03

Decido subir a escada do lado das janelas enormes, assim que ouço o chuveiro ligado. Lion levará algum tempo no banho e detesto ficar sem nada para fazer, então observo o mezanino do último degrau. Um parapeito feito com três cordas de ferro preto, combinando com a escadaria, um amplo espaço lotado de mais bagunça masculina e janelas. Dois pufes, um tapete torto no chão igual ao da sala abaixo e acima dele uma mesa de sinuca antiga e surrada. Nas paredes, pôsteres e mais fotografias polaroides de pessoas diferentes com sorrisos bêbados e divertidos – provavelmente tiradas nas inúmeras festas que ele deve oferecer no loft.

Mas o que me chama a atenção são as guitarras penduradas ao lado dos tacos de bilhar e um teclado debaixo delas – sem falar nas três caixas de som no canto, perto do parapeito. Espio lá embaixo, as mãos apoiadas nas grades de ferro finas e Lion ainda continua no banheiro. Aproveito e me aproximo dos instrumentos, passeando os dedos sutilmente pelas teclas do teclado sem que as mesmas soem suas notas. O mezanino acaba onde começa uma parede, mais um cômodo de frente para a rua chuvosa e mais uma porta está fechada ao lado do teclado. Talvez, um outro quarto.

Sinto o coração saltar no peito com o barulho da porta de entrada e uma voz alta chamando pelo dono do lugar. Viro a cabeça para a voz e me abaixo no segundo em que vejo um cara diferente de Lion atravessando a sala em direção às escadas. Por favor, não suba! imploro ao universo e minhas preces são atendidas.

— Onde caralhos você esteve, Caio? - O tom de Lion ecoa pelo corredor e impede que Caio, seja quem seja, prossiga escada acima e me encontre ali, bisbilhotando as coisas alheias. Aguço minha audição, agachada atrás das caixas de som. — Te liguei o dia todo! Para que você tem um celular se não atende?

— Relaxa, irmãozinho! Já vou sair, só vim buscar umas coisas. – Caio responde como se não tivesse acabado de levar um esporro. Me inclino um centímetro para frente e os vejo lá embaixo, parados no meio da sala de estar.

Lion é um pouco velho do que o garoto com quem conversa, mas são praticamente iguais. O mesmo cabelo loiro e os mesmos olhos castanhos, Caio um pouco mais inconsequente e jovem, pela expressão despreocupada no rosto, as roupas despojadas e o skate debaixo do braço.

— Se eu descobrir que voltou a sair com aqueles caras...

— Vai fazer o que? – Caio provoca e eles se encaram, tensos e sérios.

— Mamãe concordou que poderia morar comigo se não usasse mais aquelas merdas. Você prometeu, cacete! – Lion perde o controle e estremeço com a voz alterada.

Merdas? Drogas? Merda. Onde eu me meti?

— E você não vai contar, porque se contar, ela vai sofrer. – O outro retruca, desafiando o irmão. — Sabe que a mamãe não aguenta mais nada depois do que aconteceu com a Lara.

O silêncio recai sobre ambos por cinco segundos e é rompido por um estrondo de pele e osso batendo contra madeira. Um deles deu um soco na bancada da cozinha e não sei quem é.

— Você está estragando a porra da sua vida. – O loiro fala e preciso me esticar mais alguns centímetros para conseguir vê-los, já que se moveram um tanto de onde estavam. Caio revira os olhos para o irmão ignorando as próximas palavras de Lion. — E eu não vou te ajudar outra vez.

— Me erra, Lion!

Caio esbarra no ombro de Lion de propósito e sai do loft sem se importar se havia voltado para casa há menos de dois minutos. A chuva grossa agora é uma garoa inofensiva. Amaldiçoo a mim mesma por ter tomado decisões precipitadas em não ter aguardado a chuva passar para sair do aeroporto. Se eu aguentasse mais uma hora no desembarque, estaria no meu hotel e talvez com as minhas malas. Mas, eu sou assim. Sempre com decisões erradas.

Volto a ficar em pé e procuro apoio em algum lugar. Meus dedos apertam as teclas e as notas me denunciam, fazendo Lion olhar para cima na mesma hora. Encaro o teclado com raiva e depois o escuto subir até mim usando apenas uma calça de moletom cinza e nada para encobrir o tronco levemente definido. Não são músculos enormes e malhados de academia, mais normais do que imaginei e isso, de alguma forma, me obriga a manter os olhos ali por um tempo.

— Desculpe por isso. – Ele diz. Pisco, as bochechas quentes e coradas. — Meu irmão é um caso perdido.

— Não se preocupe. – O tranquilizo, sentindo-me sem graça por invadir a privacidade dele, mesmo que de maneira indireta. — Todos temos problemas. Eu não deveria ter escutado.

Na verdade, eu não deveria estar aqui, mas estou. Poderia estar em um quarto de hotel com drinks e saunas, mas, naquele momento, queria estar ali. Na verdade, duvido que uma cidade como Penza tenha algo do tipo.

Eu julguei o loiro cedo demais e meus problemas parecem insignificantes agora. Lion carrega muito peso nas costas e, mesmo assim sorri como se tudo fosse perfeito. Ele tem um irmão, talvez da minha idade, que faz de tudo para dificultar a vida dele pelo visto, e uma irmãzinha, uma criança pequena pelo desenho na geladeira, e algo muito ruim aconteceu a ela. Não perguntarei sobre Lara de novo, isso só o machucará mais. Ele tem lidado com muito e não precisa lidar comigo, uma estranha que encontrou no meio da estrada e trouxe para casa.

— Você toca? – Mudo de assunto quando o silêncio entre nós se torna esmagador.

— Sim. – Leva um tempo para que Lion se recupere. Seu sorriso aparece e ele indica as guitarras. — Tenho uma banda. Mais por hobby do que qualquer outra coisa. – Ouço sua explicação perambulando pelo mezanino e parando em frente a mais uma polaroide em cima da mesa de sinuca.

— E isso aqui? – Pego a câmera nas mãos e sorrio também.

— Isso – Lion se aproxima e a tira de mim. — É trabalho. Sou fotógrafo nas horas vagas.

Meu corpo gela com o calafrio que desce pela espinha. Fotógrafo. Merda. Se Lion é fotógrafo, então deve prestar serviços para revistas e jornais e saber quem eu sou, o que significa que sabe o que acontece por aí, porque certamente acompanha as notícias e sabe o que aconteceu em Florença. Mas, por que ele finge o contrário? Minha família é exposta demais nas mídias e talvez, ele me conheça, ou viu meu rosto nas capas em algum momento da vida. Será esse o motivo de ter me ajudado? O incômodo me toma e teria me irritado pelas mentiras dele. Contudo, talvez, exista a possibilidade de ele não ter ideia nenhuma sobre mim e de não prestar serviços para nenhuma revista. Me agarro a isso, por enquanto, porque o contrário me envergonha.

— Meu pai me ensinou a tocar piano quando eu tinha seis anos. – Falo, desviando o rumo da conversa. Qualquer chance de evitar o assunto anterior é bem-vinda. Pressiono algumas teclas do teclado, tocando o começo da melodia clássica de Beethoven n.14. Soa diferente e mais bruto no teclado, mas ainda a mesma.

— Toque para mim?

Lion chegou tão perto que sequer reparo quando isso acontece. As lembranças de um passado feliz me distraem por tempo suficiente para que ele se aproxime como um gato, tanto que preciso erguer a cabeça um pouco para olhá-lo. Sinto seu calor e seu cheiro de sabonete e amaciante, o mesmo que vem de mim.

— Não. – Nego repetidas vezes, sorrindo envergonhada. — Eu não toco para ninguém. Não mais.

— Por que? – Ele está curioso o bastante e, sem saber, cutuca uma ferida ainda aberta em meu peito. Solto o ar e dou de ombros.

— É complicado.

— Sei. – Lion passa os olhos pelo meu rosto sem um pingo de maquiagem e desvio os meus. Queria um lugar para me esconder nesse instante. — Por que, Penza?

— Já respondi isso. – Rebato, dando as costas e fingindo interesse nos pôsteres da parede para esconder minha cara lavada.

— Está bem, mas se eu fugisse de casa para outro país sozinho com dezoito anos, meus pais me matariam. Prefiro não imaginar o que os seus estão fazendo agora, já que me disse que seu pai é um homem importante. Devem ter até colocado a polícia atrás de você. – Lion me segue, respeitando a distância que estabeleço entre nós.

— Acredite, não chamaram. – Paro na mesa de bilhar e brinco com a bola branca, jogando-a e desfazendo o triângulo formado pelas outras bolas. — Se eles perceberem que a filha deles saiu, será um milagre. Nosso relacionamento é...

— Complicado? – Completa ele e capturo seu olhar por cima do ombro. Uma sobrancelha erguida e um sorriso convencido no canto dos lábios, que eu retribuo. — Você deve estar cansada. Pode dormir na minha cama, se quiser.

— Vou ficar no seu sofá. – Me apresso em dizer antes que o convite tome um sentido desnecessário. Não tenho certeza se ele está me convidando para a cama dele com ele, ou apenas oferecendo um lugar para dormir. Pensar em nós dois fazendo algo além de conversar me incomoda pela segunda vez desde que cheguei ao loft. Afinal, eu sou mais nova, mesmo que maior de idade, Lion com certeza, prefere mulheres experientes.

— Definitivamente não! Está uma bagunça e, além disso, tenho algumas coisas para resolver antes de dormir. Pode me passar a guitarra vermelha? – Lion aponta para a guitarra na parede.

Hesito, mas vou em direção a ela. Se a derrubar, estarei em apuros e provavelmente serei expulsa, sem dúvida. A guitarra está pendurada um pouco alta demais, então fico na ponta dos pés até conseguir tirá-la do suporte. Ignoro o pensamento de que minha blusa possa subir demais e entrego a guitarra para ele.

— Obrigada. – Ele agradece e examina o instrumento pesado. — Se quiser, pode ir. Meu quarto fica aqui.

O loiro indica com a cabeça a porta ao lado do teclado. Ele se j**a em um dos pufes cruzando uma perna sobre a outra. Toco a maçaneta, mas antes de abri-la, olho por cima do ombro.

— Lion. – Chamo e encontro seus olhos. — Obrigada por tudo. De verdade.

— Disponha, princesa. – Ele responde, acomodando a guitarra em uma perna e preparando-se para tocar as notas nas cordas.

Reviro os olhos e Lion ri sozinho enquanto eu entro em seu quarto e fecho a porta.

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