— Ah! Que sono formidável! Há séculos eu não dormia tão bem — falei comigo mesmo ao acordar naquele dia ainda zonzo pelo recém-despertar.
Sentia em minha barriga, o friozinho dos belos amontoados de metais e pedras preciosos que formavam meu leito. Abri um dos olhos para contemplar a penumbra do salão e percebi alguns tímidos raios de sol que entravam pelas estreitas fendas superiores de minha residência rochosa: minguados fachos de luz que jamais seriam suficientes para iluminar minha sombria, fria, úmida e agradável caverna. Senti também que lá de fora, vinha um odor de flores frescas. A generosa primavera chegara e eu nem vira o inverno passar. Valeu a pena, afinal eu precisava mesmo de um longo descanso.Abri então meus braços, pernas, asas e estiquei o pescoço em um longo espreguiçar seguido de um, até para mim, ruidoso bocejo. Ao fazer isso ouvi os metaizinhos e pedrinhas crepitarem e se espalharem sob minha barriga em um agradável tilintar que soou como música a meus aguçados ouvidos. Levantei e, em pé sobre as quatro patas, olhei para cima, para a entrada de meu lar enquanto abria as asas e com algumas batidas flutuei suavemente. O deslocamento de ar, fez meu lindo leito se espalhar pelo salão produzindo um som que, mais uma vez, soou-me como uma agradável sinfonia. Não me importava em ter de arrumá-lo depois, somente pela melodia produzida no momento em que saía de casa.
Flutuei acima pelo túnel vertical que, em seguida, descrevia tortuosos caminhos até chegar ao topo da montanha e, por fim, à saída ao ar livre. O túnel vertical, porém, cheio de curvas, tornava meu lar quase inviolável. Só outro de nós conseguiria entrar com facilidade por ele, mas mesmo assim não teria motivos para fazê-lo. Apenas algum ser inferior que soubesse de tudo que eu tenho lá embaixo se arriscaria a tentar. E poucos, além de mim, sabiam o que o fim do túnel escondia: Drwfr, meu irmão mais velho, que eu já não via há várias décadas, e minha mãe, a grande anciã falecida há pouco mais de uma década. Pelo menos assim eu pensava. Quando cheguei ao fim do túnel, ou seja, ao topo da montanha, pousei abaixado para observar ao redor. Precaução nunca é demais até mesmo para alguém tão poderoso quanto eu. Fiquei parado por alguns minutos observando o horizonte.
O sol alto brilhava maravilhoso, despejando seus raios alaranjados que faziam reluzir minhas belas escamas douradas. A brisa do meio-dia passava entre elas causando agradável sensação de frescor. Por um momento deixei-me levar pelo sentimento de natureza à flor-da-pele e me levantei, ficando em pé sobre as patas traseiras. Estiquei todos os membros, inclusive asas e pescoço em um gostoso espreguiçar. Contemplei todo o esplendor da primavera desabrochando com o calor do sol e o frescor do vento, surrando meu corpo sofrido nas batalhas de outrora. Ainda havia um pouco de neve no cume de minha montanha, mas lá embaixo os vales já estavam lindos, floridos e verdejantes, justificando o agradável aroma que, fora da caverna, tornara-se mais forte. Os animais silvestres em plena atividade, acasalavam, caçavam, brincavam e faziam tudo o que se faz na primavera.
Meus devaneios foram interrompidos por meus estômagos que roncaram em grave sinfonia. Fome, muita fome. A última refeição fora antes de hibernar, na entrada do inverno.
Farejei para saber onde encontrar uma farta refeição mais facilmente. Com uma cafungada ao sul senti o aroma de búfalos selvagens. Pelo cheiro, pareceu-me que algumas búfalas deram boas crias há pouco tempo. Bezerros suculentos! Sim, eu via a manada, naqueles campos, mesmo a uns trinta quilômetros de distância, mas mesmo gostando do que senti, decidi analisar as opções, com toda a paciência que um ser poderoso e glorioso deve ter. Ao norte, deliciosas girafas. “Ainda prefiro os suculentos e tenros bezerros” — pensei. Além disso, aquelas pescoçudas inúteis deviam estar escondidas sob árvores, comendo folhas e eu teria que arrancar algumas delas para entrar na mata, o que assustá-las-ia, correriam e me dariam muito trabalho. Pensar nisso me dava preguiça.
A leste, cavalos. Adoro cavalos. Sua carne é excelente, de um sabor inigualável e seria uma boa escolha, se não estivessem tão afoitos, o que também me daria trabalho caso optasse por eles. Imaginei por que corriam tanto. Pareciam fugir, mas não importava afinal. Ainda preferia os bezerros suculentos, refeição fácil e deliciosa. Mas antes, uma cafungada a oeste.
Foi quando uma grande interrogação surgiu em minha cabeça. Um cheiro que jamais sentira. Havia cavalos, dava para distinguir. E não apenas cavalos, mas saudáveis garanhões e éguas. O que chamou minha atenção, no entanto, foi o que havia junto deles: alguma outra criatura que eu desconhecia até então. “Mas como?” — pensei sem encontrar a resposta.
Deviam estar a mais de cinquenta quilômetros, mas, mesmo assim, me abaixei no cume da montanha, pois seres inferiores não devem ter o prazer de vislumbrar tão majestosa criatura como eu, apesar de que dificilmente aquela ou qualquer outra criatura conseguiria ver-me de tão longe. Forcei a visão e verifiquei que se aproximavam. Criaturas parecidas com elfos, montando cavalos, porém mais corpulentas que os fúteis elfos e ao mesmo tempo mais altas que os repugnantes anões.
— Que criaturinhas inferiores teriam surgido dessa vez? — falei em voz alta.
Galopavam velozes em seus animais que arrancavam do chão, nacos de grama e terra, levantando uma cortina de poeira por onde passavam. Estão com pressa. “Mas, por quê?”
Concluí que também não serviriam como desjejum, pois o cheiro não era dos melhores. Portanto decidi pegar três ou quatro bezerros e voltaria o mais rápido possível para não perdê-los de vista, mas me atrasei na volta porque a fome era enorme, muito mais do que o normal o que me fez devorar mais dois grandes búfalos que saciaram minha fome.
Voltei quase ao fim da tarde e vi que eles se aproximaram bastante. Deviam estar a uns dez ou vinte quilômetros, mas pararam. Armaram acampamento e pareciam descansar. Acenderam fogueiras e assavam carne de porco selvagem. Tentei entender que prazer sentem em comer carne assada. Todo o sabor maravilhoso que a carne fresca tem, perde-se assim. Mas não importava naquele momento e então concentrei-me no que interessava: eles se aproximavam da minha casa e isso não me agradava. Por isso abaixei-me sobre a montanha e observei todos os detalhes. Contei cento e vinte e dois cavalos e cada um devia carregar um ser desses, mas estavam desmontados naquele momento e não consegui vislumbrar todos os cavaleiros. Alguns acomodavam-se à volta das fogueiras, e outros nas tendas ou na mata próxima. Eu precisava saber por que rumavam para minha casa e mais do que isso, precisava saber o que eram eles, o que queriam e, acima de tudo: por que eu ainda desconhecia todas estas informações.
A noite caía veloz e observei durante quatro horas, mais ou menos. Percebi que, embora não fossem nem elfos e nem anões, tinham hábitos parecidos com os deles, como a necessidade de comer e dormir em tempos periodicamente curtos, e dormir principalmente à noite. Sendo assim, dormiriam à noite toda o que me daria tempo para buscar as respostas às minhas dúvidas. E eu sabia exatamente quem poderia provê-las: o Mestre.
Alcei voo e parti ao encontro do meu grande amigo e venerável Mestre, o anciãoWyrmygn. Com duas horas de vooalto e tranquilo cheguei ao Velho Vale. Do alto tive a nítida impressão que várias coisas mudaram lá em baixo em relação à última vez que eu fizera aquele percurso. Não dei muita atenção a essa impressão, pois o prazer de retornar àquele lugar mágico, em cada uma das incontáveis vezes em que lá estive, era indescritível.Ah! O velho e grandioso vale! Nosso eterno santuário. Mesmo à noite conseguia vislumb
—Conquistar seria até um prazer comum conosco, se os hábitos deles não fossem tão fúteis. Tentam conquistar tudo que lhes é possível. Demarcam terras e se declararem donos delas. Nessas terras cultivam plantações de todos os tamanhos e tipos de vegetais, criam animais domesticáveis, constroem várias tocas de pedra, argila e madeira de todos os tipos e tamanhos. Às terras usadas para cultivo e criação de animais, alguns chamam de fazendas, outros de feudos. Pouco importa a diferença. Às terras onde constroem o maior número de tocas, chamam de cidades ou vilas dependendo do tamanho da aglomeração. Algumas construções são usadas para comercializar o que é produzido nas fazendas, outras s
—Ah,Dryfr, embora ainda haja muito que devas saber, diga-me, o que te aflige tanto para vires aqui abruptamenteno meio da noite? — questionou parecendo cansado.—Como já sabes, venho por causa desses seres humanos. O que não sabes é que ao acordar deparei-me com eles rondando as terras próximas a minha casa. Algumas dúzias montando cavalos e dirigindo-se para a minha montanha. Como deves supor, fiquei surpreso ao deparar-me com seres até então
Eu voava alto quando me aproximei do acampamento. A lua cheia, iluminava a noite estrelada. Voei mais vagarosa e suavementepara evitar ruídos com o bater de minhas asas. Planei em círculos por um tempo e, de cima, eu via as fogueiras ainda ardentes no acampamento e as tendas, umas escuras, outras com tímidas fontes de luz dentro. Algumas nuvens encobriram parcialmente a lua e eu sobrevoei de muito alto em uma parte limpa do céu. Nossa visão privilegiada me permitiu verassentinelas de guarda. Dez delas espalhadas, descrevendo um esboço de pentagrama e em cada ponta, duas juntas. Eu esperava acordar refeito, mas o que me fez despertar foi a mais profunda dor física que um Draco pode suportar. Abri os olhos, mas só vi luzes claras e coloridas que ofuscavam minha visão. Via tudo embaçado, via vultos. Sentia o calor do líquido viscoso que fluía em abundância do meu corpo. Percebi manchas vermelhas por onde meu sanguevazava em pontos onde minhas escamas foram arrancadas com violência, minha pele perfurada, minhas garras serradas, algumas arrancadas; minha cauda amputada e meus chifres e espinhos decepados a machadadas; meus dentes quebrados a marretadas. Tudo contribuía para aumentar a dor, o desespero e incapacitar meu corpo. Mas, acima de tudo, uma dor maior habitava minha alma: a faltado mana. Eu não sei como, mas em minha residência rochosa n&atil6 - AGONIA
Acordei em um sobressalto ficando de pé e ofegante como nunca. Passaram alguns dias e, ao contrário daquele pesadelo quepareceu-memuito real, recobrara minhas energias mágicas por completo. Lembrei saudoso de meu amado e falecido irmãoDrwfr. É provável que a dor sentida por ele fora equivalente ao que presenciei em meu pesadelo, de acordo com as descrições do Mestre.Resolvi afastar tais pensamentos e depois do ritual de acordar, espreguiçar, subir ao cume da montanha, certificar-me da segurança e fazer o desjejum, rumei para o Velho Vale uma vez mais. Ao lá chegar, fiz as
—Bem,Dryfr, se com essa notícia me fazes esta cara, então vou lhe dar uma notícia que, com certeza, te alegrará. Como tua mãe, a beladragonesaYdrymdeixou o lugar vago no Conselho dos Sábios e teu irmãoDrwfrteve aquele trágico fim, o lugar de tua mãe passa agora a ti. A partir do próximo Conselho serásDryfr, o Sábio.A notícia me causou tamanha euforia que tossi deixando escapar lufadas flamejantes.Eu!Dryfr, o Sábio! Admito que o título me cai bem. Então as br
Levamos quase um diainteiro para fazer todos os preparativos. Era necessário remover meu leito de preciosidades para um salão adjacente e recobrir todo o chão do salão principal com palha e peles de animais peludos, para deixá-lo mais confortável. No alto, em um dos cantos do salão, nós dois juntos conjuramos o Orbe do Acasalamento. Trata-se de uma esfera mágica que emite luz fraca, calor e aromas agradáveis para tornar ainda melhor esse momento tão importante. O orbe oscila tridimensionalmente causando efeito de sombras dançantes com nossos corpos e estruturas do salão. As paredes rochosas foram esterilizadas com várias de minhas baforadas flamejantes e depois recobertas com óleos aromáticos de árvores nativas. Tudo isso tornou noss