Um mês antes do baile
CINDERELA
— Cindy, você viu meu vestido lilás? — a porta do meu quarto abre sem aviso prévio e Anastácia já vai falando.
Quarto é forma de falar. Eu durmo e moro em um pequeno cômodo nos fundos do imóvel que era dos meus pais, foi construído originalmente para ser um quarto de empregada, o que não deixa de ser, já que eu sou a empregada. Escrava, sendo mais realista.
Rapidamente coloco a toalha na frente do corpo. O que não é o bastante para esconder a falta de curvas e carne.
Droga! Anastácia sempre surge na hora errada.
Não que eu tenha vergonha do meu corpo ou algo assim, só não gosto de não ter privacidade. E o meu quarto não tem sequer fechadura. Segundo a minha madrasta é para impedir que eu traga homens para fornicar. Mas a verdade é outra. É um verdadeiro pesadelo.
Lady Tedesco é uma megera que se acha a própria rainha da Inglaterra. Ela não liga para mais ninguém além de si.
Chego a pensar que se deve ao fato do seu nome ser Lady. Será que os pais dela sabiam o quanto isso iria influenciar? Duvido que soubessem. Assim como os meus pais não sabiam o inferno que me condenaria ao chamar para mim a maldição do pior conto de fadas.
— Não, irmã. Pergunta a mamãe. Ou olhe no seu closet. Todos os seus vestidos estão limpos e passados lá — respondo.
Irmã. Mãe. São duas coisas que essas mulheres não são. Mas enquanto morar nesse lugar preciso chamá-las assim, são ordens da aspirante a rainha.
Ao contrário sair para perguntar ou conferir onde falei, ela entra e senta na cama minha cama de solteiro, que balança por estar escorada com tijolos onde quebrou há mais de um ano. Seu olhar passeia pelo meu corpo e ela finge esconder uma risadinha.
Aperto a toalha contra o corpo com mais força. Estou usando apenas uma calcinha cor de rosa e um sutiã da mesma cor, além da toalha na frente.
— O que foi? — reviro os olhos para a ruiva debochada.
Sei exatamente o que foi. A diversão das pessoas nessa casa é criticar e humilhar, principalmente o meu corpo.
— Ah Cindy... você parece ter emagrecido mais. As pessoas vão pensar que a mamãe maltrata você.
E maltrata. Todos vocês maltratam. Engulo o ódio e apenas digo:
— Eu não emagreci mais.
— Pois parece.
Suspiro. Eu queria muito ter o poder para fazer essa mulher desaparecer da minha frente. Até quando terei que suportar isso?
Às vezes tudo que eu queria era que um dos príncipes encantados das histórias que mamãe contava saísse das páginas e viesse me resgatar.
Só que príncipes não existem, então suporto isso há sete anos.
Anastácia cruza os braços, só para evidenciar o quanto seus seios são maiores que os meus. Depois j**a sutilmente os cabelos com cachos vermelhos para trás, só para evidenciar o quanto meu cabelo é sem graça e pálido diante do dela, como a dona.
Eu quero que ela saia daqui, então dou o que procura: uma vítima.
— Irmã, tem sete anos que moramos na mesma casa. Acho que é tempo suficiente para você saber que não existe nada que me engorde. Não sou como você e a Drizella, que moldam seus corpos como querem. O meu corpo é assim e devo morrer com ele assim.
Ela dá uma risadinha.
Aprendi a me menosprezar porque sei que isso as deixam contentes e elas me deixam em paz quando conseguem sua alegria diária.
— Pois é. Moramos na mesma casa há sete anos e nunca te vi com um namorado.
Minha vontade de gritar que pessoas magras também namoram é barrada pelo bom senso. Nós duas sabemos porque não tive e não tenho namorados.
Simplesmente digo:
— Não penso em romances.
— Pois eu penso. Vou fisgar um dos irmãos Seven e me casar. Quero ver todas as cariocas me invejando e todos os cariocas se borrando de medo de mim.
— Você e a Drizella são lindas, podem ter qualquer homem aos pés.
Não vomita, Cinderela. Finja que realmente acredita nisso.
Não que as irmãs não sejam lindas, só falta personalidade nas duas, são duas desmioladas que só pensam em qual roupa usar e para qual homem tirar.
— Verdade. Tanto que hoje vou transar com um Seven, de novo.
Eu não disse. Ela nem liga para qual irmão, desde que seja um dos mafiosos mais temidos do Rio.
— E olha — ela balança um papel dourado —, nossa família foi convidada para o baile dos Seven. Dizem que o convite foi escrito com ouro.
Ela abraça o convite e continua se gabando:
— Estou confiante que é nesse baile que oficializo meu lugar naquela família.
— Boa sorte! Estou torcendo por você. — E não é mentira. Talvez ficando tão podre de rica como aqueles mafiosos, os Tedesco me libertam. — E como não tenho a sua sorte ou beleza, vou trabalhar. Se importa de sair para eu me trocar?
— Ninguém quer ver seus ossos. — Ela se levanta e rebola até a porta. — E vê se não negligencia o trabalho aqui por causa de outro trabalho. Meus tios não vão gostar de saber.
Meu corpo entra em alerta só em ouvir a palavra “tios”. Tenho pavor daqueles homens, principalmente do maldito Lucas, que assombra meus pesadelos há meses.
Nem me dou ao trabalho de responder. Ela sai. Fez o que veio fazer: se gabar, me atormentar, debochar da minha aparência.
Como eu disse, não tenho problemas com a minha aparência, tem momentos que até me acho bonita, mas isso não impede de doer. Palavras tem tanto poder.
Limpo uma lágrima teimosa e trato de me vestir. Nada de atrasar para o trabalho.
Eu só tenho a mim nesse mundo. A família do meu pai não liga para mim, muito menos a da minha mãe. Depois que perdi os dois eu fiquei sozinha, mesmo tendo madrasta e irmãs postiças.
Eu tinha catorze anos quando conheci o inferno. Foi quando cheguei do enterro do meu pai e descobri que com ele foi embora qualquer consideração que sua mulher tinha por mim. Fui jogada para o quartinho e me fizeram de empregada. E quando eu tentei reagir, fui coagida pelos irmãos dela, que são policiais. Eles são tão assustadores. Por causa deles, prefiro entrar em um carro de bandido que em uma viatura policial. E por causa deles, estou presa a essa vida medíocre. Por sorte, a minha madrasta permitiu que eu trabalhasse fora, desde que eu não deixasse de fazer meus deveres em casa e lhe desse uma grande parte do dinheiro para as despesas da casa.
Mesmo morta pelo cansaço, eu amo os momentos fora da casa em que cresci.
Aqui sou constantemente ameaçada de passar o resto da vida na cadeia por um crime qualquer que possam inventar. E às vezes chego a pensar se seria tão ruim assim ser presa.
Sinceramente, não existe momento em que eu anseie mais que a hora de ir trabalhar na casa dos Dubois.
Às vezes me pergunto se tudo que aconteceu comigo foi uma maldição pelo meu nome. Minha mãe, completamente apaixonada por contos de fadas, queria ter várias filhas para colocar nomes de princesas, mas eu nasci e ela me chamou de Cinderela. E talvez seja por isso que ela tenha morrido poucos anos depois, sem ter mais filhos, e meu pai tenha se casado com uma mulher com duas filhas e depois morrido me deixando em sofrimento nas mãos dessas pessoas. Mas a minha história só se assemelha até ai, porque não chegou nenhuma fada madrinha ou príncipe para me escolher. E já me acostumei com a ideia de que nunca vai chegar.
Eu tenho vinte e um anos, e nenhuma previsão de conhecer a liberdade.
HENRY— O que vai fazer com essa arma, porra?Eu não estou acreditando que meu irmãozinho pretende fazer isso.Raoul está segurando a arma do policial corrupto e ordenando que desça a calça.— Vou enfiar no rabo dele.O homem arregala os olhos. Está algemado depois que o peguei usando nosso nome para extorquir pequenos comerciantes. Os Seven jamais fariam isso, extorquimos é grandes empresas, ameaçamos poderosos, nunca os oprimidos.— Só pode estar maluco! — É impossível não rir enquanto falo.— Foi o que ele disse que faria com aquela vovô do mercadinho. Nada mais poético que o otário morrer assim, com um cano no rabo.— Sim, esse monstro me disse essa pouca vergonha.Me viro para a voz e só uma pergunta me ocorre:— O que essa mulher ainda faz aqui?— É bom que ela veja o que acontece com pessoas como ele, não é não? — Ele começa certo do que fez e acaba com dúvida.— Não sei quem é mais pirado, você ou o Florian. Tire essa senhora daqui — digo me virando para os capangas conosco.V
CINDERELA— Meu Deus, Bela! — Exclamo ao abrir a janela e encontrar Bela onde menos gostaria. — Não faz isso comigo. Você quer mesmo me matar do coração. Só pode.— E por que eu iria querer matar minha única amiga? — Ela sorri e se vira para mim, seus cabelos castanhos voando para todo lado.A garota tem toda uma casa para escolher qualquer lugar onde ler, mas ela prefere subir até o telhado.Ela adora livros de aventura, e acha sua vida monótona demais. O sonho da minha amiga era ser policial, mas descobriu que ficaria apenas no sonho já que seu pai não a deixa fazer nada perigoso. Acho que é por isso que ela vive subindo nas coisas.— Por favor, só converse comigo quando estiver com os dois pés no chão desse quarto. — Cruzo os braços.— Medrosa! — Ela fecha o livro e sobe calmamente como se fosse uma gata andando pelo telhado, até passar pela janela e entrar. — Pronto.— Depois diz que não precisa de babá — provoco.Sei que ela odeia o fato de que o pai me contratou para fazer compa
De volta ao baile...HENRYComo assim Cinderela? O nome da mulher com a qual devo me casar é Bela Dubois. É Bela a mulher que deveria estar nesse vestido, sapatos e máscara.Que porra está acontecendo?As pessoas batem palmas pelo anuncio do noivado, até mesmo a mulher que está entre as irmãs gostosas, que eu sei ser a mãe delas. As três nos olham literalmente assustadas. Não é segredo que todas as cariocas sonham com o status que um casamento na nossa família lhe daria. E não duvido que Anastácia esperasse por isso. Nada contra, mas eu não sou o tipo moderninho que se casa com mulheres como ela. Eu sou antiquado, mesmo que o casamento seja uma fachada para deixar meu pai feliz. O que eu queria com Anastácia já tive. Ela só quer a chance de agarrar um homem rico, e eu mereço mais que alguém assim.Cinderela. Quem é essa mulher? Será alguém mandado por inimigos? Preciso esclarecer isso.Sem desfazer a pose de noivo contente, pego a mão da loira. Ela tenta puxar, mas aperto o bastante p
CINDERELAEu sei que não importa qual explicação dê a minha madrasta, não sairei ilesa dessa confusão. Não quando Anastácia me disse com todas as letras que queria estar onde estou nesse momento: sendo anunciada como noiva de um Seven.O problema é que sou a mulher errada. Era a Bela que devia ser anunciada.Será que ela sabia e me usou para fugir do casamento? Não, somos amigas, ela não faria isso comigo.Só que, mesmo não acreditando que seja por maldade, ela me colocou em uma enrascada. Não sei quem temo mais nesse momento, o homem que segura o meu braço, me puxando entre as pessoas, ou os irmãos da minha madrasta quando ela contar o que eu fiz.Sou levada para um lugar que parece um escritório e o Henry Seven fecha a porta e escora nela. Não sei se faz de propósito, mas seu revólver fica evidente sob a roupa.Ele quer saber o que estou fazendo aqui com as roupas e sapatos de Bela, mas se eu disser a Bela estará em apuros.Primeiro eu falo que vim substituir uma amiga, mas percebo
CINDERELAO que me mantem de pé é, com toda certeza, o braço de Henry me conduzindo. Mal sinto minhas pernas e, quanto mais nos aproximamos de minha madrasta e suas filhas, a sensação só piora. Eu devia estar me sentindo corajosa por estar com ele, mas só sinto medo de estar seguindo em direção aos rostos que são meus pesadelos diários. As máscaras delas são aquelas que a pessoa fica segurando na frente do rosto, e elas passam mais tempo com os rostos a mostra.— Boa noite! Estão gostando do evento? — Henry pergunta parando em frente a elas.Eu perdi a capacidade de falar em alguma parte do caminho. Acho que ele percebeu isso.— Surpreendente — Anastácia responde me olhando com os olhos brilhando de ódio.Henry lhe brinda com uma risadinha falsa, que não combina nada com sua aparência dominante.— A ideia era essa — diz.— Eu não sabia que vocês se conheciam. — Minha madrasta fala me olhando com todo desdém possível.— Nós... eu... — começo, mas não consigo completar. Queria muito ser
HENRY— Estou morta. — Ela diz ao se jogar no sofá. O vestido espalha e ela se curva massageando os pés sobre os sapatos, antes de tirá-los. Observo tudo escorado no batente da porta. — Eles são confortáveis, mas depois de horas andando e dançando..— Você quer dizer andando e pisando nos pés alheios.Como resposta, recebo um sorriso sem graça.— Desculpe. Eu disse que não sabia dançar.— Disse — digo simplesmente.Talvez seja o álcool que bebi durante o baile, mas essa loira me parece tão beijável, o vestido rasgado me convida a tirá-lo.Alguns minutos atrás ela me pediu para descansar. E eu cometi o erro de trazê-la para o meu quarto.Onde eu estava com a cabeça?A resposta é simples, estava pensando com a cabeça de baixo.— Cinderela, você quer foder? — pergunto mesmo. Sou direto no que desejo.Eu quero. Se ela quiser, seremos a dupla perfeita nessa cama.Prevejo o não quando ela se levanta e me dá as costas.O meu terno atrapalha a visão que eu teria da sua pele exposta pelo vesti
CINDERELADepois que minha madrasta se foi, a festa até me divertiu. Henry me apresentou para algumas pessoas como sua noiva e passei algum tempo com o pai dele e com o Raoul. O garoto tem um humor ácido, mas gostei dele logo de cara, assim como gostei do pai deles.Quando o sino de um grande relógio bateu meia-noite, eu já estava pronta para cair na cama e dormir. Tive que acordar às quatro da manhã para deixar o café pronto para Lady Tedesco e suas filhas, depois corri para a casa de Bela onde passamos o dia nos arrumando.Apesar de eu ir em seu lugar, ela se arrumou também para o pai não perceber caso a procurasse.Sabe, eu sempre fui uma pessoa corajosa. Isso foi guardado com o passar do tempo entre os Tedesco, mas continua em mim. E eu pretendo resgatar. Mesmo que inicialmente seja doloroso e assustador. Eu não quero que Henry veja em mim uma mulher fraca. Esse casamento precisa dar certo. Afinal, que desvantagem tem em casar com um deus grego cheio de poder? Não vejo nenhuma.Ap
CINDERELADentro do banheiro maior que o meio quarto, demoro dez minutos só para descobrir como ligar o chuveiro. DEZ minutos. E tomo banho frio porque não consegui mudar a temperatura. Ainda bem que aqui dentro o clima não é frio. Não sei porque tantos botões e torneiras. Tem até controle remoto sobre a pia.Tomo um banho rápido, só para relaxar o corpo, e vou em busca de creme dental. Como acho várias escovas novas, uso uma para escovar. Não é possível que vão se importar com isso.Quando saio do banheiro ele está sentado na cama com um roupão idêntico ao que uso e... Minha nossa senhora da periquita em chamas... alguém avisa no Olimpo que um dos deuses é mafioso e está curtindo entre meros mortais.Minha mente fica se perguntando se ele está nu sob o roupão, assim como eu estou.— Quer que eu peça algo para comer?E lá se vai os pensamentos impuros.Aperto o tecido contra o meu corpo institivamente. Agora só me pergunto se ele me acha magra demais.Nego a comida e aceito seu pedido