Decido subir a escada do lado das janelas enormes, assim que ouço o chuveiro ligado. Lion levará algum tempo no banho e detesto ficar sem nada para fazer, então observo o mezanino do último degrau. Um parapeito feito com três cordas de ferro preto, combinando com a escadaria, um amplo espaço lotado de mais bagunça masculina e janelas. Dois pufes, um tapete torto no chão igual ao da sala abaixo e acima dele uma mesa de sinuca antiga e surrada. Nas paredes, pôsteres e mais fotografias polaroides de pessoas diferentes com sorrisos bêbados e divertidos – provavelmente tiradas nas inúmeras festas que ele deve oferecer no loft.
Mas o que me chama a atenção são as guitarras penduradas ao lado dos tacos de bilhar e um teclado debaixo delas – sem falar nas três caixas de som no canto, perto do parapeito. Espio lá embaixo, as mãos apoiadas nas grades de ferro finas e Lion ainda continua no banheiro. Aproveito e me aproximo dos instrumentos, passeando os dedos sutilmente pelas teclas do teclado sem que as mesmas soem suas notas. O mezanino acaba onde começa uma parede, mais um cômodo de frente para a rua chuvosa e mais uma porta está fechada ao lado do teclado. Talvez, um outro quarto.
Sinto o coração saltar no peito com o barulho da porta de entrada e uma voz alta chamando pelo dono do lugar. Viro a cabeça para a voz e me abaixo no segundo em que vejo um cara diferente de Lion atravessando a sala em direção às escadas. Por favor, não suba! imploro ao universo e minhas preces são atendidas.
— Onde caralhos você esteve, Caio? - O tom de Lion ecoa pelo corredor e impede que Caio, seja quem seja, prossiga escada acima e me encontre ali, bisbilhotando as coisas alheias. Aguço minha audição, agachada atrás das caixas de som. — Te liguei o dia todo! Para que você tem um celular se não atende?
— Relaxa, irmãozinho! Já vou sair, só vim buscar umas coisas. – Caio responde como se não tivesse acabado de levar um esporro. Me inclino um centímetro para frente e os vejo lá embaixo, parados no meio da sala de estar.
Lion é um pouco velho do que o garoto com quem conversa, mas são praticamente iguais. O mesmo cabelo loiro e os mesmos olhos castanhos, Caio um pouco mais inconsequente e jovem, pela expressão despreocupada no rosto, as roupas despojadas e o skate debaixo do braço.
— Se eu descobrir que voltou a sair com aqueles caras...
— Vai fazer o que? – Caio provoca e eles se encaram, tensos e sérios.
— Mamãe concordou que poderia morar comigo se não usasse mais aquelas merdas. Você prometeu, cacete! – Lion perde o controle e estremeço com a voz alterada.
Merdas? Drogas? Merda. Onde eu me meti?
— E você não vai contar, porque se contar, ela vai sofrer. – O outro retruca, desafiando o irmão. — Sabe que a mamãe não aguenta mais nada depois do que aconteceu com a Lara.
O silêncio recai sobre ambos por cinco segundos e é rompido por um estrondo de pele e osso batendo contra madeira. Um deles deu um soco na bancada da cozinha e não sei quem é.
— Você está estragando a porra da sua vida. – O loiro fala e preciso me esticar mais alguns centímetros para conseguir vê-los, já que se moveram um tanto de onde estavam. Caio revira os olhos para o irmão ignorando as próximas palavras de Lion. — E eu não vou te ajudar outra vez.
— Me erra, Lion!
Caio esbarra no ombro de Lion de propósito e sai do loft sem se importar se havia voltado para casa há menos de dois minutos. A chuva grossa agora é uma garoa inofensiva. Amaldiçoo a mim mesma por ter tomado decisões precipitadas em não ter aguardado a chuva passar para sair do aeroporto. Se eu aguentasse mais uma hora no desembarque, estaria no meu hotel e talvez com as minhas malas. Mas, eu sou assim. Sempre com decisões erradas.
Volto a ficar em pé e procuro apoio em algum lugar. Meus dedos apertam as teclas e as notas me denunciam, fazendo Lion olhar para cima na mesma hora. Encaro o teclado com raiva e depois o escuto subir até mim usando apenas uma calça de moletom cinza e nada para encobrir o tronco levemente definido. Não são músculos enormes e malhados de academia, mais normais do que imaginei e isso, de alguma forma, me obriga a manter os olhos ali por um tempo.
— Desculpe por isso. – Ele diz. Pisco, as bochechas quentes e coradas. — Meu irmão é um caso perdido.
— Não se preocupe. – O tranquilizo, sentindo-me sem graça por invadir a privacidade dele, mesmo que de maneira indireta. — Todos temos problemas. Eu não deveria ter escutado.
Na verdade, eu não deveria estar aqui, mas estou. Poderia estar em um quarto de hotel com drinks e saunas, mas, naquele momento, queria estar ali. Na verdade, duvido que uma cidade como Penza tenha algo do tipo.
Eu julguei o loiro cedo demais e meus problemas parecem insignificantes agora. Lion carrega muito peso nas costas e, mesmo assim sorri como se tudo fosse perfeito. Ele tem um irmão, talvez da minha idade, que faz de tudo para dificultar a vida dele pelo visto, e uma irmãzinha, uma criança pequena pelo desenho na geladeira, e algo muito ruim aconteceu a ela. Não perguntarei sobre Lara de novo, isso só o machucará mais. Ele tem lidado com muito e não precisa lidar comigo, uma estranha que encontrou no meio da estrada e trouxe para casa.
— Você toca? – Mudo de assunto quando o silêncio entre nós se torna esmagador.
— Sim. – Leva um tempo para que Lion se recupere. Seu sorriso aparece e ele indica as guitarras. — Tenho uma banda. Mais por hobby do que qualquer outra coisa. – Ouço sua explicação perambulando pelo mezanino e parando em frente a mais uma polaroide em cima da mesa de sinuca.
— E isso aqui? – Pego a câmera nas mãos e sorrio também.
— Isso – Lion se aproxima e a tira de mim. — É trabalho. Sou fotógrafo nas horas vagas.
Meu corpo gela com o calafrio que desce pela espinha. Fotógrafo. Merda. Se Lion é fotógrafo, então deve prestar serviços para revistas e jornais e saber quem eu sou, o que significa que sabe o que acontece por aí, porque certamente acompanha as notícias e sabe o que aconteceu em Florença. Mas, por que ele finge o contrário? Minha família é exposta demais nas mídias e talvez, ele me conheça, ou viu meu rosto nas capas em algum momento da vida. Será esse o motivo de ter me ajudado? O incômodo me toma e teria me irritado pelas mentiras dele. Contudo, talvez, exista a possibilidade de ele não ter ideia nenhuma sobre mim e de não prestar serviços para nenhuma revista. Me agarro a isso, por enquanto, porque o contrário me envergonha.
— Meu pai me ensinou a tocar piano quando eu tinha seis anos. – Falo, desviando o rumo da conversa. Qualquer chance de evitar o assunto anterior é bem-vinda. Pressiono algumas teclas do teclado, tocando o começo da melodia clássica de Beethoven n.14. Soa diferente e mais bruto no teclado, mas ainda a mesma.
— Toque para mim?
Lion chegou tão perto que sequer reparo quando isso acontece. As lembranças de um passado feliz me distraem por tempo suficiente para que ele se aproxime como um gato, tanto que preciso erguer a cabeça um pouco para olhá-lo. Sinto seu calor e seu cheiro de sabonete e amaciante, o mesmo que vem de mim.
— Não. – Nego repetidas vezes, sorrindo envergonhada. — Eu não toco para ninguém. Não mais.
— Por que? – Ele está curioso o bastante e, sem saber, cutuca uma ferida ainda aberta em meu peito. Solto o ar e dou de ombros.
— É complicado.
— Sei. – Lion passa os olhos pelo meu rosto sem um pingo de maquiagem e desvio os meus. Queria um lugar para me esconder nesse instante. — Por que, Penza?
— Já respondi isso. – Rebato, dando as costas e fingindo interesse nos pôsteres da parede para esconder minha cara lavada.
— Está bem, mas se eu fugisse de casa para outro país sozinho com dezoito anos, meus pais me matariam. Prefiro não imaginar o que os seus estão fazendo agora, já que me disse que seu pai é um homem importante. Devem ter até colocado a polícia atrás de você. – Lion me segue, respeitando a distância que estabeleço entre nós.
— Acredite, não chamaram. – Paro na mesa de bilhar e brinco com a bola branca, jogando-a e desfazendo o triângulo formado pelas outras bolas. — Se eles perceberem que a filha deles saiu, será um milagre. Nosso relacionamento é...
— Complicado? – Completa ele e capturo seu olhar por cima do ombro. Uma sobrancelha erguida e um sorriso convencido no canto dos lábios, que eu retribuo. — Você deve estar cansada. Pode dormir na minha cama, se quiser.
— Vou ficar no seu sofá. – Me apresso em dizer antes que o convite tome um sentido desnecessário. Não tenho certeza se ele está me convidando para a cama dele com ele, ou apenas oferecendo um lugar para dormir. Pensar em nós dois fazendo algo além de conversar me incomoda pela segunda vez desde que cheguei ao loft. Afinal, eu sou mais nova, mesmo que maior de idade, Lion com certeza, prefere mulheres experientes.
— Definitivamente não! Está uma bagunça e, além disso, tenho algumas coisas para resolver antes de dormir. Pode me passar a guitarra vermelha? – Lion aponta para a guitarra na parede.
Hesito, mas vou em direção a ela. Se a derrubar, estarei em apuros e provavelmente serei expulsa, sem dúvida. A guitarra está pendurada um pouco alta demais, então fico na ponta dos pés até conseguir tirá-la do suporte. Ignoro o pensamento de que minha blusa possa subir demais e entrego a guitarra para ele.
— Obrigada. – Ele agradece e examina o instrumento pesado. — Se quiser, pode ir. Meu quarto fica aqui.
O loiro indica com a cabeça a porta ao lado do teclado. Ele se j**a em um dos pufes cruzando uma perna sobre a outra. Toco a maçaneta, mas antes de abri-la, olho por cima do ombro.
— Lion. – Chamo e encontro seus olhos. — Obrigada por tudo. De verdade.
— Disponha, princesa. – Ele responde, acomodando a guitarra em uma perna e preparando-se para tocar as notas nas cordas.
Reviro os olhos e Lion ri sozinho enquanto eu entro em seu quarto e fecho a porta.
Abrir os olhos é difícil depois de um bom tempo dormindo. Para ser sincera, eu não tenho a menor ideia de quantas horas dormi e me levanto ainda cambaleando. É estranho acordar sem os barulhos incômodos de Florença, dos carros apressados no trânsito, meu pai ao telefone gritando com algum funcionário da empresa, ou minha mãe - quando estava em casa - ditando regras e mais regras para a governanta sobre meus estudos e rotina.— Bom dia, Bela Adormecida! – Diz Lion quando me vê descer o último degrau da escada e cobrir os olhos com a mão devido à imensa quantidade de luz solar matinal que entra pelas altas janelas de vidro. O som das ondas do mar ecoa em meus ouvidos, e os passarinhos cantam nos galhos dos coqueiros e nos fios elétricos. – Eu comprei café para nós.Ele balança um saquinho engordurado em uma mão, segura um suporte de isopor com dois cafés na outra e fecha a porta com o pé. Seria rude perguntar se ele também tinha comprado iogurte ou frutas? Comer açúcar de manhã não é um
A praia fica a cerca de três quarteirões atrás do loft, e poderíamos ter caminhado até lá facilmente. No entanto, aceitei a moto de bom grado, já que andar de camiseta, quase fina demais e jaqueta não é ideal. Estacionamos em um local aberto cheio de vagas vazias para carros e atravessamos uma avenida em direção ao calçadão.Lion diminui seus passos largos para que eu possa acompanhá-lo com minhas pernas curtas e passos lentos. Alguns carros passam esporadicamente, confirmando que a maioria das pessoas deveria estar desfrutando de outras coisas naquela hora da manhã. Sinto a areia macia e morna sob os pés igual vovó me contou, enquanto o sol acaricia minha pele, trazendo calor e conforto. Nunca é demais aproveitar a vitamina D.O mundo cinza de ontem se transformou em uma paleta de cores pastéis. A brisa fresca balança meus cabelos, envolvendo meu corpo em um carinho que desperta os poros das pernas e dos braços com uma sensação agradável. O céu apresenta tons de azul claro, com nuven
— Você está exagerando!Lion desce da moto depois que a estaciona ao lado do loft. De tanto que corremos em alta velocidade, nossas roupas estavam quase secas e meus cabelos úmidos como os dele.— A gente quase caiu lá atrás! - Argumento meu ponto da discussão em que o acuso de ser irresponsável e completamente maluco por fazer um veículo, que mal para em pé sozinho, chegar a cento e vinte por hora. — Se eu morrer por sua causa, meus pais te matam.— Eles vão ter que te encontrar primeiro. - O loiro destranca a porta da frente e eu reviro os olhos. A provocação me incomoda mais do que deve e me lembro de que não respondi nenhuma mensagem deles e de ninguém. Agora, com certeza há mais delas.Me sinto mal por isso. Deveria ter contado, mesmo depois que estivesse longe o suficiente para que eles não pudessem me impedir. Ainda posso contar. Mas, se fizer isso, todo o meu verão será arruinado e eu prefiro ir ao inferno do que voltar para minha própria casa. Tudo nela, tudo na minha maldita
Demorei mais no banho do que deveria. Primeiro, porque a água quente caindo pelos ombros estava uma delícia e segundo, porque acho que não posso encarar Lion depois do que quase aconteceu alguns minutos mais cedo.Quase nos beijamos. Quase. E isso é o que mantém meus pensamentos a mil e meu coração acelerado. Eu queria aquele maldito beijo e sei que ele também. Mas, não podemos e ele também sabe disso, por inúmeros motivos e todos eles nos magoariam no final. Quando eu voltar para a Itália, quando eu entrar na bolha pesada e obscura que meu sobrenome me obriga a viver e aceitar.Não quero arrastá-lo para esse lado ruim. Não quero que veja o quão fútil, egocêntrico e cruel é além da vida que conhece, além da praia acalorada e do mar azul. Igual, eu estou longe de estar pronta para deixá-lo mergulhar na minha alma quebrada. Por fora posso parecer um diamante, mas por dentro, só há estilhaços cortantes colados por fita adesiva que sempre se solta em uma das pontas.Lion deixou as roupas
Após lotar a sala do loft de roupas e sapatos aqui e ali, e o banheiro com as minhas maquiagens, finalmente me sinto eu mesma de novo. Escolhi uma saia jeans curta, um cropped branco simples de alcinha e uma camisa de linho perolada, que deixei aberta. As sandalhas parecem se adaptar bem aos meus pés que só andaram praticamente descalços desde ontem e o lacinho que dei nas tiras ao redor dos calcanhares ficaram uma graça.Termino de passar o rímel e sorrio para o reflexo no espelho, me reconhecendo novamente. Minhas bochechas estão rosadas, meus lábios corais com gloss e a pontinha do meu nariz, iluminada. Delicada e sexy, outra vez! Guardo tudo na bolsinha e saio para o resto do loft. Vejo o loiro jogado no sofá com o celular nas mãos, entediado de ter que esperar, provavelmente por que demorei mais do que disse que demoraria.— Até que enfim! - Ele se levanta. — Se demorasse mais teria que mudar para um jantar!Lion se cala ao me ver e agradeço por ter blush nas bochechas e disfarça
Arrumo minha bagunça reunindo todas as roupas espalhadas nas malas debaixo da escada, aos pés da escrivaninha depois de tirar delas um vestido branco de algodão, rodado com decote em V e mangas largas até os cotovelos, sandálias de saltos altos e bico fino marrom queimado com penduricalhos dourados e opções de colares. Me tranquei no banheiro debaixo por quase uma hora e meia entre uma maquiagem com delineado branco e um batom da cor dos sapatos, um penteado que envolveu apenas duas mechas atrás da cabeça presas por uma presilha com dentes de bronze que a fixaram nos fios castanhos e a difícil decisão entre os colares. Por fim, coloco os três: um mais curto com uma meia lua de ouro e os outros dois com pouca diferença de comprimento, parecidos com medalhões, ou moedas antigas.Quando termino, ouço barulho de vidro contra vidro e algo líquido sobre a bancada entre a cozinha e sala. Lion está enchendo a mochila com uma garrafa de Vodka pela metade, outra cheia de uísque com mel e alguma
Saio do banheiro depois de respirar fundo três vezes e engolir todo o arrependimento de ter aceitado uma carona no meio da estrada, de ter ido para a maldita praia, de ter vindo para essa festa. O único arrependimento que ainda não me consome é o de ter saído de Florença, pelo simples fato de que meu orgulho é maior.A música soa mais alta conforme desço a escada e chego no jardim, mais lotado do que antes - obviamente com mais de trinta pessoas. Bem mais.Corro os olhos pela multidão e não vejo sinal de Lion na mesinha em que estávamos perto da piscina, apesar da mochila e da polaroide estarem sobre ela, para que ninguém decida ocupá-la. Cadê você?— Baixinha! - Bernado me dá um leve susto ao se espremer entre duas pessoas para chegar até mim. Ele segura dois copos nas mãos e um deles está cheio de um líquido vermelho que reconheço como uma imitação ruim do drink que fiz para eles mais cedo. — Achei você! Tome!— Você viu o Lion? - Pergunto ainda procurando o loiro de camisa branca p
As pessoas não estavam no jardim. Todos haviam corrido para dentro da casa para vasculhar cada cômodo na esperança do suposto passeio de lancha - uma lancha que nem existe de verdade.Paro na entrada da porta dos fundos da casa e Lion quase esbarra em minhas costas, lançando um olhar confuso que pergunta silenciosamente o por quê de eu ter parado se acabei de desafiar Bernardo a me dar um prêmio de verdade caso eu ache a maldita bolinha dourada.— Por que paramos?— Porque não está na casa.— Como assim não está na casa? - O loiro franze a testa e eu dou meia volta ficando de frente para ele e indicando a piscina. — Tudo bem, eu não entendi.— Ele pulo do segundo andar. - Explico revirando os olhos pelo lento raciocínio dele. Os respindos da água da piscina deixaram a camisa branca grudada aqui e ali, translúcida em alguns pontos e preciso me concentrar em qualquer outro detalhe dele para não ser tão óbvia, mesmo desejando muito admirar o abdomem sutilmente marcado. — Se eu fosse esco