na direção de Antôny e de Luan.- Venha Marina, você precisa descansar.- Não, não preciso Marcela.- Eu só quero seu bem.- Eu sei...- disse hesitante.-desculpe pastor, eu...-Eu sei minha filha é compreensível.
Quando colocaram os caixões um a um no túmulo, primeiro papai, depois mamãe e por último Isadora, meu desespero aumentou a vontade que tive foi de ir junto também, mas precisava pensar no Antony. Ele não parecia estar entendendo muito bem o que se passou, ele tinha ficado em casa com minha avó, ela é india e disse que não era bom que ele viesse . Como eu não estava em condições de cuidar nem de mim, acabei concordando e vindo com a Marcela, ela é uma boa amiga. Nos conhecemos desde criança, me lembro que nos tocávamos a campainha dos vizinhos e corríamos. Uma vez o seu João pegou a gente e levou para mamãe que nos deu a maior bronca.
A casa parecia imensa, quando passei pela porta pude ouvir vovó contando uma de suas histórias para Antony, não pude deixar de sorrir, sentia inveja da sua inocência. -..."e então o menino gritou novamente e ouviu o buraco respo...Ah filha, você ja chegou?- Já sim. Foi muito triste a mamãe...- Não, não menina, não fala dos mortos deixa eles descansarem.- Como não vou falar da minha mãe? A sua lembrança foi tudo que me restou. - Guarda ela aqui. - Disse colocando a mão sobre o meu coração. - Ela vive em você. E seu espírito estará sempre vivo. Mas falar dela atrai coisa ruim, melhor pensar, lembrar momentos bons.Fiz que sim com a cabeça.
- Agora menina arruma suas coisas que daqui a sete dias vamos embora, só esperaremos espíritos irem para voltarmos para aldeia.
- Aldeia?...- Sussurrei. Achei que fossemos ficar aqui.- Não, eu não posso ficar.Tenho obrigações. - Então a gente fica.- Você, criança e Antony também.-Disse colocando o dedo no meu peito - Mas a minha vida é aqui.-Agora sua vida é na aldeia.- Eu...É que...- Pelo menos até ficar adulta, depois pode vir, mas primeiro Marina precisa arrumar trabalho para sustentar a casa, combinado?- Tá legal. Os sete dias pareciam se arrastar, na quinta feira que era o penúltimo dia que eu ficaria na cidade, fui até a escola, para me despedir dos meus amigos.Minha avó foi dar baixa na minha matricula. Eu fiquei imaginando se lá eu iria para a escola.-Venha me visitar, Marina. - Disse Marcela abraçada comigo.- Eu vou vir.- Então... Acho que...Tchau?- É, a gente se vê...Entrei no taxi e não conseguia parar de chorar.
- Tá chorando por causa da mamãe?
- Não querido, a mamãe, o papai e a Isa, estão dormindo agora.-Dormindo pra sempre?- Não, um dia estaremos todos juntos. - Legal...O caminho foi um pouco longo, e Antony logo pegou no sono. Eu, na maior parte do tempo fiquei acordada olhando pela janela e chorando tudo o que essa maldita tragédia tirou de mim. Além de perder meus pais e minha irmã, perdi meus amigos e tudo o que eu sempre tive. Agora eu estava indo para o meio do mato, viver com um monte de pessoas que vão me achar um extraterrestre, se é que eles sabem o que é um. E isso não é por causa do meu biotipo, que embora eu não seja a típica india Caiapó, eu tenho muitos traços que herdei de meu pai, que era índio. Eu sou morena, a pele um pouco mais clara que avelã, meus cabelos são lisos, só não escorridos contam com belas ondas, sou magra mas não magra demais. Enfim, acho que o meu biotipo vai ser o menor dos meus problemas nessa nova vida. O Antony já é mais claro que eu e tem os cabelos cor de mel, como eram os da Isa, os seus olhos, ao contrário dos meus e da Isadora que são negros como jabuticaba, no caso dele eram verdes como os da mamãe. Pensando nessas coisas acabei por pegar no sono e tive um sonho, aguma coisa com pessoas de rosto pintado indo pra guerra. Quando acordei haviamos chegado.
Ao chegar na aldeia, Antony tratou de se enturmar, eu, já me senti deslocada, não me encaixava ali. Havia uma grande casa feita de galhos de árvores e palha que minha avó disse que se chamava oca.- E então querida? O que acha?Eu nunca havia entendido como minha avó podia morar no meio do nada. Eu nunca havia ido até uma aldeia até esse dia.-Eu achei que estariam todos...Nus?- Ja me viu nua menina?- Ah...Não? É que... Eu...Não.-Já entendi, a gente não vive mais nu há muitas gerações e além disso...Nesse momento parei de ouvir o que minha avó dizia, ele passou, com seus cabelos cor de carvão, sua pele ambar, seus olhos tão negros quanto seus cabelos. Seu corpo esguio. Ele pegava algo nas mãos, um saco talvez, vovó estava na frente e quando ele forçava para cima para colocar sobre os ombros largos e entregar ao outro, os músculos de seus braços e costas oscilavam. Ele vestia apenas uma bermuda e quando ele abaixou para pegar outro saco que
Quando acordei avistei Irai e Kaue ao meu lado, minha avó não apareceu. Antony também não estava lá.- O que houve?- Você teve uma torção no pé e uma luxação nas costas.- Quanto tempo eu dormi?- Mais ou menos quatro horas, já é noite.- Disse Kaue, que parecia não ter saido do meu lado.Eu tentei me levantar, mas fui impedida por Irai.- Você deve descansar, vai estar melhor em alguns dias.Eu olhei na direção da minha perna e notei que ela havia sido imobilizada com uma espécie de torniquete, mas a dor já havia cedido.Eu nunca fui muito fã de celular e tecnologia, sempre gostei mais de um bom livro, mas ali naquele lugar, sem energia elétrica, sem nada, vi como essas coisas me faziam falta, ainda mais sem poder me mexer. Estava quase morrendo de tédio. A falta que não senti da minha família, nas últimas semanas passei a sentir, queria que Isa estivesse aqui pra me zoar dizendo que ela podia sai
Ela caminhava ao meu lado, seus cabelos escuros esvoaçando ao vento, como ela é linda. Usava apenas uma túnica de seda branca, que lhe descia pelas curvas tornando-a ainda mais bonita, se é que isso é possivel...- Acorda Kaue. - Nossa é incrível como toda vez que eu estou tendo um sonho bom você me acorda!- Estava sonhando com ela não é? - Para de falar besteira, menina.- Não mente pra mim, se tem vergonha por que me contou sobre os sonhos?- Nem eu sei.- Mas contou, agora diga, estava sonhando com ela ou não? - Você me conhece melhor que eu mesmo não é?Irai só arqueou as sobrancelhas.-Sim, eu estava sonhando com ela e você me atrapalhou de novo!- Você quem me pediu pra te chamar, e tem mais, a neta da Ceci chega hoje.-Imagi
-Ficou louco?- Mas...da outra vez..- Da outra vez você me pegou de surpresa.- Não é verdade. Você correspondeu.- Eu...Você não entende!- Não entendo o que? Que você está fugindo do que sente por mim?- Eu não quero te fazer sofrer.- E acha que já não está fazendo?- Eu vou embora daqui há alguns meses, quando fizer dezoito anos eu vou ter que te deixar. - Você não tem que fazer nada, você vai porque quer.- Eu vou porque aqui não é meu mundo.-Não? Então porque tanto empenho em salvar do desmatamento um mundo ao qual você não pertence? - Eu...Não sei.-Sabe sim, você faz parte dele mesmo que não queira, você tem sangue de indio, seu pai veio daqui. De todo jeito, se não puder ficar aqui, eu vou aonde você for.- Não faria isso.- Faria sim, vem comigo, preciso te mostrar uma coisa. Kaue me levou até a oca e passou a revirar um cesto, tirou de lá um tipo de pasta, feita com folha de palmeira e me entregou
Quando saímos da minha cidade, era fim de ano, então eu já tinha terminhado o colégio, agora pensava em qual faculdade eu ingressaria, sempre me interessei muito por medicina, mesmo porque minha mãe era médica. Mas agora, olhando essa infinidade de plantas, animais e rios tornei-me uma admiradora acidua da biologia...- Olhe, essas são as plantas que te falei, você pode usá-las como repelente. O cheiro afasta os insetos e também tem ação cicatrizante. - Disse Kaue, me mostrando uma planta que não me recordo o nome. Desde que tomei coragem para dizer a ele que o amava, estamos mais próximos, ele tem me ensinado a falar tupi, não que eu tenha aprendido alguma coisa, e tem me falado sobre as plantas e como algumas tem propriedades medicinais.- E esse aqui? O que é? - Eu disse apontando para uma frutinha que se parece com um olho. Quando ele me respondeu mal pude acreditar que eu não conhecia aquela fruta.- É guaran
Chegamos na aldeia e ainda era cedo para colocar o plano em ação. Kaue viu Irai sentada próximo das crianças e se aproximou. Ele ia falar com ela a respeito do plano, mas ela começava a contar uma história e nos sentamos para ouvir.- Irai, conta alguma lenda para nós!- Qual vocês querem?- A da Luara!- Não! A do Boto!As duas crianças começaram a discussão e Irai entrou no meio.- Vou contar as duas pode ser?- Ebaaaaaa. - Gritaram as duas ao mesmo tempo.Luara ou Iara, significa, aquela que mora nas águas, ela era uma corajosa guerreira, dona de uma beleza invejável. Por esse motivo, os irmãos sentiam inveja dela e resolvem matá-la. Mas, no momento do combate, pelo fato de possuir habilidades guerreiras, Luara consegue inverter a situação e acaba matando seus irmãos. Diante disso, com muito medo da punição de seu pai, o pajé da tribo, ela resolve fugir, mas seu pai consegue encontrá-la. Como castigo pela morte dos ir
Atenção para gatilho de violência sexualA noite se aproximava. Eu, Irai e Kaue estavamos nos preparando para ir até a clareira onde estavam acampados os madeireiros, recrutamos mais alguns jovens indios para a missão.-Vamos por trás da cascata e lá colocaremos o plano em ação. - Disse Kaue decidido.Todos nós o acompanhamos, pé ante pé até chegarmos ao local, lá eu tirei algumas coisas da mochila, coisas que aprendi a fazer na aula de química, haviam pequenas granadas de fumaça e usariamos uma espécie de alto falante improvisado para tornar a nossa voz, mais especificamente a de Irai, mais audível e assustadora. Quando todos se deitaram iniciamos o plano.Primeiro utilizamos uma chapa de aço fina para produzir um som parecido com o de um trovão, depois colocamos Irai para falar no alto falante e quando os homens sairam jogamos as granadas e fumaça. Eu apareci atrás da densa fumaça, vestida
Não sei se doeu mais me despedir de Kaue e Irai, ou de Antony, que parecia não entender o motivo de eu ir embora.- Por que você não fica?- Não posso, preciso ir para faculdade.- Tem muitas pessoas aqui que fazem faculdade e não vão embora. - Disse choroso.- Eu...Sei mas eu preciso ir, é que só tem o curso que eu quero lá. - Então eu vou com você. - Não vai dar Antony. Adeus.- Voce vem me ver?- Eu... Assim que possível. -Hum. - Disse e saiu para que minha avó viesse.- Sabe que não precisa fazer isso, não é? - Sei, mas eu quero. Preciso esquecer o que aconteceu e aqui é impossível. - Você é quem sabe.-Adeus vovó. - Até logo, menina.A próxima foi Irai.- Sabe, você foi a única amiga que eu tive de verdade. Faziamos confissões e tal.- Vai me visitar, tá legal?- Tá.Kaue se aproximou.- Não vá. - Eu preciso.- Ent