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Crônicas & Causos
Crônicas & Causos
Por: Cleir Edson, poeta e prosador
Um chinelo, beijos e o travesseiro...

         O chinelo voou e passou a milímetros de seu rosto! Ouviu-se um tremendo plaft quando o objeto voador se chocou com o a televisão que se encontrava em cima de um aparador feito do mais valioso e raro jacarandá baiano. Pasmem! Não quebrou a tela do belíssimo aparelho. E o chinelo – peça caríssima em fino couro na cor preta, um finíssimo Scarpazi – ficou lá, no chão, jazendo silenciosamente quieto como se quisesse dizer alguma coisa em protesto, mas nem força tinha para tal. Enquanto isso, silêncio total na sala. Podia-se ouvir o sobrevoo de um mosquito ou de um pernilongo, daqueles que dão aquelas terríveis e dolorosas picadas, imperceptivelmente. A filha, o filho, os netos? Ah, todos silenciaram e mudos permaneceram uma eternidade depois daquele intempestivo e surpreendente plaft. Esperavam uma reação do alvo do raivoso pássaro de couro – sua mãe e vó – para então se manifestarem.

         O tempo? Ah, um ano qualquer desta década rocambolesca, em que nós, a um tempo somos o controverso e polêmico Rocambole; ora posamos de um mítico e heroico Robin Hood; e noutra hora nos travestimos do inconformismo e dos sonhos do banido Fernão Capelo Gaivota – tantas são as acrobacias mentais, físicas e emocionais  que precisamos fazer para buscar a liberdade, para praticar o amor e, claro, para sobreviver e viver heroica e dignamente neste mundão de Deus-Pai.

         O lugar? Uma adorável e fria cidadezinha no interior deste imenso e fantástico Brasil.

         Os personagens e protagonistas? Um casal – juntos há mais de 40 anos até que a morte os separe – como brilhantemente nos legou Rubem Alves em seu fascinante A bigorna e o martelo, em que, dialogando com o Diabo sobre o casamento, este justifica para o inesquecível e talentoso mineiro de Boa Esperança o porquê de sua dissidência de Deus:

[...] “Amor é chama tênue, fogo de palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga. Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho… bibelô de louça. Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de outro amor. Qualquer tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as ilusões do amor.” [...]

         Pois bem, todo esse preâmbulo tem como objetivo minha conversa de hoje com vocês sobre o casamento e, consequentemente, sobre amor, paixão, brigas, tesão, tapas, beijos, chinelos, sexo, remédios, filhos, netos e tantas outras misturas – românticas, poéticas muitas vezes, folclóricas até, que permeiam e dão sabor a esse vínculo tão antigo e tão atual a um só tempo – ora harmonizando o enlace pelo amor, ora alimentado pelo ódio, os quais, paradoxalmente, juntam as pessoas – e que há séculos vêm desafiando homens e mulheres de todos os quadrantes do Planeta.

         Como as personagens desta história e eu fazemos parte de uma mesma geração, posso deixar nesta minha crônica, sensações, impressões e pontos de vista baseados numa percepção pessoal e vivencial dessa realidade tão instigante, intrigante, atraente e por que não dizer, romanesca situação.

         Voltando, portanto, à cena do inusitado objeto voador – cujo alvo era uma belíssima e charmosa mulher sessentona – assim que o silêncio se impôs àquele raivoso e impensado gesto do marido, ela, abaixando-se, pegou do chinelo e o sacudiu em sua destra inúmeras vezes, num movimento contínuo de vai e vem de cima para baixo, aproveitando-se da flexibilidade do mesmo e, como se em alguém fosse bater, apertou-o herculeamente e vociferou, entre dentes, mastigando cada palavra como fosse amendoim torrado e queimado, enquanto seus olhos, impiedosamente, fuzilavam o esposo:

         - Eu bem que podia fazer uma coisa com este chinelo... Mas em respeito aos nossos filhos e netos, não vou!

         Assim são muitos casamentos: até que a morte os separe, infelizmente. Desse modo vivem muitos casais: “entre tapas e beijos”, como canta a sofrência daquela canção... e por que não dizer entre um chinelo voador e uma esposa indignada!

         Mas este causo não termina por aqui. Não! De modo algum. Há muitas nuances e peripécias dos dois para acrescentar, dignas de um Best Seller sobre relacionamentos explosivos no casamento. Senão, vejamos: o casal em questão ainda consegue fazer amor? Sim! Com certeza, sim! Eles se amam, então por que não fazer sexo? Faz parte do matrimônio, não é? Afinal, a carne é fraca...Então, de tempos em tempos eles transam. Se vocês me perguntarem de quanto em quanto tempo... Ah, sinceramente não sei. Nem imagino. É imprevisível. Sei que o fazem. Aí é dia de festa. Dia de soltar rojão e no qual a fronteira demarcada por um firme, macio e enorme travesseiro recebe sinal verde, é retirado e para longe atirado para delírio da libido de ambos os cônjuges. Então tudo pode acontecer. Absolutamente tudo. Desde uma memorável e esplêndida noite de amor até uma separação irreparável, visto que o sexo de um casal é algo sagrado e se, porventura, um dos dois, naquele momento, der o menor sinal, imperceptível que seja, de infidelidade cometida... Ah, aí é o fim. Mesmo que esse casal viva em tempos de paz uma eterna guerra, a traição de corpos é imperdoável, é crime de lesa-matrimônio!

         E assim as noites de ambos vão sendo vividas... Entre um tsunâmi avassalador de desentendimentos versus paixão incontida à mansuetude da paz negociada... até que Ele – o esposo, o destruidor desses momentos de brandura – a título de inexplicável e recorrente provocação, ou seria a idade...? Resolve pegar seus remédios, uns para a pressão arterial, outros para inexplicáveis doentices, isso exatamente às cinco horas da manhã! Incrível! Isso mesmo! Às cinco horas da madruga! Nessa hora, Ela – la bella ragazza – está entrando no primeiro sono da noite já que sua hora de dormir é, invariavelmente, depois das três da madrugada, e o marido, então, para deleite dos especialistas em separação litigiosa, começa a procurar os benditos, ou melhor, os malditos comprimidos numa sacolinha de remédios, repleta de envelopes que produzem aquele barulhinho infernal de plástico contra plástico, o que é desesperadamente irritante para quem nesse momento procura conciliar o sono!

         E toda essa tortura matinal é terrivelmente apimentada pelo abrir e fechar de gavetas e de portas de armários, quando seu exposo procura por uma cueca, por uma perdida meia... ou sabe-se lá pelo quê! Aí é o golpe de misericórdia! Sim! Porque ele simplesmente não abre as gavetas muito menos as portas. Ele não as abre. Não! Aquelas ele as arranca donde elas estão! As portas, aos solavancos ele as escancara! E o barulho? Ah, o barulho é a porta do inferno! E nessa hora crucial, em que ela busca conciliar o sono, chissá concertar também o casamento, mais uma vez, sente arrepios e tremores de raiva incontida e a reconciliação vai-se amotinando numa decisiva, febril e incontrolável vontade de separação!      

         Pois aquela tortura onomatopaica de plásticos e envelopes que se mexem tais quais o estridular de milhares de grilos, gavetas e portas que se abrem e se fecham de modo interminável, qual tiro de canhão numa guerra sem fim, machuca seus ouvidos e espanta o pesado sono que dela tomava posse, lançando a pedra de cal em cima de um casamento que se sustenta numa tênue e invisível linha entre o amor e ódio. C’est fini la passion.

         Será? Não! Ainda não é a hora. Pois, voltando ao diálogo entre Rubem Alves e o Diabo em seu A bigorna e o martelo

[...] “Enganam-se aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas. Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para a cama. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro, voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois, moendo-se mutuamente como uma máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de fazer o outro infeliz!” [...]

         E assim será até que a morte os separe, muito embora haja um travesseiro que já os separa, demarcando a fronteira entre os dois, mas basta um chute naquele belo coxim revestido de finíssima fronha de pura seda rosa chá para que ele voe longe e provoque noites de luxúria e de paixão! Não nos esqueçamos: “onde existe ódio ali há amor que sempre termina na cama, sim, porque no fundo, bem lá no fundo existe um casal que se ama.” Como nos afirma o fantástico Guimarães Rosa pela boca de seu jagunço em seu eterno Grande Sertão: Veredas!

         Até a próxima em que só o vento sabe a resposta... Gratidão, Universo! Gratidão, Divindade!

         Em Cuiabá, 30 de setembro de 2020

Nota de rodapé:

Dedico esta Crônica a Você – Mulher Especial e Anônima – mas que, com toda a certeza existe, não somente em meu imaginário. Absolutamente, não! Você está VIVA em todos os cantos do mundo, em muitos lares e famílias. Assim como vive nossa protagonista em sua controversa, mas apaixonante Vida com seu amado esposo, numa pequena e fria cidadezinha de nosso Abençoado Brasil – Você Vive! Pode ser, inclusive, que você esteja lendo, neste momento, estas minhas despretensiosas linhas...

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