Capítulo 2 - NOME AMALDIÇOADO

Um mês antes do baile

CINDERELA

— Cindy, você viu meu vestido lilás? — a porta do meu quarto abre sem aviso prévio e Anastácia já vai falando.

Quarto é forma de falar. Eu durmo e moro em um pequeno cômodo nos fundos do imóvel que era dos meus pais, foi construído originalmente para ser um quarto de empregada, o que não deixa de ser, já que eu sou a empregada. Escrava, sendo mais realista.

Rapidamente coloco a toalha na frente do corpo. O que não é o bastante para esconder a falta de curvas e carne.

Droga! Anastácia sempre surge na hora errada.

Não que eu tenha vergonha do meu corpo ou algo assim, só não gosto de não ter privacidade. E o meu quarto não tem sequer fechadura. Segundo a minha madrasta é para impedir que eu traga homens para fornicar. Mas a verdade é outra. É um verdadeiro pesadelo.

Lady Tedesco é uma megera que se acha a própria rainha da Inglaterra. Ela não liga para mais ninguém além de si.

Chego a pensar que se deve ao fato do seu nome ser Lady. Será que os pais dela sabiam o quanto isso iria influenciar? Duvido que soubessem. Assim como os meus pais não sabiam o inferno que me condenaria ao chamar para mim a maldição do pior conto de fadas.

— Não, irmã. Pergunta a mamãe. Ou olhe no seu closet. Todos os seus vestidos estão limpos e passados lá — respondo.

Irmã. Mãe. São duas coisas que essas mulheres não são. Mas enquanto morar nesse lugar preciso chamá-las assim, são ordens da aspirante a rainha.  

Ao contrário sair para perguntar ou conferir onde falei, ela entra e senta na cama minha cama de solteiro, que balança por estar escorada com tijolos onde quebrou há mais de um ano. Seu olhar passeia pelo meu corpo  e ela finge esconder uma risadinha.

Aperto a toalha contra o corpo com mais força. Estou usando apenas uma calcinha cor de rosa e um sutiã da mesma cor, além da toalha na frente.

— O que foi? — reviro os olhos para a ruiva debochada.

Sei exatamente o que foi. A diversão das pessoas nessa casa é criticar e humilhar, principalmente o meu corpo.

— Ah Cindy... você parece ter emagrecido mais. As pessoas vão pensar que a mamãe maltrata você.

E maltrata. Todos vocês maltratam. Engulo o ódio e apenas digo:

— Eu não emagreci mais.

— Pois parece.

Suspiro. Eu queria muito ter o poder para fazer essa mulher desaparecer da minha frente. Até quando terei que suportar isso?

Às vezes tudo que eu queria era que um dos príncipes encantados das histórias que mamãe contava saísse das páginas e viesse me resgatar.

Só que príncipes não existem, então suporto isso há sete anos.

Anastácia cruza os braços, só para evidenciar o quanto seus seios são maiores que os meus. Depois j**a sutilmente os cabelos com cachos vermelhos para trás, só para evidenciar o quanto meu cabelo é sem graça e pálido diante do dela, como a dona.

Eu quero que ela saia daqui, então dou o que procura: uma vítima.

— Irmã, tem sete anos que moramos na mesma casa. Acho que é tempo suficiente para você saber que não existe nada que me engorde. Não sou como você e a Drizella, que moldam seus corpos como querem. O meu corpo é assim e devo morrer com ele assim.

Ela dá uma risadinha.

Aprendi a me menosprezar porque sei que isso as deixam contentes e elas me deixam em paz quando conseguem sua alegria diária.

— Pois é. Moramos na mesma casa há sete anos e nunca te vi com um namorado.

Minha vontade de gritar que pessoas magras também namoram é barrada pelo bom senso. Nós duas sabemos porque não tive e não tenho namorados.

Simplesmente digo:

— Não penso em romances.

— Pois eu penso. Vou fisgar um dos irmãos Seven e me casar. Quero ver todas as cariocas me invejando e todos os cariocas se borrando de medo de mim.

— Você e a Drizella são lindas, podem ter qualquer homem aos pés.

Não vomita, Cinderela. Finja que realmente acredita nisso.

Não que as irmãs não sejam lindas, só falta personalidade nas duas, são duas desmioladas que só pensam em qual roupa usar e para qual homem tirar.

— Verdade. Tanto que hoje vou transar com um Seven, de novo.

Eu não disse. Ela nem liga para qual irmão, desde que seja um dos mafiosos mais temidos do Rio.

— E olha — ela balança um papel dourado —, nossa família foi convidada para o baile dos Seven. Dizem que o convite foi escrito com ouro.

Ela abraça o convite e continua se gabando:

— Estou confiante que é nesse baile que oficializo meu lugar naquela família.

— Boa sorte! Estou torcendo por você. — E não é mentira. Talvez ficando tão podre de rica como aqueles mafiosos, os Tedesco me libertam. — E como não tenho a sua sorte ou beleza, vou trabalhar. Se importa de sair para eu me trocar?

— Ninguém quer ver seus ossos. — Ela se levanta e rebola até a porta. — E vê se não negligencia o trabalho aqui por causa de outro trabalho. Meus tios não vão gostar de saber.

Meu corpo entra em alerta só em ouvir a palavra “tios”. Tenho pavor daqueles homens, principalmente do maldito Lucas, que assombra meus pesadelos há meses.

Nem me dou ao trabalho de responder. Ela sai. Fez o que veio fazer: se gabar, me atormentar, debochar da minha aparência.

Como eu disse, não tenho problemas com a minha aparência, tem momentos que até me acho bonita, mas isso não impede de doer. Palavras tem tanto poder.

Limpo uma lágrima teimosa e trato de me vestir. Nada de atrasar para o trabalho.

Eu só tenho a mim nesse mundo. A família do meu pai não liga para mim, muito menos a da minha mãe. Depois que perdi os dois eu fiquei sozinha, mesmo tendo madrasta e irmãs postiças.

Eu tinha catorze anos quando conheci o inferno. Foi quando cheguei do enterro do meu pai e descobri que com ele foi embora qualquer consideração que sua mulher tinha por mim. Fui jogada para o quartinho e me fizeram de empregada. E quando eu tentei reagir, fui coagida pelos irmãos dela, que são policiais. Eles são tão assustadores. Por causa deles, prefiro entrar em um carro de bandido que em uma viatura policial. E por causa deles, estou presa a essa vida medíocre. Por sorte, a minha madrasta permitiu que eu trabalhasse fora, desde que eu não deixasse de fazer meus deveres em casa e lhe desse uma grande parte do dinheiro para as despesas da casa.

Mesmo morta pelo cansaço, eu amo os momentos fora da casa em que cresci.

Aqui sou constantemente ameaçada de passar o resto da vida na cadeia por um crime qualquer que possam inventar. E às vezes chego a pensar se seria tão ruim assim ser presa.

Sinceramente, não existe momento em que eu anseie mais que a hora de ir trabalhar na casa dos Dubois.

Às vezes me pergunto se tudo que aconteceu comigo foi uma maldição pelo meu nome. Minha mãe, completamente apaixonada por contos de fadas, queria ter várias filhas para colocar nomes de princesas, mas eu nasci e ela me chamou de Cinderela. E talvez seja por isso que ela tenha morrido poucos anos depois, sem ter mais filhos, e meu pai tenha se casado com uma mulher com duas filhas e depois morrido me deixando em sofrimento nas mãos dessas pessoas. Mas a minha história só se assemelha até ai, porque não chegou nenhuma fada madrinha ou príncipe para me escolher. E já me acostumei com a ideia de que nunca vai chegar.

Eu tenho vinte e um anos, e nenhuma previsão de conhecer a liberdade.

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