— Como assim vocês perderam todas as minhas malas?A atendente atrás do balcão do aeroporto me encara sem saber o que dizer. As bochechas vermelhas dela indicam vergonha e talvez eu a tivesse intimidado com o tom irritado das minhas palavras. Fixo meu olhar no dela, e as pupilas dilataram nas írises acastanhadas enquanto recebe minha indignação. Os cabelos pretos em uma trança extremamente bem feita destacam-se no uniforme vermelho da companhia aérea.— Sentimos muito, senhorita Revelt! — Diz por fim, os músculos do pescoço magros se ressaltando sobre a pele ao inspirar nervosamente. Um broche dourado e estreito no blazer mostra que posso chamá-la de Candela. — A companhia está ciente da situação, e suas malas, assim como as de outros passageiros estão sendo procuradas nesse momento! Avisaremos assim que forem localizadas, tudo bem?— Não! Nada bem! — Bato com força a palma da minha mão no balcão duro de madeira, e a dor se irradia pelo punho. — Eram quatro malas! Como uma companhia c
Lion para a moto ao lado de um prédio de dois andares, um loft industrial de tijolos, vidro e aço, apesar das palmeiras e cadeiras de praia com guarda-sóis do lado de fora. A cidadezinha litorânea parecia uma cidade fantasma assim que passamos pela placa de boas-vindas. Bairros suburbanos com casinhas familiares, um centro de comércios fechados e a orla da praia vazia. Não muito turística, imagino. Ainda mais sob a tempestade que tinge a paisagem de vários tons de cinza e verde borrados.Penza é um lugar do qual me lembrei por acaso enquanto pensava para onde iria fugir. Há muitos anos, minha avó me contou aventuras de sua juventude e uma delas envolvia um romance de verão em uma cidade charmosa e esquecida. A coincidência é que ela também veio parar aqui sem querer, quando seu carro alugado ficou sem gasolina durante uma viagem de férias com as amigas. Minha avó sempre foi uma mulher livre antes de conhecer meu falecido avô. Hoje, é velha demais para tais aventuras.Vovó me contou so
Decido subir a escada do lado das janelas enormes, assim que ouço o chuveiro ligado. Lion levará algum tempo no banho e detesto ficar sem nada para fazer, então observo o mezanino do último degrau. Um parapeito feito com três cordas de ferro preto, combinando com a escadaria, um amplo espaço lotado de mais bagunça masculina e janelas. Dois pufes, um tapete torto no chão igual ao da sala abaixo e acima dele uma mesa de sinuca antiga e surrada. Nas paredes, pôsteres e mais fotografias polaroides de pessoas diferentes com sorrisos bêbados e divertidos – provavelmente tiradas nas inúmeras festas que ele deve oferecer no loft.Mas o que me chama a atenção são as guitarras penduradas ao lado dos tacos de bilhar e um teclado debaixo delas – sem falar nas três caixas de som no canto, perto do parapeito. Espio lá embaixo, as mãos apoiadas nas grades de ferro finas e Lion ainda continua no banheiro. Aproveito e me aproximo dos instrumentos, passeando os dedos sutilmente pelas teclas do teclado
Abrir os olhos é difícil depois de um bom tempo dormindo. Para ser sincera, eu não tenho a menor ideia de quantas horas dormi e me levanto ainda cambaleando. É estranho acordar sem os barulhos incômodos de Florença, dos carros apressados no trânsito, meu pai ao telefone gritando com algum funcionário da empresa, ou minha mãe - quando estava em casa - ditando regras e mais regras para a governanta sobre meus estudos e rotina.— Bom dia, Bela Adormecida! – Diz Lion quando me vê descer o último degrau da escada e cobrir os olhos com a mão devido à imensa quantidade de luz solar matinal que entra pelas altas janelas de vidro. O som das ondas do mar ecoa em meus ouvidos, e os passarinhos cantam nos galhos dos coqueiros e nos fios elétricos. – Eu comprei café para nós.Ele balança um saquinho engordurado em uma mão, segura um suporte de isopor com dois cafés na outra e fecha a porta com o pé. Seria rude perguntar se ele também tinha comprado iogurte ou frutas? Comer açúcar de manhã não é um
A praia fica a cerca de três quarteirões atrás do loft, e poderíamos ter caminhado até lá facilmente. No entanto, aceitei a moto de bom grado, já que andar de camiseta, quase fina demais e jaqueta não é ideal. Estacionamos em um local aberto cheio de vagas vazias para carros e atravessamos uma avenida em direção ao calçadão.Lion diminui seus passos largos para que eu possa acompanhá-lo com minhas pernas curtas e passos lentos. Alguns carros passam esporadicamente, confirmando que a maioria das pessoas deveria estar desfrutando de outras coisas naquela hora da manhã. Sinto a areia macia e morna sob os pés igual vovó me contou, enquanto o sol acaricia minha pele, trazendo calor e conforto. Nunca é demais aproveitar a vitamina D.O mundo cinza de ontem se transformou em uma paleta de cores pastéis. A brisa fresca balança meus cabelos, envolvendo meu corpo em um carinho que desperta os poros das pernas e dos braços com uma sensação agradável. O céu apresenta tons de azul claro, com nuven
— Você está exagerando!Lion desce da moto depois que a estaciona ao lado do loft. De tanto que corremos em alta velocidade, nossas roupas estavam quase secas e meus cabelos úmidos como os dele.— A gente quase caiu lá atrás! - Argumento meu ponto da discussão em que o acuso de ser irresponsável e completamente maluco por fazer um veículo, que mal para em pé sozinho, chegar a cento e vinte por hora. — Se eu morrer por sua causa, meus pais te matam.— Eles vão ter que te encontrar primeiro. - O loiro destranca a porta da frente e eu reviro os olhos. A provocação me incomoda mais do que deve e me lembro de que não respondi nenhuma mensagem deles e de ninguém. Agora, com certeza há mais delas.Me sinto mal por isso. Deveria ter contado, mesmo depois que estivesse longe o suficiente para que eles não pudessem me impedir. Ainda posso contar. Mas, se fizer isso, todo o meu verão será arruinado e eu prefiro ir ao inferno do que voltar para minha própria casa. Tudo nela, tudo na minha maldita
Demorei mais no banho do que deveria. Primeiro, porque a água quente caindo pelos ombros estava uma delícia e segundo, porque acho que não posso encarar Lion depois do que quase aconteceu alguns minutos mais cedo.Quase nos beijamos. Quase. E isso é o que mantém meus pensamentos a mil e meu coração acelerado. Eu queria aquele maldito beijo e sei que ele também. Mas, não podemos e ele também sabe disso, por inúmeros motivos e todos eles nos magoariam no final. Quando eu voltar para a Itália, quando eu entrar na bolha pesada e obscura que meu sobrenome me obriga a viver e aceitar.Não quero arrastá-lo para esse lado ruim. Não quero que veja o quão fútil, egocêntrico e cruel é além da vida que conhece, além da praia acalorada e do mar azul. Igual, eu estou longe de estar pronta para deixá-lo mergulhar na minha alma quebrada. Por fora posso parecer um diamante, mas por dentro, só há estilhaços cortantes colados por fita adesiva que sempre se solta em uma das pontas.Lion deixou as roupas
Após lotar a sala do loft de roupas e sapatos aqui e ali, e o banheiro com as minhas maquiagens, finalmente me sinto eu mesma de novo. Escolhi uma saia jeans curta, um cropped branco simples de alcinha e uma camisa de linho perolada, que deixei aberta. As sandalhas parecem se adaptar bem aos meus pés que só andaram praticamente descalços desde ontem e o lacinho que dei nas tiras ao redor dos calcanhares ficaram uma graça.Termino de passar o rímel e sorrio para o reflexo no espelho, me reconhecendo novamente. Minhas bochechas estão rosadas, meus lábios corais com gloss e a pontinha do meu nariz, iluminada. Delicada e sexy, outra vez! Guardo tudo na bolsinha e saio para o resto do loft. Vejo o loiro jogado no sofá com o celular nas mãos, entediado de ter que esperar, provavelmente por que demorei mais do que disse que demoraria.— Até que enfim! - Ele se levanta. — Se demorasse mais teria que mudar para um jantar!Lion se cala ao me ver e agradeço por ter blush nas bochechas e disfarça