Alcei voo e parti ao encontro do meu grande amigo e venerável Mestre, o ancião Wyrmygn. Com duas horas de voo alto e tranquilo cheguei ao Velho Vale. Do alto tive a nítida impressão que várias coisas mudaram lá em baixo em relação à última vez que eu fizera aquele percurso. Não dei muita atenção a essa impressão, pois o prazer de retornar àquele lugar mágico, em cada uma das incontáveis vezes em que lá estive, era indescritível.
Ah! O velho e grandioso vale! Nosso eterno santuário. Mesmo à noite conseguia vislumbrá-lo belo como sempre, com grandes despenhadeiros de rochas avermelhadas e violentos rios espumantes correndo em profundas fissuras esculpidas ao longo dos séculos por turbulentas águas, procurando incansáveis o caminho para o mar.
Como eu já esperava, minha chegada não foi despercebida. Rywrd, o Incansável, sempre atento, viu-me chegar e observou enquanto eu voava. Fiz então a manobra aérea que lhe comunicaria uma visita de paz e amizade. Depois a manobra que me identificava. Protocolo apenas. É obvio que apesar da grande distância e da noite Rywrd, favorecido por uma visão irretocável, me reconhecera. Aproximei-me e posicionei-me para o pouso na grande plataforma de pedra que se projetava para fora no descomunal paredão rochoso. Rywrd lá estava, como sempre, guardando o portal de entrada da grande fortaleza de pedra escavada na montanha. Aterrissei, flutuando suavemente a frente dele e cumprimentei-o.
— Como vai Rywrd, o Incansável? Bem, espero eu!
Ele abriu as asas em uma incomum expressão mista de alegria e surpresa. Parecia não me ver há séculos. Então disse:
— Bem estou, é claro, Dryfr, o Grande Guerreiro! E ao que parece estás muito bem também, mesmo depois de tantas décadas sem nos visitar.
Reagi com uma ruidosa, grave e breve gargalhada.
— De bom humor como sempre, Rywrd. Eu não esperava menos — correspondi. — Porém assuntos importantes me trazem aqui hoje e tenho pressa. Preciso ter com o Mestre. Ele me aguarda, não?
— Sim, é claro. Sabes o caminho, bem como sabes que para ti esta casa está sempre aberta e sem restrições.
— Sei, sim, e sinto-me honrado como tu também deves saber. No entanto, paremos com tanta formalidade Rywrd, pois tenho pressa. Prometo voltar outro dia com mais tempo para conversarmos.
Rywrd observou-me com surpresa. Parecia não entender algumas de minhas palavras, e eu, menos ainda sua expressão. Preferi não dar atenção àquele estranho diálogo concentrando-me no assunto que me levara lá, sem desconfiar que estava prestes a entender todas as observações estranhas que fizera até o momento. Adentrei à fortaleza esculpida nas entranhas rochosas do grande vale e direcionei-me ao salão do Mestre. Na entrada do salão, sempre muito bem organizado e protegido, os dois discípulos que guardavam a entrada e que surpreendentemente eu não conhecia, barraram-me.
— Identifique-se, senhor — disse um deles.
Quase ao mesmo tempo, a voz do Mestre soou grave:
— Deixem-no entrar, Mwlgr e Mwrgr.
Não pude deixar de notar, além da cor igualmente amarelada, os nomes que evidenciavam serem gêmeos. Fenômeno raro entre nós.
— Gêmeos? — indaguei. — Meus cumprimentos, jovens discípulos.
— Deveis reverenciar esse a vossa frente, gêmeos — disse o Mestre aos jovens — pois é Dryfr, o Grande Guerreiro.
Os dois, maravilhados com os olhos brilhando, abriram as asas e curvaram-se uma reverência que evidenciava minha notoriedade entre eles.
— Agradeço pela justa reverência, jovens, mas tenho pressa no momento. Com licença.
Passei entre os dois e pelo perfeito arco entalhado com riqueza de detalhes nas rochas avermelhadas do vale, adentrando ao salão finamente trabalhado internamente, cinzelado como se fosse uma escultura em profundidade. Um orbe de luz flutuava no centro acima de nossas cabeças proporcionando pálida iluminação ao ambiente. Após minha entrada, o Mestre com um gesto acendeu mais quatro orbes flutuantes e mais brilhantes que o anterior, iluminando por completo o amplo salão de audiências. Além de todos os entalhes nas paredes de pedra, o que tornava o salão sua própria e belíssima decoração, o recinto era adornado com relíquias e estátuas antigas herdadas de tempos imemoriais. As paredes tinham formatos irregulares e ângulos diversos. Uma das estátuas, em específico era a imponente imagem de um dragão, em tamanho natural, esculpida em Ônix: de asas abertas e de pé sobre as duas patas traseiras, segurava um ovo como se o oferecesse a quem o observa de frente. A escultura era um mistério até mesmo para o Mestre. Ela foi encontrada em uma grande caverna que servira de residência a um ancião contemporâneo do Mestre, já falecido em uma batalha ancestral.
A única parede de ângulo reto do salão expunha uma enorme peça em couro pendurada, constituída de várias peles depiladas de búfalos selvagens costuradas umas as outras, na qual fora desenhado a fogo um mapa de todos os nossos domínios, ou seja, o mapa do planeta inteiro. O mapa era, na verdade, mais uma relíquia do que uma utilidade, feito pelo próprio Mestre Wyrmygn em um tempo em que os orbes de luz ainda não eram difundidos. Ele também criou os orbes de luz que utilizamos há milênios para projetar o mapa do planeta e conjecturar acerca dele. Aliás, não só para isso. Os orbes de luz são magias dinâmicas utilizadas com inúmeras finalidades, dentre elas, iluminação, projeção de imagens e, sobretudo, comunicação, o que dispensa a necessidade de língua escrita, como fazem todos os seres pouco evoluídos, tais como elfos, anões e outros.
Existiam no salão outras obras de arte, tesouros de nossa cultura, além de várias peças em ouro e prata e pedras coloridas, preciosas e perfeitas. Exatamente como deve ser a morada do mais poderoso ser de todo o multiverso.
O Mestre me recebeu caloroso. Até mais do que o normal. Abraçou-me, inclusive com as asas transparentes, em seguida fitou-me por algum tempo extasiado.
— Meu discípulo! A que devo tão honrosa visita? — fez uma pequena pausa e antes que eu pudesse responder, interrompeu a si mesmo substituindo aquela feliz expressão pela comum seriedade.
— Bem, não precisas responder, — continuou — pois já conheço a resposta. Portanto responda-me o que não sei: por que demoraste tanto a vir? — a voz era um misto de saudade e apreensão como eu jamais ouvira.
— Desculpe-me, Mestre, mas uma estação é tempo demais para os mortais... — abruptamente ele me interrompeu.
— Uma estação? Dryfr, faz mais de vinte e nove décadas que não apareces aqui. O que aconteceu contigo?
— Mestre! Por que me falas em décadas quando estive aqui no último outono antes de me recolher para descansar?
A primeira reação foi de surpresa, mas passou a uma expressão pensativa. Desviou os olhos e se demorou com o olhar distante diante de minha última pergunta. Em seguida, como se tivera uma visão, disse:
— Esqueça. Já conheço as respostas. Vou falar de novo: faz vinte e nove décadas que não apareces aqui. Entendeste? — explicou calmo deixando claro que a informação era correta.
— Sim, Mestre.
— Hibernaste por vinte e nove décadas. Um descanso longo. Nunca soube de alguém que tenha hibernado por tanto tempo — declarou pensativo, mas não surpreso.
Nada poderia surpreendê-lo. Não por muito tempo.
— De qualquer forma estás bem descansado e com os acontecimentos recentes, tua força é necessária — completou.
— Acontecimentos recentes? — questionei confuso — Para mim, fiquei fora durante uma estação apenas. Não contesto tuas palavras, mas, nesse caso, logicamente aconteceu algo que fugiu a minha percepção. O que foi?
Mais uma vez aquele breve olhar distante. O Mestre tinha uma inteligência à frente de qualquer outro ser encarnado no multiverso. Por isso, até para mim, era difícil acompanhar seu raciocínio. Depois de poucos instantes ele respondeu:
— Agora me surpreendo por não ter previsto isso. Vou te contar um resumo e em outra ocasião cuidaremos de mais detalhes. No inverno seguinte ao teu sumiço, foi desencadeado pelos elfos, um evento de dimensões consideráveis até para nós. Tentaram conjurar um grande ritual mágico para fins que não merecem ser citados. Fins fúteis objetivados por seres fúteis. O que importa é que o trabalho deles fracassou e gerou consequências desastrosas. É claro. O que se poderia esperar? Tentaram invocar um ritual mágico que consumiu muito tempo e enorme quantidade de mana. Na verdade todo o mana da região em um raio de centenas de quilômetros...
Mana é como chamamos a energia fundamental vital, natural, invisível, inodora, pura, produzida pela natureza e presente em todo multiverso em menor ou maior quantidade. Alguns conseguem controlar tal energia por meio da força de vontade, produzindo os mais diversos efeitos desejados. O resultado dessa manipulação é conhecido como magia ou mágica. Seres razoavelmente inteligentes, conseguem manipular o mana apenas através de fórmulas prontas, como receitas, produzindo efeitos estáticos com parâmetros fixos. À magia resultante dessas fórmulas prontas, chamamos magia estática. Já os seres superdotados de inteligência, mais evoluídos como nós, conseguem manipular o mana a seu bel-prazer produzindo efeitos tão variados quanto queiram. A esses efeitos chamamos magia dinâmica.
— Dryfr, — continuou o Mestre — sei que nossas residências são mantidas em sigilo até mesmo entre nós e é incomum um de nós ter interesse na residência do outro por motivos que já conheces, mas me diga: tua casa fica na região das Montanhas Chatas, certo?
— Correto, Mestre, mas o que tem isso?
— Então minhas suspeitas se confirmam. Como eu já disse, o ritual consumiu todo o mana da região onde foi realizado, e a região em questão é a grande floresta próxima a tua casa. Todos os seres mágicos sofreram com a drenagem da energia. A maioria morreu. Como consequência, ficaste adormecido muito mais tempo do que o normal. Aliás, o fato de ainda viveres é surpreendente.
— Isso significa que quando começaram os trabalhos ritualísticos eu já hibernava. Uma novidade até mesmo para ti. Continue, por favor.
— Exato! Mas é apenas começo. As consequências dessa irresponsabilidade são complexas e catastróficas, e ao conjunto de efeitos colaterais gerados nós demos o nome de Caos. Dentre os vários efeitos, um deles se destaca: espécies de outros mundos começaram a ser teletransportadas de muitas partes do multiverso para Nosso Planeta. Em alguns casos, vilas inteiras apareceram repentinamente; em outros seres isolados vieram. Os casos são tão variados quanto são numerosos.
Fitou-me por um instante e prosseguiu.
— Dentre todas, uma espécie em especial é o foco de nossas preocupações. Parecidos com os elfos em estatura, porém mais corpulentos, quase tanto quanto os anões, mas não tão atarracados. Eles não tinham nada de especial que merecesse destaque em princípio, mas tornaram-se nossa principal preocupação por mais incrível que pareça. Esses seres são verdadeiras pragas! Têm prazer em destruir e conquistar. Eles se autodenominam “humanos” ou “homens”.
—Conquistar seria até um prazer comum conosco, se os hábitos deles não fossem tão fúteis. Tentam conquistar tudo que lhes é possível. Demarcam terras e se declararem donos delas. Nessas terras cultivam plantações de todos os tamanhos e tipos de vegetais, criam animais domesticáveis, constroem várias tocas de pedra, argila e madeira de todos os tipos e tamanhos. Às terras usadas para cultivo e criação de animais, alguns chamam de fazendas, outros de feudos. Pouco importa a diferença. Às terras onde constroem o maior número de tocas, chamam de cidades ou vilas dependendo do tamanho da aglomeração. Algumas construções são usadas para comercializar o que é produzido nas fazendas, outras s
—Ah,Dryfr, embora ainda haja muito que devas saber, diga-me, o que te aflige tanto para vires aqui abruptamenteno meio da noite? — questionou parecendo cansado.—Como já sabes, venho por causa desses seres humanos. O que não sabes é que ao acordar deparei-me com eles rondando as terras próximas a minha casa. Algumas dúzias montando cavalos e dirigindo-se para a minha montanha. Como deves supor, fiquei surpreso ao deparar-me com seres até então
Eu voava alto quando me aproximei do acampamento. A lua cheia, iluminava a noite estrelada. Voei mais vagarosa e suavementepara evitar ruídos com o bater de minhas asas. Planei em círculos por um tempo e, de cima, eu via as fogueiras ainda ardentes no acampamento e as tendas, umas escuras, outras com tímidas fontes de luz dentro. Algumas nuvens encobriram parcialmente a lua e eu sobrevoei de muito alto em uma parte limpa do céu. Nossa visão privilegiada me permitiu verassentinelas de guarda. Dez delas espalhadas, descrevendo um esboço de pentagrama e em cada ponta, duas juntas. Eu esperava acordar refeito, mas o que me fez despertar foi a mais profunda dor física que um Draco pode suportar. Abri os olhos, mas só vi luzes claras e coloridas que ofuscavam minha visão. Via tudo embaçado, via vultos. Sentia o calor do líquido viscoso que fluía em abundância do meu corpo. Percebi manchas vermelhas por onde meu sanguevazava em pontos onde minhas escamas foram arrancadas com violência, minha pele perfurada, minhas garras serradas, algumas arrancadas; minha cauda amputada e meus chifres e espinhos decepados a machadadas; meus dentes quebrados a marretadas. Tudo contribuía para aumentar a dor, o desespero e incapacitar meu corpo. Mas, acima de tudo, uma dor maior habitava minha alma: a faltado mana. Eu não sei como, mas em minha residência rochosa n&atil6 - AGONIA
Acordei em um sobressalto ficando de pé e ofegante como nunca. Passaram alguns dias e, ao contrário daquele pesadelo quepareceu-memuito real, recobrara minhas energias mágicas por completo. Lembrei saudoso de meu amado e falecido irmãoDrwfr. É provável que a dor sentida por ele fora equivalente ao que presenciei em meu pesadelo, de acordo com as descrições do Mestre.Resolvi afastar tais pensamentos e depois do ritual de acordar, espreguiçar, subir ao cume da montanha, certificar-me da segurança e fazer o desjejum, rumei para o Velho Vale uma vez mais. Ao lá chegar, fiz as
—Bem,Dryfr, se com essa notícia me fazes esta cara, então vou lhe dar uma notícia que, com certeza, te alegrará. Como tua mãe, a beladragonesaYdrymdeixou o lugar vago no Conselho dos Sábios e teu irmãoDrwfrteve aquele trágico fim, o lugar de tua mãe passa agora a ti. A partir do próximo Conselho serásDryfr, o Sábio.A notícia me causou tamanha euforia que tossi deixando escapar lufadas flamejantes.Eu!Dryfr, o Sábio! Admito que o título me cai bem. Então as br
Levamos quase um diainteiro para fazer todos os preparativos. Era necessário remover meu leito de preciosidades para um salão adjacente e recobrir todo o chão do salão principal com palha e peles de animais peludos, para deixá-lo mais confortável. No alto, em um dos cantos do salão, nós dois juntos conjuramos o Orbe do Acasalamento. Trata-se de uma esfera mágica que emite luz fraca, calor e aromas agradáveis para tornar ainda melhor esse momento tão importante. O orbe oscila tridimensionalmente causando efeito de sombras dançantes com nossos corpos e estruturas do salão. As paredes rochosas foram esterilizadas com várias de minhas baforadas flamejantes e depois recobertas com óleos aromáticos de árvores nativas. Tudo isso tornou noss
Cheguei pouco depois do meio-dia e fui recebido, como sempre, porRywrd. Adiantado, parei para aquele prometido diálogo com o Incansável. Conversamos por mais de uma hora em que contei a ele minhas aventuras dos últimos dias e ele relatou fatos curiosos ocorridos durante minha hibernação.Faltando mais ou menos duas horas para o pôr-do-sol, as comitivas dos sábios começaram a chegar. Cada sábio acompanhado pelo respectivo discípulo. E o fato de eu ainda não ter nenhum, incomodava o Mestre, pois eu já passara a idade de adotar um pupilo, o que só foi tolerado por causa de me