Cruel Summer
Cruel Summer
Por: vic
01

— Como assim vocês perderam todas as minhas malas?

A atendente atrás do balcão do aeroporto me encara sem saber o que dizer. As bochechas vermelhas dela indicam vergonha e talvez eu a tivesse intimidado com o tom irritado das minhas palavras. Fixo meu olhar no dela, e as pupilas dilataram nas írises acastanhadas enquanto recebe minha indignação. Os cabelos pretos em uma trança extremamente bem feita destacam-se no uniforme vermelho da companhia aérea.

— Sentimos muito, senhorita Revelt! — Diz por fim, os músculos do pescoço magros se ressaltando sobre a pele ao inspirar nervosamente. Um broche dourado e estreito no blazer mostra que posso chamá-la de Candela. — A companhia está ciente da situação, e suas malas, assim como as de outros passageiros estão sendo procuradas nesse momento! Avisaremos assim que forem localizadas, tudo bem?

— Não! Nada bem! — Bato com força a palma da minha mão no balcão duro de madeira, e a dor se irradia pelo punho. — Eram quatro malas! Como uma companhia com inúmeros trabalhadores, que servem para etiquetar as bagagens dos passageiros, conseguem a proeza de perder quatro malas de uma só vez? — Minha voz sai mais exaltada do que deveria, vinda de alguém como eu. Essa passa longe de ser uma atitude aceitável perante a sociedade, e teria sido repreendida se mamãe estivesse aqui. Mas ela não está. Respiro fundo para acalmar os ânimos. — Quer saber? Tudo bem, obrigada!

Dou as costas ao balcão e olho em volta, para as pessoas fazendo check-in, comendo no único café que há dentro desse aeroporto na áerea de desembarque e fugindo dos motoristas desesperados por um passageiro que queira uma corrida até o local que ficarão. Me sento em uma das cadeiras de uma fileira vazia perto do portão de desembarque e deixo minha bolsa ao lado — a única coisa que me sobrou dentre todas as outras que tinham sido deixadas em algum lugar do mundo, considerando que os inúteis, que deveriam se certificar de que todas as bagagens chegassem no destino correto, possivelmente, as embarcaram em qualquer outro avião. Por que infernos eu viajei sem uma mala de mão?

Alcanço meu celular no bolso detrás da calça jeans e preciso criar coragem para desbloquear a tela. Solto o ar no segundo seguinte. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Eles ainda não sabem que eu desapareci. Estou bem longe e não está em meus planos voltar tão cedo. Não antes do fim do verão, pelo menos. Muitas coisas aconteceram, e tentar esquecer será o segundo passo. O primeiro foi sair daquela droga de cidade hipócrita e cheia de abutres ansiosos por qualquer deslize que pudessem usar em suas revistas e blogs de fofoca.

Decido que já é hora de chamar um táxi e ir para algum hotel e torcer para que seja um lugar paradisíaco onde eu passarei todo o meu longo e quente verão. Sei que deveria ter reservado antes de viajar, mas isso seria uma pista gigante de onde eu estou e essa não é a intenção. Estico o braço para pegar minha bolsa ao lado e saio pelas portas duplas deslizantes. O barulho torrencial de uma tempestade me atinge com a mesma intensidade que o vento forte j**a meus cabelos em meus olhos, obrigando-me a tirá-los antes que me ceguem. Ótimo! Chuva.

Entro no primeiro táxi que vejo, sentindo meus poros arrepiados com o clima gélido do fim de tarde. Parece que minha sorte me abandonou, porque eu sou a única pessoa do mundo que chegou em uma das cidades mais quentes do país vizinho, com o mundo desabando em água e frio. Explico o endereço para o motorista e partimos, o motor rangendo debaixo de mim enquanto as gotas caem violentamente pelas janelas fechadas do carro. Ele claramente desejou ter escolhido outro passageiro com um destino mais próximo do que os sessenta quilômetros que levaríamos para chegar até a cidadezinha litorânea onde ninguém sabe quem eu sou.

Eu me certifiquei disso, é óbvio. Nenhum jornal relevante, nenhum canal de televisão se preocupando em mostrar nada além do clima, das competições de surfe, novelas e desenhos animados para crianças. Quando pessoas como eu querem se afastar, geralmente vão para o interior. Eu estou indo para o outro lado. Todo e qualquer esforço é válido para o completo isolamento.

A cidade parece ser muito bonita, mas com toda essa chuva eu quase não vejo nada além de um mar furioso e nuvens cobrindo a imensidão do céu. Encosto minha testa na superfície gelada e embaçada do vidro e a limpo para enxergar a estrada, a encosta de montanhas e as palmeiras altas. Quando solto o ar dos pulmões com pesar, o mesmo torna a embaçar a janela e desisto de assistir ao percurso. Vasculho minha bolsa procurando pela carteira com notas que pagarão a viagem. Engulo em seco e meu coração para por um instante, gelando todas as minhas terminações nervosas. Se eu tivesse algo no estômago, além da salada do avião, certamente teria vomitado. Meu dinheiro sumiu e o aeroporto ficou para trás há alguns longos quilômetros.

— Droga! – Murmuro para mim mesma, derrubando um batom, o celular, fones de ouvido e chicletes no banco traseiro, revirando o mais novo modelo da Prada de cabeça para baixo. Um calafrio me percorre com a impressão de que alguém me roubou nos poucos minutos em que deixei a bolsa na cadeira, antes de sair do aeroporto. Ou, talvez, dentro do próprio avião, ou quando fui ao banheior antes do embarque. Que seja, me ferraram de qualquer jeito.— Ah, com licença? – Me inclino para frente, apoiando as mãos em ambos os bancos dianteiros. O motorista, um homem de meia-idade com cabelos quase brancos, alguns quilos a mais e uma expressão amargurada, olha para mim pelo retrovisor central. — Desculpe, acho que fui roubada e...

— Você não tem como pagar? – Ele é direto e, por mais difícil que seja admitir, aceno com a cabeça em concordância. Eu nunca precisei de dinheiro e essa sensação é horrível e angustiante. Sinto o freio de mão ser puxado e o táxi parar no meio da estrada de mão única, com a encosta da montanha de um lado e um precipício cheio de mato e pedras do outro. — Terei que pedir que saia, senhorita.

— Perdão? – Pisco para o homem, os olhos arregalados pelo choque. Espero até perceber que ele parece irredutível em sua decisão terrível. — Mas, a chuva está muito forte e...

Seus olhos me olham um tanto irritados e inspiro, guardando tudo de volta dentro da bolsa. Sem malas, sem documentos, sem dinheiro e em breve, ensopada. Abro a porta, as gotas já inundando meus Louboutin e minha saia cor creme. O gelo da água penetrando na pele exposta do joelho. Antes de sair, me viro com o nariz empinado.

— Depois dizem que os turistas que são mal educados!

Bato a porta ao sair e o táxi canta pneu ao me abandonar ali. Leva menos de um milésimo de segundo para me tornar uma cachoeira ambulante com tanta água escorrendo de minhas roupas e cabelo. Minha camisa branca gruda no corpo ressaltando o top de renda da mesma cor me deixando agoniada, como se vários pares de dedos estivessem me tocando. Olho para meu celular e a tela pisca antes de apagar completamente. Perfeito! Merda.

Observo os dois lados da estrada, esperançosa por algum outro carro que talvez passe por mim. Não há sequer uma árvore para me proteger desse dilúvio e o que me resta foi a calçada do acostamento. Ninguém, em sã consciência, sairia de casa com esse tempo e posso esquecer minhas esperanças ao me dar conta disso. Me sento no pequeno espaço plano e enfio os dedos nos cabelos, que param logo no início pelas mechas molhadas. Em que droga você se meteu, Theo? Eu tenho zero ideias de como eu sairei daqui ou para onde irei, uma vez que meus documentos ficaram junto com o dinheiro e o nenhum hotal aluga um quarto sem pagamento. Tomara que o infeliz que me roubou morra nesse momento!

Pode ser minha imaginação me pregando uma peça, mas me inclino para frente com o ronco de algum motor se aproximando. Por favor, não seja um trovão! Por favor! Uma moto se aproxima e diminui a velocidade, parando à minha frente, enfrentando o vento que agride meu rosto. Puxo os cabelos para trás das orelhas - não que adiante muita coisa, pois meus cílios estão pesados demais para ver algo além da tempestade contra o asfalto áspero. Sinto o coração subir para a garganta com o pensamento que se segue: Era só o que me faltava! Serei assaltada, sequestrada ou pior!

Analiso a silhueta descendo da moto e meus batimentos disparam com a ansiedade e o medo. Alto e vestindo couro preto. Ele tira o capacete, revelando um rosto que me surpreende. Acredito que tenha criado uma aparência para ele com base em meus pensamentos catastróficos anteriores, o que me faz repreender a mim mesma por seguir os estereótipos.

— Tudo bem por aí? – O desconhecido pergunta, analisando cada centímetro do meu ser com as mãos nos quadris estreitos, a jaqueta de couro pingando água, descendo para a calça e até os coturnos. — Sabe, se quiser pensar na vida, tem lugares melhores onde você não pegaria uma pneumonia. – Zomba, e suas covinhas aparecem com o aumento do sorriso.

Apenas o encaro, sem saber muito o que dizer. Bad-boy, cabelos loiros e motoqueiro com um sorriso cafajeste. Será que é possível ficar pior?

— Se vai me assaltar, saiba que já fizeram isso hoje. Então, deu azar, não é o seu dia. – Respondo de mau humor. Detesto me sentir molhada por tempo demais, e o fato de estar perdida, sozinha e sem roupas apenas piora a situação.

— Nem o seu, ao que parece. – Retruca, mantendo o sorriso idiota nos lábios. — Quer que eu te deixe em algum lugar? – Pergunta, segurando o capacete dentro da jaqueta para evitar que pegue chuva, o que é um ato falho, porque a chuva já molhou segundos antes o estofado interno.

— Eu nunca vou subir nessa coisa! – Cruzo os braços. Agora, meus pés estão escorregadios dentro dos saltos. Torço o nariz para a moto, e ele revira os olhos. — Não ando em veículos que não param em pé sozinhos, e além disso, eu não te conheço!

— Primeiro lugar, ai! – Leva a mão livre ao coração, como se o tivesse machucado de verdade. Talvez, no máximo, o ofendi. Mas sequer ligo para isso. — Segundo, se ficar aqui, vai no mínimo, pegar uma gripe bem feia.

— E por que isso seria da sua conta? – Sou grosseira demais e me arrependo no instante seguinte, porém, me recuso a pedir desculpas. O estresse me domina, e eu pingo em lugares que nem sabia que estavam molhados e não tenho para onde ir.

— Porque eu sou um cavalheiro? – Insiste, com as sobrancelhas arqueadas, e o sorriso ganha um tom de brincadeira e ironia sem sentido naquela hora. Sua mão vem para mim, aguardando ser pega, e suspiro, aceitando a ajuda para me levantar do acostamento depois de concluir que esse cara, infelizmente, é minha única opção se quiser sair do meio da estrada.

— Um cavalheiro sem nome? – Provoco, enquanto o assisto passar o capacete pela minha cabeça e prender o fecho debaixo do meu queixo, sua boca propositalmente próxima da minha. Resolvo ignorar o detalhe de que só temos um capacete para proteger um de nós.

— Lion, ao seu dispor, princesa...?

— Theodora. – Respondo, olhando tempo demais para os olhos castanhos dele. — E eu não sou princesa! – Ressalto aceitando, outra vez, a mão dele para subir na garupa da moto.

— Tem certeza? – Fala soltando o apoio do asfalto e o prendendo na lateral esquerda, testando o equilíbrio com o próprio corpo. — Acho que foi engano o príncipe ter aparecido em um cavalo preto e motorizado para salvá-la dessa terrível tempestade!

— Engraçadinho! – Devolvo, afiada, e o vejo sorrir pelo retrovisor. O motor range, e agarro sua cintura com o susto e a incerteza se apoderando de mim. Suas costelas se expandem em um riso convencido, que fica preso lá dentro, e minhas bochechas queimam.

Voamos pela estrada com os pingos da chuva parecendo beliscões gélidos contra minha pele. Eu não sei onde estou me metendo e espero que não seja em algo tão ruim quanto parece ser. Conheço Lion há apenas dois minutos insuficientes para confiar nele, mas preciso, se pretendo dormir sob um teto hoje. Jamais ligarei para meus pais e pedirei ajuda, isso mostraria a eles que ainda dependo deles. Tenho dezoito anos e posso cuidar de mim mesma.

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